Como as personagens de Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri, esvazio meu ser com essas imagens urbanas que sempre farão parte de mim, porque, veja bem, o que há de tão fascinante nesta janela que abro, no 15o. andar de um prédio, na Graça ou na Barra Avenida, para o espaço imenso das avenidas que lá embaixo se enchem de pontos luminosos que vêm e que vão, e esse emaranhado de viadutos e pontes e tantos ângulos, ocultos, obscuros escondendo sabe-se lá que tipo de sonhos, medos, taras e intenções? Penso que posso ser todas aquelas pessoas lá embaixo. Vejam, por exemplo, aquele homem, metido num casaco surrado, com cabelos crespos e barba por fazer, retorna para casa, no início da noite de uma sexta-feira, após um dia de trabalho, e ele também percebe que não é mais jovem, que todos os seus sonhos se dispersaram ao longo dos anos, que sua pele já não tem mais nenhuma vivacidade, nenhum frescor, que sua barriga cresceu, que seus músculos estão flácidos, que já não é mais capaz de enfrentar um homem com seus punhos, que já não é mais capaz de garantir sua integridade com suas mãos, que seus amigos se dispersaram também como farinha na praia, quando o vento bate forte e firme e ela voluteia e se desfaz, e que já não pode sequer contar com um amigo que o ajude a enfrentar esse mundo cão, que é capaz de apanhar feito um cão imundo, sem poder fazer nada, está me entendendo? Pensa assim o homem desiludido, fodido, cansado de tudo e de si mesmo, e que por isto, e que por não valer quase nada, carrega consigo no bolso do casaco surrado, uma arma, esta arma que tem prazer de ter entre os dedos enquanto olha em volta e vê os passantes, e pensa: venham, safados, venham se meter comigo, filhos de uma cachorra pra ver se não lhes meto uma bala nas fuças, escrotos fodidos, e pensa que já é tarde, que o ônibus está mais uma vez atrasado, e pensa que é inútil contar quantas horas da sua vida, quantas horas da sua vida, está entendendo? quantas horas de sua vida perdeu parado assim, no ponto do ônibus, esperando, esperando enquanto os merdas passam pra cá e pra lá com seus carrões luxuosos, com suas mulheres embonecadas, que não sabem que ele existe, e que nunca saberão até que aponte a arma pra suas cabecinhas… E quem sabe até dê um passeiozinho por aí pela periferia com essas granfas, e ele sorri saboreando a ideia de deitar uma delas no carro e, com suas próprias mãos, rasgar-lhe a blusa e levantar-lhe a saia, e arrancar-lhe a calcinha fora, e dizer-lhe assim baixinho no ouvido: és minha agora e sempre, tá ouvindo? E ela será todas as meninas que o trataram como um moleque, como se ele tivesse sido feito por Deus para servi-las, e agora, sim, irá servi-las, a todas elas servirá com sua estrovenga que derramará este jato de leite quente nas suas entranhas, enquanto ela gritará por socorro, socorro, socorro, veja só que ela nem sabe onde está metida, essa égua nojenta, então você não quer receber minha maromba, heim? dirá puxando-a pelos cabelos, beijando-lhe o pescoço, roçando-lhe os peitos com a lâmina do seu canivete, oh, sim, ele fica excitado sempre que pensa naquelas coisas e pensa mesmo se seria capaz de fazer uma coisa daquela ou se, simplesmente, matá-la-ia com um tiro na testa, pois não seria rebaixar-se muito misturar-se com essas peruas, não seria melhor dizer que iria despachá-la logo pras profundas, meu irmãozinho, sim, meu irmãozinho, porque o inferno é pouco, tá me entendendo, pra essa gente que sempre se acostumou a humilhá-lo, e aos seus irmãos, e aos seus pais, e aos seus avós, e a toda a interminável multidão de homens e mulheres, que, diante deles, só abrem a boca para dizer: “Sim? O que o Sr. deseja? O que a Sra. quer?”, e o que é que a senhora quer agora, dona-puta-de-merda? Pensa com força, pensa com raiva sentindo seus dedos apertarem com força o cabo do revólver, e com que vontade não cuspiria fogo em volta, queimando todos esses desgraçados que ficam andando pra lá e pra cá com essa pressa, pra quê? E o homem range os dentes, e seus ossos rangem, e tudo nele range como dentes de um cachorro louco, mas ele se controla, mais uma vez, e uma mulher, ao seu lado, pergunta-lhe as horas.
