CAPÍTULO 1.
KALBE X KENAKÊ
Kalbe caminhava lentamente, com aquele seu jeito calmo e elegante, pela trilha que levava à aldeia onde morava Kenakê, sua prometida. Iriam hoje realizar a festa de noivado, como era hábito entre suas tribos.
Logo mais sua família chegaria, os membros do Conselho de Anciãos, o povo.
Kalbe sorriu ao pensar que logo, logo, teria Kenakê em sua casa, para sempre. Agora, nenhum guerreiro pensaria em possuí-la, nenhum guerreiro sequer olharia para ela; percebeu, neste momento, o quanto a amava…
Ele ia vendo mentalmente a menina negra e alta, de corpo bem feito, a carne rija e macia, os olhos cinzentos com rajas escuras, sombreados por cílios negros, os cabelos encarapinhados trabalhados em pequenas tranças que seguiam todas as direções de sua cabeça redonda e graciosa.
Kalbe também era um tipo mesclado de sudanês e nilótico: alto, com quase dois metros de altura, forte, a pele negra reluzente, com traços firmes e bem delineados, olhos daquela mesma cor cinza e cabelos crespos, curtinhos. Trajava uma túnica longa, de listas vermelhas em pano branco; andava com desenvoltura. Ia chutando os pedregulhos do caminho, parando às vezes para ver os pássaros, ou as garças no lago, ou outro animal que merecesse sua atenção. Aqui e ali colhia flores do campo, mimosas e coloridas e aos poucos surgia em suas mãos um delicado buquê.
Na aldeia, o azáfama era intenso: Kenakê estava sendo banhada, untada pelos mais perfumados óleos que sua tribo conhecia. As mulheres iam e vinham empenhadas na tarefa de tornar mais bela a princesa. A rainha, sentada numa cadeira de palha, observava e orientava as mulheres sobre os arranjos.
Kenakê era filha de Muriatã, rei da aldeia. Aquela união era importante para a menina, pois o seu coração já pertencia a Kalbe…
Este ao chegar dirigiu-se logo ao Conselho dos Anciãos, lá ficando até que todos estivessem sentados em redor da fogueira. A noiva, vestida até os pés, envolta em véus transparentes, não podia aparecer, como era de costume.
Primeiro as crianças cantaram e dançaram. Depois as jovens, cada qual mais bela e sensual, testando o amor do noivo. O jovem admirava-as impassível. Depois os guerreiros. E, por último os anciãos.
Ia alta a noite e a lua prateava o terreiro quando Muriatã, alto, imponente, e aparentando juventude, surgiu, trazendo pela mão a virgem prometida. Ouviu-se um oh! de admiração: a moça caminhava com elegância e firmeza, olhos fixos no chão, como competia a uma noiva. Todos levantaram-se e quando ela chegou em frente a Kalbe, Muriatã perguntou com orgulho:
– Aceitas, ó grande príncipe Kalbe, dono de todas as terras além da montanha azul, dono de búfalos e garças, que nenhum ser humano jamais poderá contar, a mão da princesa Kenakê, filha de Muriatã e Tara, moça de beleza comentada, prendada e saudável, como tua futura esposa?
Fez-se um respeitoso silêncio. Até os tambores haviam cessado, e se podia ouvir os ruídos naturais da floresta. Kalbe caminhou para a noiva com desenvoltura e pegando suas mãos com carinho, murmurou:
— Eu, Kalbe, da aldeia de Banistau, da tribo dos Huaris, donos das terras além da montanha azul, aceito e prometo amar por toda vida a Kenakê, como minha noiva.
Delicadamente, ele, belo como um deus, curvou-se e afagou o nariz da noiva por cima do véu. Nem mesmo o noivo, poderia atrever-se a puxar aquele véu…
— E Kenakê, aceita meu coração?
— Sim, balbuciou a moça, confusa, num murmúrio.
Kalbe fizera a pergunta sabendo que aquela fala não fazia parte da cerimônia; mas ele queria que todos soubessem que Kenakê o amava.
— Estão noivos e já podemos pensar em preparar o casamento! Determinara Muriatã. Vamos dançar e beber até o sol raiar! ordenara o rei, feliz com a cerimônia.
Nenhum beijo eles trocaram naquela noite, mas seus olhos refletiam o quanto se amavam…
Kalbe e Kenakê viram as danças em sua homenagem sentados na palha real, lado a lado; ele podia sentir o perfume doce de sua eleita. Ela olhava-o sorrateiramente, logo baixando as negras pestanas, quando ele se virava embevecido…
— Seremos muito felizes juntos! sussurrava Kalbe numa oportunidade em que a moça cravara nele seus doces olhos cinzentos.
— Serei a esposa mais sorridente que o mundo já viu! Prometeu Kenakê, referindo-se ao fato de que em suas tribos as pessoas felizes viviam sorrindo.
— O casamento será daqui a quatro luas! Combinou Muriatã.
— Meu coração achará difícil esperar tanto tempo! suspirou Kalbe. E ele era sincero.
Kalbe sorvia o perfume da noiva, embriagado de bebidas e de amor. Kenakê estava excitada com a proximidade do homem amado; ele rescendia a masculinidade, a força, ao prazer… a menina desconhecia a sexualidade, mas seu instinto aguçado lhe prometia felicidades nunca antes sonhadas.
O sol já despontava no horizonte quando Muriatã deu por encerrada a festa. A rainha, as famílias dos noivos e as velhas conselheiras da tribo recolheram a noiva. Antes de saírem, sua mãe disse-lhe com autoridade, mas com delicadeza:
— Despeça-se agora do seu prometido, pois só o verá de novo no dia aprazado para o casamento!
Kenakê sorriu e seus lábios grossos deixaram ver uma fileira de dentes perfeitos, muito alvos; encaminhou-se graciosamente para Kalbe e, ao chegar bem perto, baixou a cabeça em sinal de respeito; ele pegou o seu queixo com carinho, levantou-lhe o rosto negro, olhou-a profundamente nos olhos e murmurou:
— Não sei como vou esperar tanto, princesa!
— Eu te amo! Balbuciou a menina timidamente. Quatro luas demoram muito! — completou, suspirando.
— Vamos, o tempo está findo! Ordenou a mãe.
— Obrigado, senhora, por dar-me a felicidade chamada Kenakê, disse gentilmente Kalbe. E, virando-se apaixonado para a noiva, disse à guisa de despedida:
— Que os deuses permitam que chegue logo o nosso dia!
— Até lá… respondeu a menina com uma mesura, retirando-se sem voltar as costas, numa homenagem ao futuro rei.
Kalbe despediu-se logo depois e voltou com sua família, seus amigos e sua tribo pela mesma trilha por onde viera, emocionado ainda com a visão da sua amada e com o coração repleto de felicidade, ouvindo o canto dos pássaros, vendo o dia surgir azul e rosa no céu tórrido da África.
Ser príncipe para Kalbe não era difícil: seu povo era calmo, os povos vizinhos, em sua maioria, amigos. Sua tribo ficava numa região não muito distante do mar. Havia grandes rios caudalosos, riachos e lagos; as montanhas eram aprazíveis. Os vales cheios de flores e frutos; pescava-se e nadava-se. Caçavam; a comida era farta. Obedeciam ao rei, seu pai e ao conselho dos anciãos. Seu pai era o rei e reis também haviam sido seus avós, bisavós, enfim, os ancestrais até onde a memória nem lembrava.
Estava no sangue. A liderança estava em todo ele, sobretudo no olhar; sua simples presença impunha respeito. Dominava com amor, lealdade, coragem e justiça. Ele era amado por seus súditos: Kalbe seria um grande rei malé!
Chegou outra lua e Kalbe não continha a ansiedade em rever Kenakê. Pediu um dia à Mace, sua irmã, que fosse fazer uma de suas visitas casuais à tribo amiga e trouxesse noticias de Kenakê. A moça adorou a idéia.
Era uma tarde morna de outono, havia muitas folhas caídas pelo terreiro, e mulheres varrendo o chão, quando Mace chegou à tribo de Muriatã.
Kenakê trançava uma cesta para levar consigo para a sua nova morada, quando a amiga entrou. Levantou os olhos do trabalho e eles brilharam com alegria. Seu coração pulsava forte. Perguntou febrilmente:
— Notícias de Kalbe?
— Venho a mando dele, não aguenta mais de saudade de você! Disse a cunhada, esfregando o nariz no nariz de Kenakê, na saudação costumeira de suas tribos.
— Conte tudo, por favor, pediu Kenakê. Sente aqui ao meu lado, conte, conte…
E a noite, chegou, encontrando as duas ainda conversando e rindo. A rainha entrou, ponderando com Mace:
— Está escuro e não convém que você volte hoje. Você veio só com mocinhas. Fica ou quer que mande jovens guerreiros levá-las?
— Fique! Pediu Kenakê, com pena de deixar partir a amiga tão chegada a seu amor e com quem podia falar livremente sobre seus sentimentos.
Mace pensou por uns momentos. Depois respondeu:
— Só posso ficar se alguém for avisar a meu pai. Não pensei que não voltaríamos hoje.
— Fique tranquila, isto é comigo, respondeu a rainha, baixando a cortina de palha do quarto da princesa.
E as duas continuaram suas confissões de amor…
CAPÍTULO 2.
ENCONTROS ROUBADOS… KALBE, UM LÍDER
Mace voltou muitas outras tardes, quando o sol estava morno e ela podia caminhar tranquilamente pela trilha que a levava à aldeia de Kenakê.
Brincavam juntas, com as outras meninas da aldeia: jogavam bola, corriam, tocavam instrumentos primitivos feitos de palha e madeira, cantavam, nadavam no rio, mergulhavam, emitindo gritos de satisfação. Certa vez, Mace disse muito séria a Kenakê:
— Peça aos espíritos das águas que lhe dêem filhos fortes e bonitos. Que os herdeiros de Kalbe sejam reis fortes e valorosos! E a menina jogava a água cristalina no ventre bem torneado da princesa negra que ria, divertida com a brincadeira da cunhada.
— Não ria! Repreendia a outra. Eles são poderosos!
Seu tom de adoração era sincero.
— Não estou rindo dos espíritos das águas, pelos deuses! Defendeu-se Kenakê. Estou sentindo cócegas com a água que bate na minha barriga; e é tão engraçado você falando, Mace…
— Venha para perto da cachoeira; vamos pedir juntas uma união feliz para vocês e muitos filhos!
— Vamos! Respondeu Kenakê divertida.
Numa manhã ensolarada Mace apareceu, misteriosa e sorridente, chamando Kenakê para irem juntas à cachoeira. Como era cedo, lá se foram as duas sozinhas pela floresta. Estava em meio o banho, quando Kenakê notou que a amiga olhava muito para um certo ponto do mato; intrigada, acompanhou o seu olhar e viu, para sua alegria a figura imponente e bela de Kalbe, parado na areia, admirando-a embevecido. Kenakê sorriu encabulada; com sua voz arrastada, Mace sugeriu:
— Vem, meu irmão, a água está tão gostosa!
