Era uma tarde tranqüila a daquela terça-feira de outono do ano de 2020. Tranqüila como o mar, que, visto pela janela do ônibus, espalhava inofensivas espumas brancas na areia da praia. Quem podia imaginar os monstros que habitavam suas profundezas?
Deixei o ônibus e o mar, e rumei para a casa de Ricardo. Encontrei-o debilitado por um conjunto de fatores que envolviam uma estafa provocada por excesso de trabalho, a morte recente do pai e uma relação conturbada e ainda mal resolvida com o que ele chamava de Anjo Azul. Desculpei-me pela inconveniência da minha presença ali, àquela hora, mas ele me tranqüilizou com dois copos de suco de mangaba. Expliquei o motivo da visita: gostaria imensamente que desse algumas explicações sobre uns sonhos recorrentes que me vinham martelando o juízo.
Ricardo sorriu. Ficou por alguns minutos (dois ou três, no máximo) em silêncio. Disse, não sei por que, que se sentiria muito honrado em me ajudar naquela questão, em particular. Ando mesmo me ocupando ultimamente com sonhos recorrentes, disse ele, frisando as últimas palavras. (Ele sempre frisava as últimas palavras.) Chamou a empregada, mandou que nos servisse mais uma jarra de suco, e, segurando o copo em frente aos olhos, acrescentou, com um tom entre surpreso e melancólico: É estranho este convite vir justamente agora, que me encontro nessas condições. E, como se de repente despertasse de suas divagações, indagou que tipo de sonhos era exatamente esse que eu vinha tendo?
Fui sucinto, o máximo que pude. Esforcei-me para ser irônico, fazendo-o crer que não levava demasiado a sério aquele assunto. Não queria, claro, que ele pensasse que eu estava ficando maluco. Enfim, um sujeito me levara uma bolada em dinheiro. E o desgraçado simplesmente desaparecera, se me permite o lugar comum, sem deixar vestígios.
– Sem deixar vestígios?
– Sim, sem deixar vestígios. Fiz o inimaginável para encontrar o filho de uma égua, denunciei-o à polícia, botei até um investigador particular atrás dele…
– E nada.
– Nem sinal. Escafedeu-se, o sacripanta.
– E então?
– O estranho é que… – hesitei um pouco, mas tive que prosseguir. – Bem, desde que ele desapareceu, passei a vê-lo, todas as noites… em sonho: rindo-se de mim, fazendo pilhéria e…
Esforcei-me para conter a raiva.
– Gastando. Gastando o meu dinheiro dentro dos meus próprios sonhos! Você acredita? Dia após dia, noite após noite, e o desgraçado esbanjando as minhas economias, nos meus próprios sonhos! (Agora era eu quem frisava as últimas palavras.)
Pensei que Ricardo iria rir dessa afirmação ridícula, mas ele estava sério, pensativo, diria até excessivamente concentrado na história.
– De dia, também? – perguntou.
– Oh, sim! Na verdade, nem é necessário que eu esteja dormindo. Basta-me fechar os olhos e ele aparece, rindo-se da minha desgraça.
Àquela altura eu já havia esquecido da minha auto-ironia e, oh humilhação, chorava, de indignação, na frente do Ricardo, de quem, para ser sincero, não era assim tão íntimo. Consolou-me com mais um copo de suco. A situação não era, de fato, muito simples. Não seria fácil arrancá-lo de lá. Tampouco impedir que ele gastasse a grana. E a lei? Nos sonhos, a lei é muito… imprevisível. Não obedece a critérios muito confiáveis, entende?
– Acho que você vai ter que resolver que resolver o problema com seus próprios recursos – disse ele, batucando os dedos na cadeira.
Não pude deixar de perceber que Ricardo media, agora, as palavras, com extremo cuidado. Eu estava a par das pesquisas que, já há alguns anos, ele realizava no que chamava, eufemisticamente, de Campo simbólico das ações involuntárias, no qual os sonhos tinham uma importância aliás muito relevante. Eu sabia, por fontes privilegiadas, que algumas barreiras que separavam, há milênios, o mundo onírico do chamado “mundo real” haviam sido transpostas. Prova disto era que ele, o patife, havia conseguido ultrapassar essas barreiras, com um agravante: o miserável conseguira, Deus sabe como, habitar, não os sonhos dele, mas os meus próprios. Oh, ironia das ironias!