– Que horas, por favor?
E ele:
– O quê?
E ela:
– As horas…
E ele:
– Sim, claro, desculpe.
E solta o cabo do revólver, e olha o relógio, e diz as horas com educação, e a mulher agradece-lhe, e o ônibus chega finalmente, e ele o pega, e desaparece para sempre desta história, e a mulher que fica no ponto, pensa: coitado, tão simpático, mas tão miseravelmente destruído, oh, e se eu não me cuidar também ficarei assim, mas já não estou assim meio caída, pensa olhando os seios que já não se mantêm suspensos, e ela nem se lembra quando eles começaram a cair, e pensar que um dia ela acreditou que eles jamais cairiam, e só então percebeu como já ia longe, meu Deus, aquelas noites em que seu namorado a encostava no muro, encostando o corpo magro e musculoso nela, e ela sentia o volume dele pressionando suas partes, e ela o empurrava, e ele insistia, e ela lutava com todas as suas forças até que sentia que ele a largaria, e sem querer frouxava os braços e sentia um súbito alívio ao saber que ele não se deixara intimidar, e nunca lutou tanto quanto naquele dia em que, na beira da praia, ele a despiu, e ela tentou fugir, inutilmente, e sentiu pela primeira vez o gosto de ser penetrada, e aquele medo de engravidar, e só então viu a força que tinha, e ficou confusa sim quando sentiu o líquido grosso, quente e pegajoso derramar-lhe nas coxas, e sentiu nojo, e quis limpar, e ele ficou lá parado como se tivesse morto, e ela pegou a calcinha jogada na areia e limpou-se com ela e atirou-a longe, e saiu dali feito uma maluca, e chorou muito naquela noite, em silêncio, engolindo seus soluços, mas muitas outras vezes voltaria com ele à praia, e tudo terminaria ficando natural, até que um dia engravidou de verdade, e quis abortar, chegou a tomar remédios, mas a barriga continuou crescendo, e de repente não pôde mais esconder que, sim, teria um filho, mas seu pai não compreendia, desgraça de filha, criada com tanto gosto pra quê? Pra emprenhar assim feito uma vagabunda? Oh, meu pai, como doeu aquela surra, e as recriminações, e a rejeição cada dia pior, até que casamos e saí de casa, e tive outros filhos e outros e acho que foi aí que meus peitos começaram a cansar de dar leite e foram despencando, os meninos enchendo a casa com tanto barulho, e meu marido com tantas exigências, mas pra que estou pensando nisto agora, meu Deus do céu? – matuta a mulher, a mulher que espera o ônibus, a mulher que passara anos de sua vida esperando o ônibus, ela que já não tinha mais nem tanta pressa assim de chegar a casa, porque sua casa era fria como as ruas da cidade, fria e vazia como essas calçadas e avenidas, e pensa mesmo se não teria sido melhor se tivesse feito como sua prima Marlene, lembra-se dela? Claro, mas faz tantos anos, não é? Quando Marlene fugiu de casa pra viver com Roberto, que vivia dizendo que a amava, que queria casar com ela, e ele com aquela lábia que o diabo lhe deu conseguiu finalmente levá-la para um daqueles hoteizinhos baratos de beira de estrada, onde tudo parecia sempre muito velho e sujo, banheiros com portas despencadas que rangiam, e as teias de aranha nos ângulos da parede, e baratas que passavam pra lá e pra cá em meio ao lixo, e aquela cama velha com o colchão duro e as cobertas encardidas, meu Deus, então ela se submetia àquilo pra ter o gosto de dizer pra si que se entregara ao seu homem? E ele a fodia naquela espelunca, e que vergonha não tinha quando sentia sobre si os olhos do dono que a media de cima para baixo como se fosse uma prostituta, com olhos maldosos e com desprezo, até que engravidou e chegou mesmo a ficar alegre com isto, como se um