— E se alguém da aldeia souber? Perguntou Kalbe cauteloso.
— A esta hora estão todos trabalhando na lavoura ou na alimentação, disse Kenakê, o coração aos pulos. Você sabe.
—Venha sem medo, encorajou Mace. Eu vigio. Aproveite um pouquinho.
— Tem razão, disse Kalbe feliz.
Lentamente, com a majestade que imprimia a todos os seus gestos, foi tirando a roupa, a longa túnica branca e vermelha, deixando ver uma espécie de calção que lhe escondia o sexo. Caminhou com toda a elegância dos seus quase dois metros de altura, os olhos cinzentos brilhando de desejo e de felicidade; entrou n’água sem pressa e foi nadando em direção às jovens. Pediu a irmã:
—Vigie, porém fique sempre perto de Kenakê; porque, se formos surpreendidos, ninguém poderá dizer nada de mal contra minha noiva!
— Está bem, ficarei ao lado de Kenakê.
Os dois já se abraçavam e sentir seus corpos lisos e molhados, foi uma sensação inesquecível para ambos.
— Como meu coração fica feliz a seu lado, leoazinha! Murmurava Kalbe ao ouvido da menina. Amo você!
— Também amo você, muito, muito.
Kenakê sensualmente envolvia-se no corpo másculo e negro do noivo. Era uma menina desabrochando em mulher: os seios firmes e pequeninos, as ancas fortes que prometiam arredondar mais quando seu homem a presenteasse com seus hormônios de amor… coxas compridas, grossas e bem torneadas, pernas longas e bem feitas, cabelo crespo, grudado na cabeça redonda e bonita, olhos grandes, vivos e buliçosos, puxados para os lados, profundos e misteriosos, lábios grossos e sensuais, boca pequena, encantadora sereiazinha.
Algum tempo assim ficaram, agarrados, cochichando amor. Depois nadaram, escorregaram na cachoeira, sempre abraçados.
— Kalbe, acho que já deu para matar as saudades, ponderou Mace, cautelosa.
—Viu ou ouviu algum movimento suspeito? Perguntou o rapaz preocupado, soltando Kenakê, não sem antes beijá-la ainda uma vez.
— Não; só os animais da floresta. Mas vocês sabem o costume das nossas tribos: os noivos não se podem ver até o dia do casamento. Dá azar!
— Lá isso é verdade… falou Kenakê estremecendo. Será que os maus espíritos podem atrapalhar nossa sorte? Perguntou preocupada. E… se não podermos casar?
— Nenhum espírito, seja das águas, da floresta, do fogo ou do céu, fará isto conosco! Disse convicto Kalbe, à guisa de juramento.
— Kalbe, não faça assim com os deuses; sobretudo aqui nesta cachoeira sagrada! Pediu Mace temerosa.
— Está bem! Disse o irmão, sorrindo. Que sejam eles os protetores do nosso amor! Assim dizendo, Kalbe molhava o corpo de Kenakê devorando-o com seu desejo.
Outras vezes as moças iam cavalgar pelos campos verdes, nas planícies que limitavam os domínios dos dois reis. Kalbe aparecia cauteloso e os noivos se amavam com toda a ternura que seus corações sentiam.
Mace não escondia sua preocupação:
— Vocês estão brincando com os deuses e os homens! Tomara chegue logo a lua do casamento; tenho medo…
— Não seja boba, minha irmã, consolava Kalbe. Ninguém jamais pensará que estamos aqui no paraíso.
— Escutem! Disse Kenakê empalidecendo.
Neste momento, na mata, um rugido ensurdecedor se fez ouvir. Os três se olharam preocupados.
— Os leões! Voltaram para a planície!
— Montem e vamos voltar correndo para nossas tribos! Ordenou Kalbe, aparentando tranquilidade. Irei para casa. Por favor, vão bem depressa… eles parecem estar ainda longe…
— Sim! Iremos depressa.
Pelos rugidos e a poeira que se via levantar até o céu, dava para perceber que eram numerosos. As moças, velozes, desviaram para a aldeia de Muriatã, não sem antes acertarem a combinação de Kalbe para avisarem à Muriatã e que Mace ficasse quieta até que ele mandasse alguns guerreiros buscá-la.
— Está bem, concordaram as meninas.
— Vá com cuidado e rápido! Pediram ambas.
— Vocês também! Até logo e… entrem na aldeia para que eu fique tranquilo.
— Até logo…
Era quase noite quando Kalbe chegou à aldeia; estava tudo calmo, as mulheres cozinhando a ceia, os homens sentados às portas das cabanas cachimbando, as crianças brincando pelo terreiro. Kalbe caminhava com sua elegância natural. Havia soltado o cavalo para que pastasse livremente. Cumprimentava a todos, brincava com as crianças e para os velhos demonstrava seu profundo respeito inclinando a cabeça com mais lentidão. Quando chegou ao meio do terreiro, bem em frente à sua palhoça já em arrumação para o casamento, chamou um rapaz.
— Paiti, toque o sino. Quero falar a meu povo.
— Daqui, Senhor? Perguntou o rapaz admirado.
— Sim, daqui! É urgente!
Paiti correu a cumprir a ordem. Logo o terreiro estava apinhado de gente: moços e velhos haviam acorrido ao chamado. Kalbe explicou com sua voz grave:
— Meu povo, preciso fazer uma comunicação séria: os leões voltaram para planície!
Um murmúrio de preocupação saudou suas palavras.
— É necessário que um grupo de homens fortes, ladeando o rio, vá à cavalo à aldeia de Muriatã avisar o fato e trazer de volta a princesa Mace. Enviaremos a notícia pelos tambores às outras aldeias. Nossa gente corre perigo, nosso gado também. Novamente vamos nos juntar na luta de sempre. Não para matar, mas para empurrá-los para as grandes grutas outra vez.
— Aos leões! Bradavam todos, erguendo os braços no ar.
E Kalbe, mais uma vez foi o líder vitorioso…
CAPÍTULO 3.
A PRINCESA ENCANTADA
Kenakê tinha dez anos de idade quando Muriatã, seu pai, comprometeu-a em casamento com Kalbe. Este era o costume em suas tribos e a menina passara a olhar Kalbe com olhos apaixonados e suspiros profundos.
Muito sensível, ela gostava das flores do campo e dos animais delicados: cotias, pássaros, garças, etc. Cavalgava com elegância e gostava de correr pela pradaria sem fim dos terrenos paternos. Estava sempre em movimento, embora não descuidasse das tarefas domésticas. Queria ser uma esposa maravilhosa.
Desde pequena tinha o costume de ir banhar-se no rio, brincando nas pedras e escorregando cachoeira abaixo.
Teria talvez sete anos mais ou menos, quando, num desses deslizados na pedra, ouviu uma voz doce que a chamava:
— Kenakê, oh! Kenakê!
— Quem me chama? Perguntara a menina, olhando em torno. Mas, só ouvia os sons naturais da floresta…
— Kenakê! Repetiu a voz.
— Quer parar de brincadeira? É você Luta? Perguntou, na esperança de encontrar uma garota sua amiga, da mesma tribo. Ou você Mace?
— Não… sou eu.
— Eu, quem? Perguntou a menina com medo.
— Eu, … Mali…
— Mali? Estranhou Kenakê. Não conheço ninguém com esse nome. Onde você está?
— Nas pedras grandes e brancas onde você escorrega, respondeu a voz. Olhe: veja se consegue me ver!
Kenakê olhou e… não viu nada! Fixou a vista encabulada e, por encanto, foi surgindo uma forma, foi tomando jeito e ela viu uma menina linda, metade peixe e metade gente, de cabelos longos e bonitos, olhos verdes como as águas do mar… jamais vira alguém assim tão bonito!
— Chi, como você é linda! Falou com sinceridade.
— Você está me vendo? Perguntou a sereia curiosa.
— E não era p’ra ver? Perguntou Kenakê intrigada.
— Os humanos raramente me vêem… é preciso ter coração de criança para ver e ouvir os encantados… explicou.
— Ah! Mas eu vejo! Só que nunca vi encantado mais bonito que você! Disse a menina com admiração.
— Então você acredita em mim?
— Mas claro!
— Que bom! Quanto mais gente crer em mim, em nós encantados, mais aumenta nossa energia.
— Você sabe muitas coisas…
— O tempo é quem traz sabedoria! Comentou filosoficamente Mali.
— Mas você é uma menina como eu… deve ter a minha idade! Admirou-se Kenakê.
— Não se esqueça que sou encantada… já vivia muito antes de você nascer, mas serei por muito tempo ainda, criança, podemos brincar bastante!
— Que bom! Posso ser sua amiga? Pediu Kenakê timidamente.
— Claro, já somos! No momento em que nos vimos e nos gostamos, um elo forte surgiu entre nós. E se mantivermos este sentimento com confiança e ternura, o elo nunca se partirá…
— Vamos então brincar juntas? Pediu Kenakê feliz.
— Está bem. Quando você chegar aqui, pense firme em Mali, que
Mali virá. Mas pense sempre dentro d’água para eu perceber bem depressa, explicou, deslizando suavemente pela pedra sua longa cauda prateada e vindo ao encontro da menina.
— Vou trazer minhas amigas para conhecer você.
— Pode trazer, mas não se esqueça: só algumas verão meu corpo ou ouvirão minha voz… espero que não se entristeçam…
— Está bem… quem vê, vê… que não vê, brinca assim mesmo…
E nesse dia, começou para Kenakê, a filha única de Muriatã, uma amizade que a fez muito feliz e que durou por toda a vida. O rio passou a ser o seu melhor divertimento: juntas nadavam, escorregavam nas grandes pedras, tomavam sol na areia branca. Kenakê cresceu assim, saudável e feliz. Corria, nadava, cavalgava, praticava os jogos da tribo, cantava, ajudava nos trabalhos da casa, aprendia o ofício de ser princesa, e um dia no futuro, rainha. Via Kalbe com frequência, pois as tribos eram vizinhas e amigas e a madrasta de Kalbe irmã de Tara, sua mãe. Crescera vendo Kalbe transitando livremente entre seu povo. Além disso, brincava com Mace desde pequena. Esta partilhava do segredo de Kenakê e ficava triste porque não via também os encantados.
— Não fique triste, consolava Kenakê. Você é tão doce, certamente verá um dia Mali e os outros…
— Tomara que seja verdade! Sonhava a outra.