Ricardo pediu à empregada uns bolinhos de estudante, bem tostadinhos, do jeito que eu gostava, o que contribuiu para diminuir a minha ansiedade, e, entre uma e outra mordida, explicou-me que: 1) Era possível, realmente, ultrapassar essa fronteira; 2) Que, para isto, é necessária uma força de vontade que poucos, muito poucos, têm; 3) Mas que já haviam sido desenvolvidos alguns aparelhinhos muito úteis nesse sentido. Acrescentou, em seguida, que isto implicava, entretanto, riscos: é necessário que o processo volitivo gerado pelo aparelho se mantenha, no outro lado. Sem isso, o sujeito pode não ter forças ou vontade suficientes para voltar, o que geraria uma situação, no mínimo, bastante embaraçosa.
– Quer dizer que o sujeito pode ficar prisioneiro do próprio sonho?
– Não somente do próprio sonho. Algumas pesquisas recentes têm sugerido a possibilidade de que os “sonhos” de cada pessoa não são, como comumente se pensa, ilhas isoladas. Eles se comunicam entre si e, o que é mais surpreendente, como os sonhos das outras pessoas. Na verdade, não apenas com sonhos, mas com devaneios, com o que se costuma chamar de sonhar acordado. O nosso ego são diminutas represas cuja árdua tarefa é a de conter esse imenso oceano.
– Você quer dizer que o sujeito pode circular, desembaraçadamente, entre os sonhos de diferentes pessoas, como quem vai da sala para a cozinha?
– Prefiro dizer: como quem vai de um país a outro, sem, entretanto, a necessidade de alfândegas, nem de passaportes. Como era comum, aliás, no chamado mundo real, até antes da Primeira Guerra Mundial. A comparação, aliás, é procedente: tal como na terra, também nos sonhos, as fronteiras são artifícios, nada mais que meras convenções. Tal como a terra, os sonhos, todos os sonhos são um continuum.
Para encurtar a conversa, o meu problema casava perfeitamente com algumas necessidades especiais do projeto no qual Ricardo estava envolvido. Ele precisava de cobaias para seus experimentos, e eu estava disposto a assinar qualquer documento isentando-o de conseqüências, que, aliás, fossem quais fossem, não deixariam rastros no mundo real. Alguns dias, no entanto, se seguiram até que ele resolvesse iniciar uma série de testes, que consistiam em pequenas incursões oníricas, nas quais eu deveria, segundo ele, aprender a andar com as minhas próprias pernas.
Antes, mandou que eu lesse os contos góticos de Lovercraft, de As Sombras Perdidas no Tempo; As crônicas marcianas, de Ray Bradbury; O Mundo Perdido, de Conan Doyle, e A máquina do tempo, de Wells. Sugeriu ainda que eu praticasse algum instrumento musical, ou o canto, mesmo que de maneira informal. Não sou chegado a essas besteiras e, conforme previ, não senti nenhuma mudança. Esperava apenas que ele ligasse alguns chips na minha cabeça e que me mandasse, sem maiores delongas, para onde está o nefando malfeitor, que, enquanto eu estava ali perdendo tempo com frescurinhas, gastava o meu dinheiro à larga, sabe Deus como. Mas Ricardo insistia nessa história de acessar o lado direito do cérebro.
Uma semana depois, conforme as orientações recebidas, procurei um canto silencioso do apartamento, mergulhado nas sombras amenas do final de tarde e, procurando uma posição confortável, deixei meu pensamento vagar ao sabor do acaso, de forma que o meu “eu” consciente pudesse agir como um homem que, num barco, sobre o imenso mar, fisgasse a primeira imagem que lhe caísse no anzol. Ele, o “meu eu”, palmilhou caminhos da memória, saltando entre uma e outra imagem: uma casa antiga em Itapuã, dunas carregadas de cajus e mangabas, ondas com espumas, uma bela garota de traços suaves, quase etéreos, do ginásio, brigas a socos e pontapés na saída da escola, manchas de sangue na camisa branca, bandos de meninos gritando ao final das aulas, as roças do interior, o horizonte rubro visto de uma pedra, no mar… e fixou-se, não sei por que, nas imagens de um sonho que tive há muitos anos, o primeiro que posso lembrar e que é, também, uma das minhas primeiras recordações.