filho fosse lhe garantir o lar, uma casa sua e um quarto seu, seu e dele, que seria um bom pai, viu? E lembra que ela mesma lhe disse isto: sim, Roberto será um bom pai, e ela queria ter pelo menos uns cinco filhos, dois meninos e três meninas, ou melhor, um menino e três meninas, porque menino dá mais trabalho, é mais solto e difícil de controlar, entende? Sim, Marlene, eu entendo, mas veja, Roberto não queria filhos, porque, como ele mesmo lhe disse, crianças não faziam parte dos seus planos, e quem poderia garantir que os filhos seriam mesmo dele? E ele disse isto, Marlene, como se você o tivesse ofendido, veja só, como se você mesma fosse culpada, e mais culpada ainda por não entender que ele era um homem livre, dono do seu nariz, mas que não se preocupasse com isto, porque ele não a deixaria na mão numa hora dessa, que ele não era nenhum mal caráter, e veja, Marlene, que ele se predispôs a levá-la a uma fazedora de anjos que havia ali na Liberdade, que não se preocupasse, porque ele já a conhecia, conhecia muito bem, de forma que só precisava arranjar o dinheiro, porque nisso ele não podia fazer nada, porque, você sabe a situação em que ele se encontrava, há tantas semanas desempregado, mas ele lhe garantiu, viu? que estaria lá, e você tão bestinha Marlene, tão bestinha que só fez mesmo baixar os olhos e chorar, sentindo vergonha de si mesma, como se a culpa de tudo fosse só tua, minha querida, venha, sente-se aqui comigo no banco desta praça, e me diga porque você não me procurou, Marlene? E por que inventou de tomar aquele remédio, por que não tinha dinheiro? Mas, querida, que dinheiro custa a sua vida? E, lembro-me como hoje da correria, sua mãe desesperada, você passando mal, e ninguém sabia o que era que você estava sentindo, Marlene, e levaram-lhe ao Hospital Geral onde você ficou quase duas horas sem ser atendida, que precisou seu irmão Valtinho ameaçar quebrar tudo pra que aparecesse um médico, mal encarado, que violou sua intimidade, com aquelas mãos bruscas e descuidadas, e que depois fez aquele comentário maldoso na frente da sua mãe, “que você quis matar seu filho”, que Deus tava dando o troco e que se você morresse a culpa seria sua, que ele lavava as mãos, que as mulheres hoje em dia estavam todas mesmo perdidas, que você não poderia ficar ali, por que não tinha leitos vagos nem pra mulheres honestas, e que ele, enfim, ia pra casa, porque já não estava aguentando mesmo toda aquela sujeira, que a merda do salário que recebia não justificava ficar ali perdendo tempo com mulheres de má vida, e, Marlene, você saiu do hospital naquele dia querendo morrer, e não é que quase conseguiu realizar seu desejo? Porque seu pai não podia entender que a filha dele tivesse dado assim pra coisa ruim, e foi a muito custo que o impediram de lhe surrar naquela mesma noite, mas ninguém pôde impedi-lo de descarregar sobre você aquelas palavras pesadas que até hoje carregas contigo, minha querida prima, mas onde? E olhando esta cidade, nesta noite calma e quieta, eu pergunto: aonde que você se meteu, meu anjo? Por que não suportou mais viver sob o peso da vergonha? Por que sabia que já não pertencia mais a nenhuma família, porque era suja, porque era uma assassina, uma puta? E foi embora sem nenhum aviso, e fico pensando sem compreender a razão de nunca ter-me procurado, se sempre fomos como irmãs, desde pequenas, correndo pelas ruas, pelas areias, brincando e sonhando e construindo nossas casas que hoje parecem desfeitas para sempre – e és tu, mulher, que olhas para a cidade noturna com este olhar noturno e este coração de sombra e treva, pensando que