Na tribo, todos admiravam Kenakê. Imaginavam que a princesa tinha poderes sobrenaturais, embora outras pessoas vissem os encantados e entre eles os feiticeiros. Surgiu logo a lenda que a princesa era filha dos deuses, disfarçada para lhes trazer glórias e felicidade…
E assim, em meio aquele povo místico, foi ela tratada como se fora uma deusa de verdade…
No entanto seu coração amoroso nunca a deixou parecer melhor que os outros, tratando a todos com carinho, sobretudo aos velhos, crianças e doentes, a quem visitava regularmente com os feiticeiros da tribo, levando agasalhos, ervas e conforto, apesar dos protestos dos pais. Eles, por medo de perdê-la, tudo faziam para que não adoecesse ou sofresse qualquer agressão de tribos desconhecidas, inimigas, ou mesmo os animais da floresta…
— Não tenha medo, meu pai! Os encantados da floresta me acompanham em meus passeios. Nenhum animal perigoso chegará perto de mim para fazer maldade comigo! Tranquilizava Kenakê.
— Os encantados que te protejam! Dizia a mãe, olhando preocupada o céu pedindo proteção.
Kenakê tinha uma macaca Kika, que lhe fora dada por Kalbe quando ela fizera 10 anos e houve a festa de sua primeira menstruação.
Quando foi oficialmente declarada sua noiva, ele levou para ela um filhote de pantera, cuja mãe morrera na floresta. Tratados pela menina com meiguice, eles cresceram amigos, como dois cachorrinhos domésticos. E em sua companhia, Kenakê andava pelos domínios paternos sem medo. Até cobras, matava e vencia.
Aos 11 anos encontrou uma cobra não venenosa na floresta com um ferimento profundo: curou-a com as ervas milagrosas dos feiticeiros da tribo e com esses amigos a menina viveu uma infância feliz. Ela batizou-os de: FANA, a pantera, KIKA, a macaca e DUGA, a jibóia de couro pintado.
Kenakê era a flor da tribo de Muriatã; todos eram fascinados com a doçura do seu olhar, a serenidade do seu sorriso e recebiam constantemente os resultados da bondade do seu coração.
Assim, cercada de amor e cuidados, cresceu Kenakê, a futura rainha da tribo malé, alegre, saudável, dinâmica princesa encantada!
CAPÍTULO 4.
KALBE: UM VERDADEIRO LÍDER!
Kalbe era o filho mais velho do rei Quene. Sua mãe falecera quando ele era ainda um garoto, em consequência de complicações de parto ao nascer seu 5º irmão. Quene escolheu entre suas outras mulheres a melhor e a mais bonita e com ela se casou. Jode nunca pode ter filhos e por isso talvez, criou os filhos de Quene com carinho. Os meninos cresceram amigos: sabiam lutar, atirar, usar as armas da tribo e a única menina, Mace, nadava, brincava, ajudava em casa e, embora fossem educados como príncipes, pescavam e caçavam como os demais jovens da tribo.
Kalbe sempre foi belo e elegante; seu coração terno fazia-o dizer com seriedade:
— Quando tiver minha mulher, jamais vou querer outra! Quero ter por ela muito amor, mas só a ela…
— Mas não é assim, comentava Tizo seu primeiro irmão. Você não vê nosso pai? ele tem quatro mulheres; embora a verdadeira seja Jode, ele visita as outras e seus filhos tem os mesmos direitos que nós. Isto é bom para que o homem não fique entediado! Dizia Tizo com convicção.
— Você não se entedia se tem um verdadeiro amor… quando a gente ama, tudo está sempre se renovando! Respondia o jovem que pensara assim desde muito cedo.
— Não sei com quem você aprende tanta besteira, mas… respeito seu ponto de vista!
— Não são besteiras. Quando for rei, tentarei convencer meus súditos a não ter tantas mulheres; quero organizar as famílias de um modo mais regular…
— Está doido? E eu? Perguntou desesperado o irmão. Já sonho com lindas mulheres. Até já tenho na cabeça as que mais desejo…
— Tizo, meu irmão, você ainda é uma criança! Comentou Kalbe, enquanto balançava a cabeça num movimento lento.
— É verdade que a filha de Muriatã vai ser tua?
— O pai disse. E, sabe guardar segredo? Perguntou Kalbe, olhando em volta da palhoça para certificar-se de que ninguém poderia ouvir a conversa.
— Claro! Respondeu Tizo sério e orgulhoso, com a confiança do irmão mais velho.
— Gosto tanto de Kenakê que já queria ser adulto para tê-la em minha palhoça! Suspirou Kalbe.
— Calma, irmão. O tempo passa rápido e logo, logo, a terá. Mas quero ver se quando você for grande, com tanta moça bonita na tribo, se não terá mesmo olhos para mais nenhuma, se não terá as quatro mulheres a que tem direito…
— Não; meu coração só tem lugar para Kenakê, dizia resolutamente Kalbe. Ela não é linda? Perguntava, olhando o irmão como se o achasse incapaz de reconhecer a beleza de sua amada.
— Claro que é bonita e doce; mas… quanto a desprezar as outras, lá isto é besteira… quanto a mim, logo que seja considerado adulto, você vai ver só! As meninas que se cuidem! E Tizo dava uma gargalhada gostosa.
— Pode ser que quando eu seja considerado apto para procriar conheça outras moças, mas tenho certeza: só Kenakê reinará em meu coração!
Tizo olhou o irmão apaixonado. Meditou por uns momentos e depois disse de modo pausado:
— Tenha cuidado, irmão, para não ser um rei tolo. Este seu grande coração pode levá-lo a alguns contratempos!
Kalbe riu seu riso largo, deixando ver os dentes fortes, brancos e brilhantes.
— Não tema: cuidarei para ser um rei vigoroso e valente! Mas não quero ter meu valor medido pelo número de mulheres que conquiste, ou pelo número de guerras que provoque e sim pela justiça com que dirija meu povo e pela brandura de meu coração. Se preciso for, entretanto, este braço, e Kalbe suspendeu o braço musculoso como demonstração de força, vibrará as armas necessárias para que nenhum inimigo tire a paz do meu povo! Jamais serei um rei covarde, mas um rei justo e que não teme a morte; não tenha receio, meu irmão…
— Muito bem! Aprovou Tizo mais tranquilo. Isto nós todos esperamos de você!
— Vou à tribo dos Huaris-Assé. Alguém vem comigo? Perguntou sorridente Jode, enfiando o rosto pela cortina de cipós que separava o quarto dos rapazes do resto da casa.
— Eu, claro! Respondeu Kalbe pulando da esteira com a leveza de um felino.
— Vou também: quero olhar Kenakê para descobrir o que ela tem de diferente que faz meu irmão tão apaixonado!
— Abelhudo! Brincou Jode, voltando ao fundo da casa a fim de preparar o farnel que levariam.
Jode era a irmã mais nova da mulher de Muriatã, que era, portanto da tribo dos Huaris. Viam-se frequentemente e, filhos de uma, enteados da outra, cresciam como irmãos. Sempre que saía, Jode levava consigo Mace. A menina, sendo princesa, tinha de ser muito resguardada. Jode era severa com seus deveres de segunda mãe. Ela avisou às outras mulheres de Quene, as concubinas, pegou os enteados, dividiu os pacotes entre eles e lá se foram pela larga trilha ao encontro da outra tribo.
Houve uma festa muito bonita no dia em que Kalbe foi considerado apto para exercer suas funções sexuais: ele já era homem! Teria mais ou menos 16 anos, a pele negra enchia-se de pelos, o rosto já mostrava sinais de barba e de bigode. Ele usou pela primeira vez sua túnica branca e vermelha: foi a sagração do príncipe herdeiro. Os outros jovens da tribo tinham festa semelhante, mas em seu caso se revestia de um ato especial: seria sagrado futuro rei!
Ficou sozinho numa palhoça, a palhoça dos reis. Era um pouco maior do que as outras, onde o rei meditava e se preparava para os grandes eventos da tribo. Pelo período de um mês, uma lua, o herdeiro ficava lá, meditando nas grandes responsabilidades que teria ao ser futuramente investido rei. Alimentava-se apenas de ervas e sucos de frutas. Recebia somente a visita do feiticeiro da tribo e dos grandes conselheiros que o orientavam para sua futura caminhada. O Conselho dos anciãos ao cair da tarde, vinha trazer-lhe experiências e ensinamentos. Naquela palhoça só ficavam os reis. Qualquer outra pessoa teria que possuir ordem expressa do rei para nela penetrar, houvesse ou não ocupante. Às mulheres era vedada a entrada, salvo em casos especiais.
Assim Kalbe sonhou, pensou, meditou sobre sua vida, seu amor, seus interesses, suas responsabilidades. Na véspera ele foi, acompanhado pela tribo, para seu banho purificador na cachoeira; a água em formas de gotinhas secou em seu corpo ao sol de verão. O terreiro no centro da aldeia estava todo limpo e havia enfeites de folhas e flores. Por aquele caminho perfumado e colorido passou Kalbe com sua elegância, com passo firme. Usava uma tanga. A procissão estacou em frente à palhoça real. O conselheiro mor adiantou-se e, pedindo permissão ao rei com um ligeiro movimento de cabeça, entrou na palhoça precedido de Kalbe e do casal real.
Kalbe vestiu pela primeira vez sua roupa de príncipe: uma longa túnica branca com estreitas listas vermelhas. Isto significava aprender a manter a paz sem fazer guerras. Mais tarde usaria uma parecida, igual à do pai! Vermelha com listas brancas, significando manter a paz, vencendo as guerras…
Kalbe vestiu-se com calma, como a situação merecia, não usaria ainda a roupa de príncipe, mas uma simples túnica branca. Uma virgem da tribo, escolhida entre as mais belas, mais prendada e da melhor estirpe, levaria nas mãos estendidas suas roupas de cerimônia. Ela também vestia túnica branca.
Ele usou a essência de sua preferência; olhou-se com vaidade e concluiu que estava pronto.
— Vamos, disse tranquilamente para o grupo de anciãos.
— Vamos! Repetiram em coro. E continuaram: levaremos o príncipe herdeiro a seu povo!
Solenemente, deixaram a casa do rei.
O terreiro está atapetado de flores. No centro, um acento primitivo de palha, tendo aos lados dois assentos mais altos e mais largos; o povo da aldeia apinhava-se para ver a cerimônia que se repetia de longo em longo tempo. Todos vestiam suas mais limpas e melhores roupas: era dia de festa!
Os tambores começaram a tocar. Lentamente Kalbe se encaminhou para a cadeira que lhe era devida. O feiticeiro mais velho e seus ajudantes tomaram lugar em sua frente. De um lado, o Conselheiro dos Anciãos. Do outro, as mulheres anciãs. Na frente as crianças. Do outro lado esquerdo, a família real. Do lado direito, os convidados de outras tribos e entre eles, Kenakê, vibrando de emoção, ao lado dos pais.