Eu estava numa espécie de galpão escuro onde havia uma série de prateleiras, como num supermercado. Estava com muito medo, pois sabia que, em algum ponto daquele lugar obscuro, havia um lobo que queria me devorar. Não havia nenhum lugar seguro aonde eu pudesse ir, nem alguém que pudesse me socorrer. Encontrava-me completamente desamparado, só e profundamente amedrontado. Não podia ficar ali parado e não podia andar, pois a qualquer momento ele saltaria sobre mim. Acordei apavorado. Na época eu tinha uns três anos de idade e morava com os meus pais em um apartamento localizado no segundo andar de um prédio antigo, no Centro Histórico de Salvador. Eu estava sozinho no quarto e meus olhos caíram de imediato sobre um grande aquário iluminado no qual meu pai criava peixes coloridos e solitários em seu mundo de silêncio: paulistinhas, beijoqueiros, tricogásteres… Corri através da sala e do corredor escuro, que parecia tão longo, naquele tempo, até a cozinha onde minha mãe debulhava feijão com uma velha tia, cabocla sergipana com seu velho cachimbo de madeira, e mais alguma prima, não lembro quem estava lá. O apartamento era muito grande para os meus olhos e misterioso, e lembro agora o corredor como um grande túnel escuro, e a luz da cozinha ao final como a salvação. Gritei pela minha mãe, chorei, o lobo saltara também do sonho, no quarto e corria atrás de mim, perseguindo-me com suas garras afiadas, com seus dentes afiados, com sua língua áspera espalhando saliva ao redor. Eu corria e corria e corria como quem atravessa um grande jardim escuro, como quem atravessa uma extensa caverna de uma montanha suspensa sobre o abismo, batida por ondas bravias, varrida por ventos inclementes. E lá estava novamente no galpão escuro e o lobo saltava sobre mim e eu saltava do sonho como uma imagem que salta para fora de um quadro para os braços da minha mãe, e o sonho, como o quadro congelado na sua moldura era como uma imagem estéril que eu colocava dentro de um cofre e o fechava. Estava livre, mas não estava satisfeito. Eu precisava saber o que era ele (o lobo), o que representava para mim aquele galpão, aqueles corredores escuros, o medo, o terror. Por um esforço de vontade retornei novamente ao menino no galpão, resisti ao impulso de saltar para fora do sonho e corri do lobo derrubando as prateleiras, mas não havia nenhuma saída e quando vi que seria devorado, saltei mais uma vez para fora do sonho, que passava a ser uma moldura vazia, que eu colocava dentro de um cofre e o trancava com um cadeado.
Percebi que não chegaria a uma conclusão objetiva sobre o sonho e deixei mais uma vez o meu pensamento boiar sobre o oceano do inconsciente e me vi frente a frente com uma espécie de herveiro, ou coisa que o valha, um homem desagradável, num quarto sujo. Imundo. Fétido. Poeira. Teias de aranha. O homem com a barba emaranhada sentado numa cadeira grande e pesada. Ele se levantava, com aspecto selvagem e repulsivo, para nos atender. E era ele, o bandido que me roubara!
Questionei-me se estava indo longe demais. O desgraçado, estava claro para mim, poderia adotar qualquer disfarce, e se movia com familiaridade onde eu mal conseguia tatear. Se eu não acordasse, na hora H, trituraria os meus ossos com a maior tranqüilidade do mundo. Ricardo argumentou, com razão, que ele poderia fazê-lo, a qualquer momento. Portanto, não se tratava de continuar ou não a experiência.
– Você não pode evitar dormir… e sonhar, disse com lógica implacável.
De fato. Naquela noite me vi descendo, através das águas de um oceano, para profundezas abissais onde reinava o mais completo silêncio e escuridão. Eu levava comigo, entretanto, uma lâmpada, presa a um capacete, através da qual podia ver as formas que se agitavam naquele mundo inexplorado. Monstros de aparência insólita ganhavam vida, por alguns segundos, para logo desaparecerem nas trevas. Eu estava cercado deles, mas não os temia. E prosseguia na jornada.