talvez também um dia precises partir, mas como, se nem idade para isto tens mais, minha velha? E, com todos os teus filhos que já estão por aí se esbarrando com o mundo, sem garantia de coisa alguma, e sentes teu coração pesar quando pensas que nada lhes pode garantir esta velha mãe, que nem mesmo pode estar perto deles, pois que suas horas enterra no trabalho monótono e cinzento que lhe pesa aos ombros como uma maldição, oh velha inútil, tu também foste jovem e sonhaste com um futuro radioso, porque sabias que não serias jamais igual a todas as mulheres infelizes que conhecias – e aqui estás, parada no ponto do ônibus, igual ou pior que elas, que pelo menos já devem estar mortas. E pensavas nisto quando o ônibus apontou na esquina e parou a custo no ponto, porque quase te jogastes na frente dele, e parou com má vontade, o desgraçado, acelerando, acelerando e quase a derrubando no chão, e tiveste que se agarrar com força na porta e quase destes um jeito nas costas, e isto te fez muito mal, te fez sentir mais miserável e triste, e não te sentistes ainda mais triste porque aquele homem a amparou e a segurou, e lhe disse palavras gentis, e nem sequer agradeceste, e muito mal viste que era um jovem rapaz nos seus 25 anos de idade: alto, moreno, até um pouco simpático com seu nariz fino e olhos castanhos. Carrega nas mãos uma pasta de couro, uma pasta que segura com cuidado, talvez porque seja uma boa parte do pouco que tem aquele rapaz, mas veja que ele parece feliz olhando a paisagem lá fora que passa veloz pela janela, e logo vaga um lugar no banco e o rapaz senta e fica olhando os postes e as nuvens que passam com uma estranha claridade no céu. E que céu é aquele? É o céu da sua infância? O céu que pensou ter perdido para sempre? Sim, pode lembrar aqueles anos em que a lua onipresente o seguia por toda parte, e ele, ainda criança, pensava no mistério daquela luz e tudo era como um grande encantamento: a lua, o mar, as nuvens e uma canção praieira que penetrava todos os seus sonhos, embalando-o suavemente, como num barco que oscila lentamente em alto-mar. O rapaz se sente por um momento passageiro do barco até que seus olhos recuperam o interior sujo e triste do ônibus que sacoleja na pista cheia de buracos e vê que passara mais uma vez do ponto e mais uma vez lamenta a sua distração. Toca o sinal, corre para a porta e desce com um leve constrangimento. Anda pela rua deserta pensando que aquela rua é de fato tudo o que ele tem, mas isto, pensa ele balançando a cabeça levemente com um sorriso, isto é também um exagero, porque, veja, a casa que vê agora diante de si é também sua, e dentro dela há uma mesa velha de madeira, alguns bancos e cadeiras também velhos e a estante com seus livros. Ele gosta de ficar parado diante dos seus livros, como um monarca diante de seu reinado. E os seus livros são tudo o que ele tem de verdade? E neles não pode encontrar tudo o que um homem precisa? Veja aqui, pensa ele, e fechando os olhos pega um volume qualquer ao acaso, abre-o também ao acaso, lê as primeiras palavras que se apresentam diante dos seus olhos: Calmo é o fundo do meu mar; quem adivinharia que esconde monstros brincalhões! E segue os olhos pelas prateleiras, como sombra de um condor deslizando sobre as montanhas nevadas de Torres del Paine. Pensa no primeiro livro que comprou, há muitos anos: um volume de contos de Tchekov. Lembra-se que estranhou aquelas histórias quando as leu pela primeira vez. Elas terminavam de repente deixando-lhe vagos pensamentos e sensações que em vez de se dissiparem, instalavam-se no espírito como algo que sempre fora seu.