Começaram a tocar uma música primitiva e alegre; as flautas feitas de bambu davam um ar de fantasia ao ambiente. Os jovens guerreiros surgiram do meio do grupo e perfilaram-se em sinal de respeito aos reis, assentados ao lado de Kalbe, Quene à direita e Jode à esquerda.
Reverenciando kalbe, murmuravam palavras em sua língua primitiva que, traduzidas, significavam:
— Os deuses te saúdam, jovem guerreiro! Que saibas, como príncipe, defender a nossa paz.
Kalbe assentia com a cabeça.
Em seguida, os guerreiros pediram licença para dançar. Os tambores rufaram e ouviu-se uma música forte e barulhenta: eles dançavam, os corpos pintados de cores vivas, penachos coloridos na cabeça e lança nas mãos. Pulavam e gritavam, pareciam pedir proteção aos deuses, pois olhavam para o céu constantemente, como invocando as divinas presenças…
Quando a dança acabou, os tambores cessaram por um momento. Fez-se silencio total. Quene levantou-se então e encaminhou-se para o primogênito. O feiticeiro, a um sinal seu, fez o mesmo; trazia nas mãos um pote de barro e uma espécie de pincel grande. Quene chegou em frente a Kalbe que se ajoelhou e baixou a cabeça em sinal de obediência. Quene pronunciou as palavras sagradas:
— Meu corpo fez o teu corpo, meu coração o teu coração, teu espírito é filho do meu espírito. És o primogênito do rei: Rei serás um dia para todo o tempo de vida que tiveres. Rei serás do teu povo para reinar em paz, com justiça e bondade no coração. Zelarás pela nossa crença, cuidando das nossas divindades com respeito e fé. Respeitarás tuas mulheres e todas as mulheres da nossa tribo e as das outras tribos. Amarás às crianças. Saberás venerar os anciãos e anciãs. Serás o melhor dos guerreiros, o mais bravo e corajoso: serás REI DOS HUARIS! Serás REI DOS HUARIS!
— Serás REI DOS HUARIS! Repetiu em coro todo o povo ali presente.
— Respeitarás os fracos, orientarás os jovens, guiarás os guerreiros nos combates mais ferrenhos e os levarás a vitória. Cuidarás da tua família e de todas as famílias da tribo. Ajudarás os enfermos e loucos e a todos aqueles que de ti necessitem. SERÁS REI DOS HUARIS!
— SERÁS REI DOS HUARIS! Repetiam em coro.
— Quando teu primeiro filho varão tiver a prova física de masculinidade, tu o investirás na sublime situação de príncipe herdeiro em que hoje és investido. Respeitarás teu pai e tua mãe, teu rei e tua rainha como teus superiores, mesmo que chegue o momento de seres ungido rei! Que os deuses te protejam! SERÁS REI DOS HUARIS!
— SERÁS REI DOS HUARIS!
Quene fez um sinal ao feiticeiro para que se aproximasse; a mulher mais velha da tribo saiu ao seu lugar em meio às anciãs e, a um sinal do rei, aproximou-se de Kalbe, e o feiticeiro colocou o pincel num dos potes e o entregou a ela.
Pinto teu corpo com as cores dos guerreiros da tribo dos Huaris, pois hoje és um varão a mais na aldeia e todo o povo se regozija com isto: poderás constituir famílias, procriar, partir para a guerra, arar a terra, pescar e caçar, dançar e vadiar com os outros homens. Seja abençoada a tua virilidade!
A mulher pintava e falava ao mesmo tempo, deixando Kalbe igualzinho aos outros guerreiros. Depois do trabalho que fora executado com todo cuidado, ela voltou a seu lugar, fazendo curvaturas de cabeça para o rei, a rainha, o feiticeiro e o príncipe. Era assim que se comemorava a 1ª ejaculação naquela tribo. Kalbe era, de agora em diante, considerado maior, responsável por seus atos diante das leis do seu pequeno grupo humano!
Os tambores continuavam a rufar; virgens escolhidas dentre as mais belas da tribo dançavam com sensualidade provocando o homem que havia em Kalbe: era a prova de fogo para sua tribo. Todos os olhavam com curiosidade; Kalbe sabia que Kenakê também observava suas reações: olhou furtivamente para ela e sorriu. Kenakê correspondeu: ela estava segura do seu amor e tranquila quanto às tentações!…
Quando a dança acabou Kalbe aplaudiu com sincera admiração, pois o esforço das moças fora grande e sua arte, perfeita. Mostrou-se interessado e quando elas vieram prestar-lhe obediência ele lhes sorriu e cavalheirescamente beijou-as uma a uma, três vezes na face e depois esfregando o nariz com nariz: isto demonstrava que ele era agora um homem!
Chegava a parte final da festa: ele seria investido príncipe herdeiro. O feiticeiro avançou para o centro do terreiro e gritou para a tribo:
— O príncipe Kalbe é um varão, pronto para a luta, a procriação, a lavoura, a vida!
Os HUARIS têm mais um varão! Repetiram em coro os assistentes.
Terminada a ovação, o feiticeiro Poemka pegou o pincel e traçou umas linhas que significavam sua condição de homem. Depois, tomando a mão do príncipe, exclamou:
— Agora vamos preparar o príncipe para sua sagração!
Kalbe levantou-se mais uma vez e seguiu-o. Entraram de novo na casa real. Lá tudo já estava preparado; Kalbe bebeu umas ervas que Poemka lhe ofereceu. Bebeu lentamente, saboreando. Depois foram os dois juntos aos altares de suas divindades; de cabeça baixa, ajoelhando, Kalbe prometeu fé e obediência ao deus do fogo, dos trovões, da água, do sol, da lua, das flores, da terra, dos ventos e a todos os antepassados. A anciã entrou trazendo as oferendas. Uma a uma, ela as depositava na espécie de altar armado para a ocasião. No culto aos antepassados os três cantaram em altos brados os feitos gloriosos de cada pessoa da família a que ele pertencia. Algum tempo assim ficaram. Finalmente Poemka deu a mão a Kalbe, levou-o para outra sala onde ungiu sua cabeça, seus lábios, seu pescoço e depois, todo o seu corpo com óleo preparado para a cerimônia. Um perfume másculo e excitante encheu o ar. Depois, com mão firme, Poemka raspou a cabeça de Kalbe deixando um feixe de cabelo à guisa de coroa, no meio da cabeça no sentido ântero-posterior do crânio. À medida que fazia estes gestos, Poemka dizia palavras sagradas. Tudo tinha um sentido profundo. Kalbe respondia emocionado. Chegou afinal a hora de vestir a roupa. Os tambores rufaram de modo diferente. Quene levantou-se e entrou na palhoça real, vestindo ele próprio a túnica vermelha de rei que lhe caia aos pés. Abraçou o filho comovido, esfregaram-se os narizes, e, em seguida, apertaram-se as mãos. O próprio rei tomou a túnica das mãos da jovem que a segurava e que acabava de ser trazida pela anciã. Esperou que a moça se afastasse e elevando a túnica bem alto, disse:
— Visto, ó filho meu, em ti, a roupa de príncipe: é branca para que aprendas a amar a paz e vermelha para que estas listas te levem a meditar que as guerras poderão ser evitadas se sabiamente for mantida a paz. Que teu futuro reinado seja de paz!
— Que seja de paz! Repetiu Kalbe e lá fora todos os imitaram.
Quene tomou do pincel e fez sinais rápidos no rosto do filho, dizendo, ao entregar-lhe a lança de príncipe:
— Que teu rosto seja igual ao de todos os guerreiros, mas que sejas maior, mais corajoso do que todos. O mais corajoso!
— O mais corajoso! Repetiram.
Quene tomou o óleo e ungiu Kalbe.
— Que tua bondade perfume tua aldeia com o acerto de tuas ações!
— Que seja bondoso teu coração!
— Que sejas justo! Disse e colocou nele uma faixa trançada de cipó, à maneira dos civilizados.
— Que sejas justo!
—Que os deuses sagrem o príncipe Kalbe e o reconheçam como seu representante na tribo!
Assim dizendo, Quene abraçou o filho emocionado e abraçados, saíram para o terreiro, tendo Kalbe beijado as mãos de Poemka e da anciã.
Ele estava realmente belo em sua roupa nova: um oh! De admiração perpassou pelo povo; Kalbe olhava-os agora de maneira diferente: sentia-se responsável por eles, por aquela sua pequena comunidade…
Os tambores voltaram a rufar. Kalbe sentou-se novamente na cadeira que lhe era destinada. As crianças, com as cabeças coroadas de flores, tendo nas mãos buquês de flores do campo, aproximaram-se dele. Caminhavam com lentidão, atentas ao que faziam. Na frente vinha uma menina que trazia nas mãos uma coroa de flores; aproximou-se de Kalbe que as fitava sorrindo.
— Com flores a inocência da tribo coroa a cabeça do seu futuro guerreiro maior, seu futuro rei!
E todo o povo repetiu.
Kalbe levantou-se, sempre com elegância e calma, como era seu jeito de ser; ajoelhou-se e sorriu para a criança, baixando a cabeça; esta, emocionada, o coroou.
CAPÍTULO 5.
O ENCANTAMENTO DE KENAKÊ
Seis luas depois, Kenakê teve sua festa de 1ª menstruação; ela teria pouco mais de dez anos. E seus pais marcaram para daí a doze luas a promessa de noivado e o casamento, como já vimos acontecer…
Pouco antes da lua crescente, quando Kenakê deveria recolher-se à palhoça das noivas para aprender as manhas do amor e as artes domésticas, a menina passeava tranquilamente com sua amiga Luta, acompanhadas da macaca Kika, da pantera Fana e da cobra Duga, pela trilha larga que dava acesso à aldeia. Ela saltitava vendo e conversando com os elementais da floresta, das plantas, olhando as borboletas e pássaros, colhendo frutos maduros dos galhos mais baixos e rindo com a amiga das graças de Kika. Tão despreocupadas estavam que não viram a serpente venenosa que se aproximou delas e … zás! Picou sorrateiramente a pele negra de Kenakê…
A menina soltou um grito de susto e Luta olhou aterrorizada para a criatura peçonhenta que rastejava entre as folhas caídas no chão.
– Valham-me os deuses! Falou Luta chorando. Oh! Minha princesa! O que vão pensar de mim? Como pude ficar tão distraída que não vi esta miserável criatura?
Luta gritava, lamentava-se e ninguém aparecia. Kenakê estava ficando com dificuldade de respirar e sua pele tinha uma coloração estranha. Pediu debilmente à amiga:
– Leve-me para a cachoeira sagrada.
– Não é melhor irmos para a aldeia? Lá o feiticeiro tem ervas milagrosas…
– Não; vamos à cachoeira.