De repente, o oceano transformava-se em um mundo interior, insólito e incompreensível. Em vez de peixes, viam-se imagens de sonhos que eu já tivera. Vi o famigerado herveiro, que ressurgia daquele abismo, iluminado pela minha lâmpada; vi um disco voador que anos atrás me visitara um sonho em que um homem do espaço lançava-me um olhar terrível do espaço exterior.
Via o rosto dele, do patife, multiplicado incansavelmente, intoleravelmente. Não podia mais retornar.
Chegara, finalmente, a hora dos chips. O processo havia sido iniciado, e ele, o facínora, parecia estar consciente dos meus planos. Portanto, não tínhamos mais tempo a perder.
Ricardo instalou um micro-chip na minha cabeça e mandou-me para casa, apenas com uma instrução: durma, porra! Colocou uma pistola laser, ou coisa que o valha, na minha mão, e disse: cuidado! Questionei-me se já não estava sonhando.
Deitei-me na minha cama de solteiro. Pensei em deixar um bilhete, para o caso de não voltar. Mas, para quem? Também não queria pensar nessa possibilidade. Passei os olhos em volta: no quadro de Magritte, “A resposta imprevista”, à minha frente; na estante com os livros (divisei O altar dos mortos, de Henry James, que não me causou boa impressão); o guarda-roupa; a mesinha de cabeceira; o abajur; a cama; os lençóis, e, na minha mão direita, a pistola laser. Deixei meu pensamento vagar por algumas imagens: o ônibus, o mar, as espumas brancas, uma amendoeira, o rosto de Ricardo, o suco de mangaba, ele, o herveiro, até que tudo foi se desvanecendo, desvanecendo e, pouco a pouco, sendo substituído por outras imagens: ruas e praias desertas, que eu percorria, correndo, numa paisagem crepuscular, podia ver apenas meus pés e mãos agitando-se abaixo e aos lados do meu corpo – e o chão, vindo e indo, vindo e indo, e as paisagens se sucedendo: praias, bairros decadentes, pátios desertos e arrabaldes. Mas não via ninguém. Ouvia apenas a minha própria respiração, ofegante, e o desejo surdo de matá-lo, a ele, o patife que me roubara tudo. Cruzei outras ruas, e outras, e, aos poucos, me familiarizava com a possibilidade de saltar sobre muros e edifícios e montanhas, de abrir o Mar, como Moisés o fizera, milhares de anos antes.
– Então, é assim tão simples? Oh, sim, eu podia também atirar rápido como Jesse James!
Agora, bastava-me, apenas, encontrá-lo, não mais para retomar o meu dinheiro, mas para matá-lo – e, ao pensar nisso, o vi, ele, o ladrão, ele, o herveiro, ele, o inseto miserável que eu baniria da face da terra com a sola do meu sapato, esmagando-o como a uma barata: lá vinha, ele, voando sobre os edifícios, ao entardecer. Por cima dos muros daquele dia que parecia ser o último dia de todos os tempos, pensei, roçando a mão na minha pistola de raios, enquanto o sol se punha para lá das sombras tristes dos xiquexiques. Oh! Os desertos medonhos do Oriente onde um dia vaguei sob o sol inclemente.
Rilhei os dentes. Segurei firme a coronha da arma, mais uma vez.
A última?
– Desça! – gritei, desesperado, enquanto as pupilas derretiam-se e um gato deslizava como sombra na lua sobre os telhados.
Atirei. O cano cuspiu raios na rua deserta. O inseto rugiu entre as asas negras do crepúsculo. Dinossauros ganiram, em agonia, nas marquises. Desci a escadaria de Odessa, segurando minha arma e sentindo que algo se fora, para sempre, como o sol daquele distante ano de 2020.
Eu o havia matado. Mas, continuamos duelando, sonhos adentro: ora eu, ora ele, atirava. Ora eu, ora ele, morria, para logo ressurgir: na proa de uma caravela, no coração das trevas africanas, a bordo de uma espaçonave. Duelávamos com espadas e cimitarras, atirávamos com carabinas e mosquetes, enfiávamos adagas no peito, duelávamos em ruas empoeiradas de Doge City, lançávamos bombas e pedras, machados e flechas, passando de um sonho para outro, até que todos os sonhos sejam sonhados…
Publicado na revista de ficção-científica Portal Solaris, organizada por Nelson de Oliveira. São Paulo, 2008.