O jovem rapaz está imóvel, diante da estante muda e silenciosa. Acha triste pensar que os seus melhores amigos são aqueles livros. Por isso resolve sair àquela hora da noite pelos bares, encontrando velhos conhecidos, mas sem nunca se fixar em alguma mesa, pois ele anda ali como um fantasma. Ouça esta canção: o cavaquinho e o violão e essa imensa tristeza e me diga, amor, que esperança pode haver para um homem que não sabe sequer cantá-la? E é este jovem rapaz, silencioso e triste, que desaparece agora por entre as mesas e as cadeiras e as ruas e ladeiras do bairro. Ele se perde dos olhos de uma jovem mulher que, sentada a uma mesa, o vê distanciar-se com um sentimento de aguda impotência. Ela acreditou ter visto nele algo que não estava presente ali, entre seus ruidosos companheiros. Lamentou não o ter seguido, porque pressentiu que ele a tomaria pela mão e a levaria para ver o mar noturno, e sentariam no passeio, e falariam de coisas realmente sérias e importantes, como as estrelas e o mar, e as estrelas-do-mar, e os cavalos-marinhos que habitam as profundezas escuras do oceano – e coisas assim. E agradeceria por tê-la tirado da sua ausência, porque olhar o mar era ver o que havia de mais verdadeiro e misterioso, nela mesma. Por isso baixaria os olhos e, sorrindo, derramaria suas lágrimas – estas mesmas que nublam seus olhos enquanto olha a rua sobre as garrafas de cerveja. Poderia dizer pra si: deixe de ser besta, você não está mais com idade para essas coisas – e acreditaria um dia nas suas palavras e tornar-se-ia cada dia mais uma dessas mulheres descrentes, que, por serem descrentes, tornam-se vulgares; e encobriria sua tristeza e perdas com risos vazios, e tudo isso se poderia adivinhar olhando seus olhos anuviados. Mas, nessa noite, deixaria, porém, seus pensamentos vagarem sem rumo até o rapaz que viu no bar, e pensou que poderia ter saído com ele. Pensou que sairiam andando, de mãos dadas, que ele a levaria até as dunas do Abaeté para ver a lagoa à noite, e ela iria sim sabendo que venceria sua timidez, que tocariam suas mãos, que ele passaria suas mãos sobre os seus cabelos lisos, que beijaria levemente seus lábios, que encostariam seus corpos com o prazer vivo e palpitante, que tiraria a sua blusa e levantaria o vestido e deitar-se-ia sobre as suas próprias roupas estendidas na areia, que beijaria seus seios e diria palavras carinhosas, feliz consigo mesmo, e ela se deixaria penetrar olhando o céu, sentindo aquela estranha e inesquecível sensação de liberdade. Ficariam mais alguns minutos até que, passado o clímax, refletiriam que o lugar já não era tão seguro, que deveriam sair dali rápido e correriam pelas ruas, rindo, sujos de areia, mato e amor – mas o rapaz a chamava, e ela sequer lhe tinha dito o seu nome! Olhou para o jovem na cadeira ao lado e viu um outro rapaz bem vestido e pensou que poderiam ir a um motel, que seria mais seguro, mais confortável, e ele segurava sua mão agora com força. Faltava-lhe delicadeza, pensou, e bom humor. Como admirava essa qualidade nos homens, sentiu, e pensou que o homem de seus sonhos poderia comprá-la apenas com essa moeda: um doce e melancólico bom humor. Ele não precisaria ter coragem e ambição maiores que esta: a de conquistá-la com alegria, com esse misto de alegria e tristeza que tornam uma pessoa humana. “Meu rapaz, pensou, poderemos fazer muitas coisas, como correr sob a chuva numa noite de tempestade anunciando o fim do mundo, percorrer as ilhas da Baía de Todos-os-Santos com uma velha mochila nas costas, atravessando os mangues com lama aos joelhos, beber em todos os bares e dar uma esticada na zona onde me mostraria por que eu jamais deveria ir lá, dançar quadrilha numa noite de São João e amanhecer o dia amando-nos numa rede, enfrentar a