Kika e Fana lambiam desesperadas o local da picada, onde sua dona esfregava a mão, pois já sentia a perna adormecida.
Com dificuldade, Luta foi sustentando Kenakê até a beira do rio, enquanto Kika era mandada a toda pressa à aldeia.
– Chame o feiticeiro, o rei e os guerreiros para salvar sua dona! Ordenara-lhe Luta, chorando. Vá depressa!
Kika compreendera e rápida, sumira mato adentro para cortar caminho.
Logo que chegaram à beira do rio, Kenakê começou a chamar com poucas forças que lhe restavam:
– Mali, me acuda! Não quero morrer agora! Não quero perder o amor de Kalbe! Venha depressa, senão é tarde demais… salve minha perna, salve-me … meu … cor … po… des … te … ve … ne … no … no … o …
E Kenakê desmaiou!
Num instante, como por milagre, a praia encheu-se de seres pequeninos, coloridos e preocupados. Iam e vinham, trazendo cada qual folhas de tamanho e aspectos diferentes. Massageavam o lugar da mordida, sopravam nele e um deles chegou a colocar um estilete vermelho e sugar como se puxasse o conteúdo do orifício. Quando se deu por satisfeito, sorriu e sentenciou:
— Nossa menina está salva! E sumiu tão depressa quanto chegara.
Luta nada via; chorava com a cabeça entre as mãos aguardando o socorro da aldeia que tardava. Kenakê estava desmaiada. Neste momento chegou Mali que, tomando-a nos braços, mergulhou-a delicadamente na água. Por algum tempo deixou-a assim ficar. Quando levantou-a e a recolocou na areia, a menina voltara à sua cor normal. Respirava com tranquilidade num ritmo compassado. Os orifícios da mordida haviam milagrosamente desaparecido. Mali também saíra com tanto cuidado, que Luta nada percebera. Esta continuava chorando. Levantou o rosto ao ouvir o alarido do pessoal da tribo: o feiticeiro vinha à frente com Muriatã, as mulheres e vários guerreiros. Luta protestava sua inocência:
— Não tive culpa, não vimos a cobra! Antes fosse em mim! Oh! Deuses! Por que não foi em mim? Soluçava.
— Onde foi a mordida? Perguntou o feiticeiro fazendo calar a menina com um gesto de enfado. Ele segurava nas mãos um pote com ervas medicinais.
— Aqui! Apontou Luta e logo gritou: mas cadê os buracos dos dentes da serpente? Olhem! Kenakê está com a cor normal, respirando, seus lábios não estão mais roxos nem as unhas! Será que… será que… oh! Deuses sagrados, o que aconteceu?
O feiticeiro examinou com cuidado a perna apontada! Nem sequer uma pequena cicatriz havia! Examinou por precaução a outra. Absolutamente limpa! Olhou para Luta desconfiado e perguntou:
— Você não sonhou, Luta, filha de Tingá?
— Não, juro que não adormeci! Estávamos brincando no mato perto do baobá.
— Vamos ver se ainda vive, disse ele.
E Muriatã ordenava:
— Faça o possível e o impossível, mas salve minha filha!
Tara chorava baixinho misturando preces às lamurias mais desencontradas:
— Quero que um formigueiro inteiro roa meu corpo, mas que minha filha seja salva! que todos os peixes do rio roam meus pés, mas que minha filha esteja viva!
— Pára com isso Tara, assim atrapalha o trabalho do feiticeiro! Estas lamentações não ajudam em nada.
O feiticeiro debruçou-se sobre o peito da menina, tentando ouvir seu coração; algum tempo assim ficou. Depois, espantado, olhou Muriatã e sua mulher, exclamando:
— Ela está viva! Eu… eu não sei explicar o que aconteceu!
— Vivam os deuses! Gritou Tara e todos repetiram a exclamação, respeitosos.
— Você viu a serpente? Perguntou o feiticeiro novamente à Luta.
— Vi… eu e Kenakê vimos … ela picou a perna de Kenakê e fugiu, mas tivemos tempo de ver, porque Kenakê gritou com a dor e nós duas olhamos logo para ver o que era … KIKA e Fana viram também… respondeu a menina desanimada.
— De que adianta? Estas duas nem falam… suspirou Muriatã.
— Menina, conte tudo direitinho! Ordenou o feiticeiro, enquanto, por desencargo de consciência, pincelava as pernas de Kenakê com as ervas que trouxera. Depois fez com que ela bebesse algumas gotas de um remédio, que não deveria ser de bom gosto, pois Kenakê fez uma cara de nojo.
— Que devemos fazer agora? Perguntou Muriatã preocupado.
— Levá-la para a aldeia, deixá-la na palhoça das noivas… acho que foi encantada pelos espíritos da floresta! Respondeu o feiticeiro, procurando no sobrenatural a resposta para sua ignorância no caso…
— Oh! Disseram todos em coro.
E a partir daí, Kenakê, foi cada vez mais considerada especial e filha dos encantados…
Ela dormiu três dias e três noites, um sono profundo e calmo. A todo momento o feiticeiro vinha escutar seu coração. E retirava-se perplexo, cada vez mais admirado.
Kalbe foi avisado e seu desespero não tinha limites, sobretudo porque, segundo as leis das tribos a que pertenciam os noivos, não poderiam ver-se em nenhuma hipótese! Limitava-se, pois a receber notícias da menina através dos pais, dos amigos ou Mace e Luta que não se afastavam dela.
Prometia oferendas aos deuses, búfalos, gado, tudo o mais que podia, contanto que sua noiva fosse salva…
Toda a aldeia fazia preces e oferendas, mas Kenakê não acordava…
Só ao fim do terceiro dia, ela parecia ter o sono menos profundo; virava em seu leito de palha e começou a emitir alguns sons ainda dormindo, como se sonhasse… Muriatã suspirou mais aliviado e com ele, toda a aldeia.
Quando raiou a manhã e o sol africano se tornou forte e quente, ela sorriu, abriu lentamente os olhos como quem acorda naturalmente de um sono de uma noite normal de repouso, mas, em vez de falar, olhou as pessoas que a cercavam como se não as reconhecesse e… numa estranha atitude, começou a cantar!
Era um canto suave, dolente. Belo, que emocionava aos presentes, Kalbe ouvia o canto da palhoça em que se instalara desde que Kenakê adoecera; nervoso, emocionado, pediu a Jode que fosse ver o que acontecera. Todos estavam abismados!
Os grandes olhos cinza escuros de Kenakê tinham um brilho invulgar, pareciam dispender chispas de eletricidade, suas mãos imitavam uma dança diferente, seu corpo levantava-se dançando, volteando sensualmente… e Kenakê cantava!
— Não tenho mais dúvidas, declarou o feiticeiro. Nossa princesinha foi encantada!
— E agora, o que vai fazer? Perguntou Tara chorando.
— Minha filha não será mais a mesma Kenakê que sorria, brincava e conversava com todos? Muriatã quis saber.
Tara puxava os cabelos encarapinhados em desespero. Muriatã, sentado no chão, tinha a cabeça entre as mãos. As mulheres da tribo choravam baixinho. E Kenakê cantava ainda…
Ao entardecer, Luta teve a idéia brilhante:
— E se levássemos Kenakê para a praia do rio? foi lá que ela começou a dormir; será que não quebraria o encanto?
— Mas claro! Respondeu o feiticeiro. Não sei como não pensei nisso antes…
Todos levantaram, agarrados à tênue esperança que surgia; Kenakê dançava e cantava como se não houvesse mais alguém no mundo além dela…
Começou uma confusão total na aldeia. Todos queriam salvar a princesinha. Correram às suas palhoças e depressa vestiram suas melhores roupas. Pegavam flores, essências. Jarros com água preparadas pelos feiticeiros, colares, etc e logo depois partiram todos, menos Kalbe, que apreensivo e triste aguardava…
Ao chegarem à praia, Kenakê ainda cantava e dançava. Luta ponderou:
— Vamos ficar escondidos atrás dos baobás e ver o que acontece? Se houver alguma coisa estranha, protegeremos a princesa…
— Muito bem lembrado! Disse Muriatã, olhando com gratidão para Luta.
Kenakê cantou e dançou e seu canto era cada vez mais belo e sua dança cada vez mais difícil e complicada, como se fosse uma boneca de corda, cuja corda não acabasse mais…
Quando os primeiros raios de prata da lua iluminaram a areia, das profundezas do rio, vários encantados nadaram velozmente e, como num passe de mágica, arrastaram Kenakê para a água. E começaram um bailado lindo em que misturavam seus corpos às milhares de flores jogadas na água pelo povo crente da aldeia…
Algum tempo assim ficaram. Poucas pessoas viram a beleza da cena. O feiticeiro viu e entendeu tudo. Todos estavam petrificados olhando Kenakê dançando e cantando. Mas ouvir o coro das encantadas todos ouviam. Agora, o brilho da lua era tão claro, que parecia haver duas luas cheias! Alguma coisa de magia pairava no ar… e as encantadas, uma a uma, com graça e ternura, coroavam Kenakê com flores!
De repente, como tudo começou, a lua voltou a ser nova, o clarão diminuiu, o canto cessou, os encantados mergulharam e desapareceram e Kenakê, qual uma deusa, negra e linda, voltou-se para a praia e perguntou, como se nada houvesse acontecido:
— Luta, cadê você?
— Ela está salva! Gritou Tara abraçando a filha.
— Minha filhinha! Correu a abraçá-la Muriatã, emocionado.
— Ela é encantada, todos de joelhos a adorá-la! Ordenou o feiticeiro.
Kenakê franziu os sobrolhos; não entendia aquela situação; perguntou preocupada:
— Papai, mamãe, que estamos todos fazendo aqui?
Beijava pai, mãe, parentes, amigos. Vendo Mace estranhou:
— Mace, você aqui a esta hora? Kalbe está bem?
— Sim, respondeu a menina, retribuindo seu abraço, embora ajoelhada e chorando de emoção. Kalbe está bem…
— Que aconteceu, Luta? Perguntou, lembrando-se que estava brincando com ela e isto era a última coisa que sabia agora.
Luta ia responder, mas o feiticeiro lhe fez um sinal com a mão e respondeu ele próprio:
— Você deve ter comido alguma erva desconhecida e então dormiu mais do que devia…
— Não me lembro… não me lembro… repetia a menina confusa.
— Não faça esforço, filhinha. Voltemos para a aldeia. A noite chegou e devemos descansar… ponderou Muriatã.
— Voltemos repetiram alguns.
Os altares da aldeia naquela noite dormiram repletos de oferendas pela salvação da filha dos deuses que retornava à sua aldeia, ao seu povo, à sua família e, sobretudo, ao seu amor!
CAPÍTULO 6.
