Levanta da cama com dor de cabeça e toma um banho congelado, depois de levar um choque violento do chuveiro elétrico, quebrado há mais de uma semana. Engole o mesmo suco de laranja de todos os dias e as duas fatias de pão com ovo, sem sal algum, que a sua mãe lhe entrega com um ar de inabalável felicidade. Senta na moto e segue para a faculdade de Medicina, que não dá à mínima, mas continua cursando, porque era o que seu finado pai tanto queria e gastou todas as economias com professores particulares para que passasse no vestibular. Sai da sala de aula horas depois com a certeza de que errou quase todas as questões da prova da segunda unidade e que para ser aprovado precisará da intervenção divina. Decide entrar numa joalheria para comprar um anel − como um pedido de desculpas − para a namorada, que no dia anterior teve um ataque de histeria por causa de uns minutos de atraso para a estúpida festa de aniversário do cunhado que o detesta. Almoça numa espelunca, onde come quase sem mastigar para poder chegar a tempo ao emprego de meio período − que vai levando para ganhar um trocado −, onde passa a tarde escrevendo atas, relatórios e atendendo a clientes insatisfeitos e mal-educados. Volta para casa se sentindo péssimo, um verdadeiro medíocre, que vive uma vida falsa, sempre tentando agradar aos outros e nunca fazendo o que tem vontade. Abre a porta pensando em mandar todos à merda, sem exceção, ir para o quarto, dormir, e só acordar na semana seguinte. Entra e se depara com a avó, que o olha com imenso carinho e um sorriso desdentado nos lábios, perguntando se poderia levá-la para fora, pois gostaria de sentir a brisa da noite. Responde que sim, claro que pode, empurra a cadeira de rodas até a varanda iluminada e, cansado, fica um pouco ali. A velha pergunta como foi o seu dia, se estudou muito, como está se sentindo, se está cansado, essas coisas que todo familiar sempre pergunta para demonstrar preocupação. Escuta o canto dos pássaros e o vento que bate na copa das árvores, sente uma lágrima molhar seu rosto, enxuga rapidamente com a palma da mão, temendo que alguém possa ver, respira fundo, e diz estou bem, vó, está tudo bem.