polícia nas ruas, numa passeata em defesa dos direitos-humanos, correr na areia da praia, nadar, surfar, jogar pingue-pongue, assistir filmes catástrofes e policiais noir e filmes de arte, em cinematecas, rir de todos os que nos achariam irresponsáveis, pensar no futuro: num filho, numa casa no campo, num violão que você tocará cantando uma guarânia na fronteira com o Paraguai, percorrer as estradas deste país sobre caminhões, cortar o sertão num trem velho e sacolejante: café-com-pão-bolacha-não, café-com-pão-bolacha-não, veja esse luar que como ele não há refletindo sua luz leitosa sobre as barrancas, as caatingas e as falésias daquela praia no Ceará. Lembra-se? Esta lembrança do que nunca viveu é como uma casinha na beira do mar: as ondas quebram longe, muito longe nesta noite, e as lamparinas nos trazem um cheiro doce de óleo de baleia e o mundo é um grande mistério. Você me estende a sua mão de poeta e chama-me para andar ao léu nesta avenida e conta-me histórias da sua infância, quando pensava se um dia teria a felicidade de amar uma jovem assim como eu, e achei graça quando disse que lhe dava especial prazer pensar que um dia teria uma mulher nua ao seu lado e que poderia tocá-la com suas mãos, e que, num fim-de-tarde, sentiu, debaixo da chuva (de uma chuva forte), no alto da goiabeira, um sentimento que nunca havia experimentado antes, até que me encontrou. Mas você nunca me encontrou, pensou ela voltando-se para o rapaz ao lado que se inclinou e a beijou nos lábios, e ela deixou – e deixou que a levasse para casa, que lhe tirasse a roupa e a penetrasse ali mesmo no automóvel, onde sentiu um prazer sujo e entrou em casa, depois, e dormiu. E sonhou. E pensou: “O meu sono me faz lembrar Alice no País das Maravilhas, porque, nos meus sonhos, eu também sou como aquela menina curiosa, que se deixa arrastar pela incapacidade de suportar não saber o que há além de cada esquina, de cada árvore na floresta, de cada nuvem – e como Alice eu também não suportaria deixar de seguir um coelho de casaca e cartola com um relógio na algibeira e uns pequenos óculos de metal; e é esta disponibilidade de seguir que me faz ser, que me faz, que me… oh! E aqui me encontro neste quarto espaçoso chorando, porque sei que hoje dei o meu passo definitivo para longe de você e de mim. Posso fingir que estou bem quando meu pai abre a porta do quarto e diz: “Minha filha, que bom que você chegou. Já estava preocupado” – e me dá um beijo no rosto, pensando que sou a mesma filha de ontem. Poderia falar-lhe das suas inquietações e ele diria: “Mas que bobagem, querida”. Ele passaria as mãos nos seus cabelos e no seu rosto e sairia fechando a porta com cuidado. Sairia para a sala e abriria a janela do apartamento e pensaria: “Eu a criei com tantos cuidados, meu anjo, e agora você me deixa assim inquieto”. Ele sabe que seria capaz de morrer por ela, que seria capaz de morrer para que não sofresse nunca, mas isto de nada adiantaria, porque ela não é mais sua. Ou melhor: só agora tem a consciência de que ela nunca fora realmente sua. O homem anda pelas ruas desertas do seu apartamento, porque já não pode mais andar pelas ruas desertas e ele sente ao mesmo tempo uma saudade indefinida de um tempo em que podia andar pelas ruas desertas sem medo de morrer. O homem se sente vazio. O homem abre a janela, no 15o. andar de um prédio, na Graça ou na Barra Avenida, para o espaço amplo das avenidas que lá embaixo se enchem de pontos luminosos que vêm e que vão, e esse emaranhado de viadutos e pontes e tantos ângulos, ocultos, obscuros escondendo sabe-se lá que tipo de sonhos, medos, taras e intenções…
Publicado na antologia Geração 90: manuscritos de computador, organizada por Nelson de Oliveira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001.