A ARTE DE SER MULHER
O CASAMENTO
Duas semanas antes da data prevista para o casamento, Kenakê já estava instalada na casa das noivas, rodeada de sua mãe, das outras mulheres de Muriatã e das anciãs. Havia jovens também, mas todas casadas, ou que já haviam tido experiência sexual.
Ela acordava com a madrugada, quando os raios do sol ainda ensaiavam timidamente aquecer a Terra. Banhava-se numa espécie de tanque cavado no chão. Perfumava-se com essências preparadas pelo feiticeiro da tribo e era vestida com traje alvejado. Algumas mulheres a ajudavam nos preparos como princesa e noiva que era.
Depois aprendia a cuidar da casa, da alimentação, das crianças. Almoçava numa algazarra de mulheres, em refeição conjunta, todas sentadas no chão, no tapete de palha, ao redor de Kenakê. Nestes momentos a menina sentia falta das suas amigas virgens, de seus folguedos livres no rio e pela floresta…
Depois, um belo descanso quando o calor era insuportável; quando o sol ia se pondo as mulheres, ainda sentadas em circulo, começavam a ensinar à futura esposa os segredos do amor, os efeitos de certas ervas para aumentar a libido, e até mesmo o controle de filhos. Elas mostravam a Kenakê como conviver com seu homem em paz e alegria desde a alimentação da manhã até os atos de amor, que na tribo eram praticados com todos os requintes por eles conhecidos, desde que o homem atingisse o máximo de prazer…
Kenakê aprendia e ouvia com muito interesse o que as outras tinham para lhe contar. Algumas até deitavam e rolavam no chão para mais valorizar seus ensinamentos. À noite, sozinha em sua palha de dormir, a menina corava ao se imaginar com Kalbe a fazer todas aquelas coisas. Kalbe a mexer e remexer com seu corpo, nos lugares mais íntimos, beijá-la, tocá-la e penetrar ali, numa coisa que ficava tão escondidinha! Como poderia ser?
— Invenção dessas mulheres não é, porque mamãe também ouve e confirma. Mas, como pode ser? Vou perguntar a elas com que coisa Kalbe vai penetrar minha intimidade: resolvera a menina.
— Mostraremos a você, respondera sorrindo maliciosamente Mailina a 1ª concubina de Muriatã, ao que parecia, a mais fogosa. Chegando à porta da palhoça chamou seu filho de 4 anos, meio irmão de Kenakê.
O menino chegou, desconfiado, olhando para todas aquelas mulheres. Mailina disse abruptamente, olhando Kenakê:
— Vê? O que serve para o xixi, também serve para o que você pergunta! E, dando uma palmadinha nos fundos do garoto espantado, mandou-o brincar lá fora.
— E … e… gaguejou Kenakê; ele vai fazer xixi em mim?
Riram todas a bom rir.
— Não, disse Tara. Vamos explicar melhor; parece que ela não entendeu bem.
Depois que Kenakê já era conhecedora dos assuntos do sexo, cozinha e casa para agradar a seu homem, chegou afinal a véspera do grande dia. Desde cedo, envolta em panos transparentes, ela foi, cercada pelas mulheres, fazer o despacho da cachoeira. Após o banho, a entrega das oferendas e as bênçãos dadas pelas anciãs, os pedidos de casamento feliz e de fertilidade, a moça foi enxugada por todas as mulheres com muita algazarra. Seu corpo foi untado com essências oleosas perfumadas. Depois, a noiva envolvida em panos brancos, voltaram todas, sem olhar para trás, cantando canções de agradecimento aos encantados.
Kenakê acordou no dia seguinte bem cedo. Olhou o céu e o sol ainda estava azul róseo, colorindo a Terra. Fez sua higiene como de praxe e descansou bastante para que ficasse bela na hora de ver seu amor…
Quando Muriatã perguntou se ela estava pronta e entrou na palhoça para levá-la ao terreiro onde receberiam as bênçãos dos feiticeiros e dos deuses, ficou boquiaberto com a beleza e o perfume que emanava do corpo jovem e bem feito da filha. Vestida de azul claro, a cor do amor entre os da sua tribo, tinha o rosto coberto por véu transparente. Muriatã demorou o olhar na filha: ela crescera, tornara-se mulher e ele nem sequer, havia percebido!
Tara entrou também e, como era costume, pai e mãe, ladeando a noiva, saíram da palhoça e chegaram ao terreiro. Rufaram os tambores e o coro cantou uma música de amor; eles desejavam longa vida aos noivos, paz, muitas mulheres para Kalbe e herdeiros multiplicados.
Várias pessoas ladeavam o caminho e jogavam flores do campo e essências em toda a passagem da noiva, que seguia, olhos baixos, plena em sua beleza e seu amor…
Kalbe acordara cedo também, tal a ansiedade em chegar à aldeia. Perguntara ao pai se sua palhoça estava pronta, pois o noivo não podia entrar nela antes do dia do casamento. Eles acreditavam que os maus espíritos que lá estivessem, o noivo poderia sofrer uma cilada. Fora feita uma preparação pelos feiticeiros e oferendas. E toda a aldeia partira, vestida em suas melhores roupas, para assistir ao casamento do seu príncipe. Kalbe estava belo em sua roupa branca e vermelha; elegante, sorridente, ele tremia de emoção enquanto seus olhos cinzentos seguiam os passos lentos da noiva que vinha ao seu encontro. Ele sabia que não poderia tocá-la, senão depois que os feiticeiros das duas tribos dessem a ordem. E estava impaciente…
Kenakê vinha tão emocionada que parecia não querer chegar, tão lentos eram seus passos. Quando chegou perto, nem levantou os olhos para ele: uma noiva de sua tribo não poderia em nenhuma hipótese, parecer ansiosa!
Os feiticeiros se arrumaram em fila e começaram novas oferendas. Perfumes enchiam o ar fresco da tarde de primavera. Eles estavam lado a lado, acompanhando a cerimônia. Em dado momento foi perguntado a Kalbe se aceitava aquela mulher como sua primeira esposa. Ele respondeu, alto e de maneira clara:
— Sim, aceito Kenakê, filha de Muriatã e Tara, princesa da aldeia dos Huaris-Assé, como minha primeira e única mulher!
— Um oh! De admiração perpassou pela assistência; jamais algum outro jovem diria isto…
Kenakê sorriu de leve, feliz com a coragem e o amor demonstrados por seu noivo.
Depois Kenakê foi perguntada e ela respondeu com um gracioso balançar de cabeça.
— De hoje em diante, viverás em sua palhoça para servi-lo, dar-lhe prazer e numerosos filhos, quantos ele queira. Tu o queres?
— Sim, por toda a minha vida! Respondeu a moça.
Um grande aro feito de flores foi preso nos noivos de modo que ficassem bem unidos. Poemka falou:
— Assim como esse aro de flores une vossos corpos agora, assim também sejais unidos por todo o tempo na Terra!
— Estaremos! Responderam os dois e pela posição em que estavam foi a 1ª vez em toda a cerimônia em que se olharam nos olhos. Kenakê não resistiu e olhou profunda e docemente para aquele homem lindo que tivera a coragem de, em público, declarar seu amor.
Poemka dava-lhes agora uma bebida.
— Que o prazer que esta beberagem vos há de proporcionar nesta primeira noite, seja saboreado em vossos corpos em todos os dias e noites em que estiverdes juntos!
— Que o prazer seja nosso companheiro por todo tempo! Repetiram os dois ao beber o líquido amarelo e efervescente.
Depois, segurando a cuia com as mãos juntas, os dois viraram-se e de uma vez quebraram-na e ela se estilhaçou em pedacinhos bem pequeninos.
— Oh! Murmurou o povo: eles serão felizes!
— Que sejamos felizes! Disseram os noivos.
— Assim como te passo esta essências, Kenakê, passo meu amor. Que sempre nossa vida tenha o perfume da felicidade!
Kenakê untou Kalbe com a mesma essência e disse as mesmas palavras; uma criança da assistência chamada por Poemka retirou com cuidado o anel de flores e os dois foram considerados marido e mulher!
Foram então com as famílias e os amigos assistir às danças e às cantigas do povo.
Kenakê estava ligeiramente tonta e excitada com a beberagem que Poemka lhe havia dado. Era tarde já. Quando Kalbe perguntou baixinho em seu ouvido:
— Vamos fugir pra casa?
Ela assentiu com a cabeça; não tinha coragem de falar.
Uma palhoça era preparada para os noivos passarem sua primeira noite. Para lá eles se dirigiram, com o povo atrás cantando e dançando para afastar os maus espíritos que por acaso lhes quisessem fazer mal…
Entraram lado a lado e Kalbe cuidadosamente fechou a cortina que impedia a passagem. Lá fora havia uma máscara horrenda que significava que os maus espíritos não poderiam entrar para perturbar a paz do casal.
Kalbe levou muito tempo conversando com Kenakê sem tirar-lhe o véu; depois, o desejo foi mais forte: puxando-a com ternura foi beijando-a, beijando-a, até que a própria menina, gemendo de prazer, murmurou, agarrada a ele, num abraço de entrega:
— Vem…
Passaram a noite abraçados, sussurrando palavras de amor. Kenakê sorriu ao pensar que haviam ensinado tanta coisa a ela.
— Para que? Kalbe sabe tudo! E aconchegou-se toda ao corpo belo e jovem do seu amor…
Os primeiros raios do sol vieram encontrá-los abraçados no leito perfumado, de palha, como se fossem uma só pessoa…
CAPÍTULO 7.
KENAKÊ MÃE!
O grito de Kenakê fora ouvido por toda a tribo que esperava no terreiro, em silêncio, como era costume. Significava que a penetração se completara, Kenakê era, afinal, mulher de Kalbe e futura mãe de seus herdeiros!
A tribo cantou e dançou em seguida ao grito, quase um gemido, festejando os noivos. No dia seguinte, Kalbe, orgulhoso, pendurou na porta da palhoça o pano que lhes servira de coberta, com as manchas de sangue que fizera a menina, mulher.
E as pessoas vinham caladas, respeitosamente, admirar a força da natureza, quase com devoção, o sangue feminino derramado pela força do amor masculino.
Depois dos festejos, Kalbe e Kenakê, acompanhados por parentes e amigos partiram para a aldeia do marido, a palhoça onde morariam por toda a vida de agora em diante.
Não foi sem saudades que Kenakê abandonou a casa de Muriatã: chorou ao dizer adeus aos seus brinquedos, aos seus aposentos. Chorou ao beijar os pais e avós, as companheiras de folguedos. Pedia a todos:
— Venham sempre me ver! Quando puder, virei aqui…
E todos choravam também, pois Kenakê era doce e alegre…
Poemka foi levá-los. Como de praxe ele deveria entrar primeiro na palhoça do casal e limpá-la de todo malefício; ele o fez com segurança e perfeição.
E chegou a rotina da vida. Kenakê fazia tudo com tanto amor, que nunca sentia cansaço ou aborrecimento. Viver ao lado de Kalbe era tudo que queria da vida. Juntos aprimoravam cada vez mais as artes do amor. Juntos fruíam uma felicidade que dava prazer a todos que os viam abraçados à noite, quando a lua clareava o terreiro e os dois conversavam e riam até alta madrugada, ou cantavam palavras de amor, acompanhados pelos instrumentos primitivos da tribo.
Um dia Kenakê notou que seu sangue menstrual não viera mais. Alegrou-se porque se imaginava grávida. Mas, para não dar uma noticia falsa ao marido, pretextou uma visita à mãe e lá se foram ela, Mace e Jode à tribo de Muriatã.
Quando o feiticeiro examinou-a, declarou com um brilho de felicidade nos olhos:
— O corpo de Kenakê é sagrado e saudável! Terá o filho varão que Kalbe deseja! O herdeiro dos Huaris!
— Tem certeza? Perguntou a menina.
— Claro! Veja estas folhas de benzeção: quando tomam esta forma, não tenho duvidas em afirmar que a criança será varão!
Kenakê beijou com gratidão a face enrugada do velho; mas nada disse à ninguém. Primeiro falaria com Kalbe. Quando se preparavam para retornar, Kalbe chegou impaciente por estar longe de sua mulherzinha.
— Vamos tomar banho de rio? Ele perguntara.
— Vamos! Ela aceitara animada.
Assim longe de todos, ela poderia dar-lhe a boa nova.
Chegaram à praia do rio, deserta àquela hora. Kalbe pegou uma folha grande e a prendeu num arbusto; isto significava que alguém estava tomando banho e não queria ser incomodado, podiam ficar à vontade, porque as pessoas ali respeitavam os sinais convencionais.
Kalbe tirou sua roupa sem pressa; Kenakê olhava-o sorridente, antegozando o prazer da noticia que lhe ia dar. Ficando com um leve calção que usava por baixo da túnica à guisa de cueca, ele puxou Kenakê para si e apertando-a carinhosamente, começou a beijá-la no rosto, nos olhos, na boca, no pescoço: ela gemia, apertava-se cada vez mais ao corpo dele, abraçava-o, mordia, beijava…
Kalbe foi delicadamente descendo a túnica de Kenakê até que seu corpo negro e perfeito apareceu diante dos olhos cheios de desejo que a devoravam de amor.
Kalbe continuava beijando-a agora no colo, nos seios, no ventre, e mais e mais, quando Kenakê pediu, quase num gemido:
— Vamos p´ra água? E puxou o marido com carinho.
— Você prefere lá? Perguntou ele divertido.
— Hum… hum… fez ela com ar misterioso. Quero a força da água para nosso amor.
Kalbe entrou n’água carregando Kenakê em seus braços fortes. Continuaram com os jogos amorosos e quando sentiu que haviam chegado juntos ao êxtase, Kenakê gemeu:
— Espírito das águas, nos dê filhos fortes e lindos como você!
— E como você, minha querida! Disse Kalbe emocionado, envolvendo-a nos braços para as caricias de depois do amor…
Ficaram algum tempo assim calados, deitados na água pertinho da areia, no raso. De repente, com um suspiro, Kenakê quebrou o silencio:
— Kalbe? Perguntou timidamente.
— Sim, querida? Disse ele, virando-se totalmente para olhá-la, enquanto alisava seus cabelos curtos e encarapinhados.
— Você me ama tanto quanto na primeira noite?
Kalbe estranhou a pergunta. Refletiu um pouco e respondeu:
— Kenakê, acho que deve ter acontecido com você o que aconteceu comigo…
— O que? Perguntou a moça sem entender.
— Eu a amei desde menino; primeiro um amor sonhador de ver você na lua e nas estrelas, nas flores dos campos, nas águas do rio e nas ondas do mar… depois, rapazinho, comecei a desejar você como companheira. Quando me tornei homem, meu desejo cresceu e houve épocas em que eu confundia o desejo com o sentimento. Na verdade eu sabia que queria você! Na nossa primeira noite, confesso, fui o mais feliz dos homens. Nenhuma das mulheres da minha tribo, nem das outras tribos que conheci, me deram o prazer que você me deu, minha leoazinha!
Kalbe acariciava de leve o rosto mimoso da esposa.
— Ter você só para mim, inteira, sem reservas, foi o prazer mais completo que a vida me deu! Hoje, entre nós alem do amor, do respeito, há este laço de carne, tão estreito, tão íntimo, que faz de mim seu escravo: você é a dona dos meus prazeres. É em seu corpo que encontro o alívio que o meu corpo guerreiro necessita, no descanso e no desejo. Nós agora dividimos tudo: o pensamento, a casa, a comida, os corpos, o amor… você sou eu e eu sou você! Nada, nem ninguém, entre nós! Por tudo isto, afirmo sem receio, que hoje eu a amo centena de vezes mais do que naquela noite, a nossa noite de primeira entrega… e você? Modificou o seu amor?
— Kalbe, oh! Kalbe! Eu amo tanto você que nem sei explicar com palavras… é muito forte em mim esse amor…
— Então empatamos e isso é muito bom…
Recomeçando a beijá-la, Kenakê desvencilhou-se com cuidado dos braços do marido e disse-lhe de chofre:
— Kalbe, tenho uma notícia importante para você, a mais importante para mim…
— Noticia? Perguntou Kalbe, franzindo o sobrolho. Fale, minha querida, porque está tão séria?
Kenakê sorriu docemente. Perguntou, como garota levada que era:
— Não adivinha?
Kalbe pensou um pouco. Estouvadamente, abraçando-o com força Kenakê sussurrou em seu ouvido:
— Meu sangue lunar não veio há duas luas. Veja! Veja! Tomando-lhe a mão direita, colocou-a no ventre e completou: estive com Poemka e ele fez uns exames. Vou ter um filho e Poemka diz que será varão!
Kalbe olhava para Kenakê embevecido. Beijou-a longamente e depois, comovido, perguntou:
— Por que não me contou antes?
— Porque só queria falar quando tivesse certeza. Ninguém mais sabe nem mamãe. Só Poemka e Danka, os feiticeiros.
Ali mesmo, na areia, os dois rolaram em mais um ato de amor físico. Kalbe coroava a noticia com mais uma posse da mulher amada!
Em ambas as aldeias houve festas com tambores, cantos e danças pela chegada do herdeiro. Todo mundo cuidava de Kenakê, mas ela continuava a perambular pelo mato com Kika, Fana e Duga, a brincar com as amigas Luta e Mace, a nadar no rio, embora fosse uma dona de casa cuidadosa, com seus deveres sempre cumpridos.
Kenakê tinha um corpo perfeito em seus 1,76m de altura. Esbelta e negra, com uma bacia que se alargava mais e mais à medida que o feto se desenvolvia, já não parecia mais a menina do dia do casamento. Os seios nus, intumescidos, rijos e bem torneados, as ancas largas, a barriga já arredondando, ela ia e vinha com seu jeito manso e leve de gazela, sempre ativa e despreocupada, como sabem ser as mulheres bem amadas… Kenakê vivia sorrindo e por isso era chamada de princesa feliz…
Sempre à noite, quando os dois estavam deitados na esteira de palha, Kalbe puxava-a para perto dele e colocava o ouvido no ventre fecundado que agora carregava seu filho. Kenakê ria divertida e deixava o marido à vontade, enquanto ele alisava e alisava sua barriga com muito respeito, pois ali, ele sabia, a natureza se ocupava de uma tarefa divina: estava fazendo alguém e esse alguém era o fruto do seu amor, seu filho e de Kenakê! Uma noite, depois de alisar, pensar e pensar, ele perguntou abruptamente:
— Como vamos chamá-lo? E se for uma menina igualzinha a você?
Kenakê deitou-se de lado e segurou o rosto com as mãos. Fixou no marido seus olhos cinzentos, pensando. Depois respondeu:
— Não tinha ainda pensado num nome. Poemka e Danka dizem que será varão. Que tal Kalila, que significa fruto de um grande amor?
— Lindo, querida leoazinha! Fruto de um grande amor e é isso que ele é! Nosso filho será rei um dia, será bravo, será grande! E deixará na Terra o maior vestígio do nosso amor!
Kenakê ria deliciada com o entusiasmo do marido.
E se amaram de novo, para festejar a escolha do nome…
CAPÍTULO 8.
O NASCIMENTO DO HERDEIRO
Kalila nasceu algumas luas depois.
Kenakê amanhecera com umas cólicas que a incomodavam. Pediu a Mace que fosse com ela ao rio; Kenakê queria pedir a Mali para ela ser a madrinha encantada de seu filho. Mace perguntou preocupada:
— Será que o neném está para nascer? Sua barriga está tão grande.
— Deve nascer a qualquer momento, respondeu Kenakê com tranquilidade.
— Vamos chamar então as mulheres anciãs… ponderou Mace.
— Qual nada, disse Kenakê; vai demorar um tempo ainda… não é p’ra agora não.
— Cadê Kalbe?
— Hoje ele foi à caça com os outros guerreiros; não quis dar uma preocupação à toa a ele.
— Mas é o pai da criança! Disse Mace horrorizada. E se nascer sem ele aqui?
— Ora, nasce. Quando Kalbe chegar, vê, sua boba! Mas ele é bonzinho e vai esperar o papai, não é querido? Kenakê acariciava o ventre esticado.
Mace sorriu enternecida.
— Tomara que seja um varão. Vou gostar tanto deste bebê como se fosse meu filho! Você deixa eu brincar e cuidar dele?
— Claro, irmã, respondeu Kenakê sorrindo.
— Mas eu sou ainda solteira, as mulheres da tribo…
— Não tenho nada a ver com as mulheres da tribo. Tenho com você que é como minha irmã. Vai olhar, brincar, cuidar e criá-lo comigo. Ninguém melhor que você, sua boba…
— Que bom! É tão confortante ouvi-la falando assim!
Kenakê sorriu. Insistiu com a cunhada:
— Vamos ao rio?
— Se é assim, vamos!
Acompanhadas como sempre dos animais de estimação que não largavam sua dona, lá se foram as duas; nadaram, brincaram e, de repente, vinda ninguém sabe de onde, Mali surgiu. Veio nadando sorrateira e de um pulo… estava juntinho de Kenakê! Esta sorriu ao vê-la e correu para abraçar a amiga.
— Não! Disse Mali, fugindo ao gesto de carinho. Um mortal pode me ver, mas nunca me tocar!
Kenakê fez um arzinho triste, mas obedeceu.
— Sua bobinha, confortou Mali. Você me vê, fala comigo, os outros nem isso fazem… veja! Mace está espantada olhando para você: pensa que está falando sozinha, porque nem sequer percebe que eu cheguei…
Kenakê olhou para a cunhada e soltou uma risada gostosa:
— Venha, Mace, é ela! Veja como é linda!
—Ela, quem? Algum espírito das águas? Perguntou Mace desconfiada.
— Sim, Mali, minha amiga, minha irmã…
— Mas… mas, eu não vejo nada! Declarou a mocinha com desconsolo na voz.
— É assim mesmo… um dia, quem sabe… você poderá vê-la e, quem sabe até brincar com ela…
— Que nada! Não sou semi-encantada como você…
Mali sorriu e perguntou de chofre à Kenakê:
— Está sentindo que o bebê está perto de vir?
— Estou, respondeu a menina com simplicidade. Quero que você faça alguma coisa por ele; por isso vim aqui…
— Eu sei, respondeu vagamente Mali, olhando com atenção para outras sereias meninas que vinham ao seu encontro. Recebi seu chamado. Venha mais para o fundo… assim… deixe que a água banhe sua barriga por inteiro!
Kenakê obedeceu docilmente, pois tinha fé. As encantadas fizeram um círculo em redor dela, cantaram e dançaram; Mace havia se retirado para a margem do rio e observava a cunhada com ar preocupado. Kalbe chegou sem fazer ruído e sentou junto à irmã, pois imaginou logo o que a esposa estaria fazendo, dentro do rio, com aquela expressão séria, que ele tão bem conhecia.
— As encantadas estão com ela, explicou Mace.
— Eu sei, respondeu tranquilamente Kalbe, sorrindo para Mace; acho que está na hora do meu filho nascer.
— Kenakê amanheceu com umas cólicas…
— Ah! Então está na hora mesmo! Admirou-se Kalbe. Não devemos fazer alguma coisa?
— Acho que só esperar; Kenakê sabe o que fazer. Nestas horas as mulheres é que fazem alguma coisa. Fique calmo, do jeito que ela é, filha dos encantados, o bebê nasce brincando!
Kalbe sorriu: tinha orgulho da mulher. Todos sabiam que ela via e ouvia os encantados e conversava com eles. Kalbe pensava, como todos da sua tribo, que ela era encantada também; por isso, tinham um afeto respeitoso pela moça…
— Chame seu marido agora, ordenou Mali.
Kenakê sentiu que suas dores pioravam; as cólicas haviam aumentado e uma leve sensação de desconforto a tomava toda. Explicou a Mali, preocupada:
— Ele não está perto; saiu para a caça hoje cedo.
— Vire-se! Ele está ao lado de Mace.
Kenakê olhou surpresa e realmente viu o marido que a fitava ansioso.
— Kalbe querido, chamou, venha até aqui.
— Mace também pode vir; ela é sua amiga!
— Mace também… pensei que você estava na caça.
— Estava… mas um pressentimento estranho me trouxe aqui, respondeu ele baixinho.
— Fomos nós que o trouxemos para receber nos braços seu primeiro filho. Preste bem atenção: quando o bebê chegar, segure-o sem medo, mergulhe-o três vezes na água e depois enrole-o em seus braços. Nós o encheremos de forças positivas neste momento. Feito isso, proteja-o e vá depressa para a tribo.
— E o culto aos ancestrais? Deveria ser realizado antes da chegada do bebê… desculpou-se Kalbe, respondendo à Kenakê, pois ele próprio não podia ver absolutamente nada.
— Não tem importância agora… faça-o assim que chegue à aldeia. Mande virem buscar Kenakê numa padiola; uma princesa não deverá chegar à pé, após ato tão importante em sua vida! Mace cuidará dela.
Kenakê preocupada traduzia tudo para o marido.
— Está bem, respondeu Kalbe nervoso. Farei como é mandado!
Mace observou a água tingir-se de sangue: Kenakê fazia movimentos naturais com as pernas e o sangue ia-se diluindo na água que ia ficando cor de rosa… ela gemia, gemia… mas logo Kenakê avisou feliz:
— Já sinto o neném saindo!
Não demorou muito e um bebê forte, negro e grande, pulou n’água como um pequeno peixe.
Kalbe segurou-o sentindo seu corpinho escorregar entre suas mãos fortes. Mergulhou-o como Mali havia mandado e as encantadas do rio jogavam em direção à criança bênçãos em forma de chuva de prata. Depois, a um sinal da esposa, ele vagarosamente envolveu-o nos braços, beijando Kenakê com um mudo agradecimento no olhar e, sem olhar para trás, levou seu precioso tesouro para a tribo, recomendando à irmã que assistia a tudo emocionada:
— Muito cuidado com ela!
— Eu sei, respondeu simplesmente Mace.
— Vocês vão chamá-lo Kalila, eu sei. Mas antes deste nome, usem um da nossa língua: Taja, que significa pequeno peixe. Este nome, o livrará de todos os perigos que tenha de enfrentar na vida, firmando-o como um dos nossos.
— Diga a ela que eu agradeço, emocionado, respondeu Kalbe para que Kenakê transmitisse o recado. E foi pelo caminho repetindo:
— Taja Kalila, pequeno peixe fruto do nosso amor.
Foi uma festa na aldeia quando o pequeno príncipe chegou. Todos correram e ajoelharam-se, saudando o filho da princesa encantada e afilhado das encantadas sereias.
Logo depois Kenakê despedia-se das amigas do rio e agradecia e feliz, esperava na praia, deitada ao lado de Mace, que a viessem buscar…
Como era de praxe, Kenakê compareceu ao culto dos antepassados. Sua família, chamada às pressas, também estava presente. Todos comentavam o nascimento do futuro rei dos Huaris:
— É encantado também, igualzinho à mãe, comentavam.
O culto dos ancestrais era longo e cansativo. Kenakê foi dispensada de assistir todo, mesmo porque o bebê berrava pelo calor materno e pelo leite que o alimentaria…
CAPÍTULO 9.
O PRIMEIRO AMOR DE FANA, a pantera.
O SEGUNDO FILHO DE KENAKÊ
Taja Kalila foi um bebê, forte, sadio. Só chorava quando tinha fome ou sono. Ou quando estava molhado. De Kenakê herdara apenas os olhos cinzentos, grandes e profundos. Do pai, os traços marcantes.
Uma tarde, Kalbe conversando com Kenakê na porta da palhoça, onde costumavam ficar abraçados, comentou:
— Já é tempo de pensarmos em casar Mace; ela já teve a festa da 1ª menstruação e até agora não pensamos em um noivo para ela… você sabe se ela tem alguma preferência?
Kenakê sorriu; só ela sabia o segredo da cunhada. Perguntou cautelosa a Kalbe:
— Você me dá um tempo para consultá-la?
— Claro! Quero que nossa irmã seja tão feliz quanto nós… não quero forçá-la à uma união sem amor!
— Também penso assim… vou conversar com ela amanhã cedo e à tarde, já saberemos o que pensa …
As preferências de Mace eram por um jovem guerreiro de sua tribo; ela concordou que a cunhada contasse a Kalbe seu segredo.
— Tinha de vir perguntar primeiro, explicou Kenakê; não poderia trair um segredo seu!
— Compreendo irmã e agradeço. Pode dizer a Kalbe que eu ficaria feliz casando com Ugatú… e ele me corresponde, você sabe; mesmo assim, quero que ele seja consultado. Kalbe pode cuidar de tudo…
Mace deitou em seu leito de palha e sorriu; colocou os braços cruzados atrás do pescoço para proteger a cabeça e se deixou ficar sonhando, pensando em Ugatú… depois de algum tempo, Kenakê perguntou:
— Acorda menina! Vamos passear no mato? Levaremos Taja Kalila conosco…
— Vamos, concordou Mace de um pulo, pois adorava o sobrinho.
Kenakê pendurou nas costas a cesta que segurava os bebês Huaris, com o linho amaciado forrando seu interior para o conforto da criança. Pegaram frutos e partiram pelo mato adentro com Kika, Guta e Fana, como sempre. Cada uma pulava nas árvores ou se enroscava nelas e as duas riam a bom rir, divertindo-se com as diabruras de Kika, que lhes trazia bananas descascadas para comerem.
Chegou o casamento de Mace, com festa e danças. À noite, quando a cunhada se recolheu à palhoça dos noivos, Kenakê sussurrou para Kalbe, com cuidado para que ninguém ouvisse:
— Meu querido, vamos ter outro bebê!
— Já? Perguntou Kalbe feliz. Outro bebê!
— Psiu! Não quero que os outros saibam ainda. Não vamos estragar a festa de Mace com assuntos nossos!
— Entendo… assim, todos viriam festejar nosso novo filho e a festa seria dividida. Kalbe olhou para a mulher com os olhos cheios de amor. Como Kenakê é boa! Pensou.
Quando o segundo filho de Kalbe e Kenakê nasceu, sete luas depois, Mace já sabia que iria ser mãe. Confidenciara para a amiga sorrindo:
— Você vai ter um sobrinho.
— Que bom! Dissera Kenakê e presenteara a futura mamãe com a flor mais colorida e perfumada de seu jardim.
Kenakê repetiu o mesmo ritual da primeira vez. Só que agora, apenas Kalbe a acompanhara, pois Mace estava doente, com febre. Quando a criança chegou, Mali pediu:
— Querem chamá-la Taja Zungali, que em nossa língua significa: “pequeno peixe que desponta para o poder”?
Kalbe e Kenakê concordaram e acharam o nome lindo. Só não sabiam a grande verdade que ele encerrava…
Com os dois filhos os trabalhos de Kenakê aumentaram. Ela se fizera mulher e sua beleza resplandecia deslumbrante, deixando Kalbe, mais e mais apaixonado…
Um dia, Fana, a pantera, apareceu ansiosa, entrando e saindo da aldeia, olhos faiscantes, saltitando … Kalbe comentou com Kenakê:
— Parece que Fana está apaixonada! Chegou a hora de arranjar companheiro.
— É… ela está estranha hoje … e ordenando ao animal enquanto afagava sua cabeça dourada:
— Vá Fana, vadiar pela floresta!
Fana obedeceu à dona, como se entendesse suas palavras. Vários dias ela ficou sem aparecer, Kenakê chorosa, comentava arrependida do seu impulso de soltá-la no mato:
— Será que morreu? Será que foi tão longe que não achou o caminho de volta? É tão mansinha!
— Ela volta, não seja tola, meu bem, respondeu Kalbe esfregando seu nariz no da mulher, num gesto de carinho. Fana nasceu na floresta, sabe como ninguém andar por lá: deve certamente estar usando a liberdade de procurar seu companheiro. E quem sabe se não o achou?
Mas Fana não voltou durante aquela primavera em que teve seu primeiro cio. E Kenakê chorou muito com saudade de sua companheira.
— Ingrata, comentava ela com Mace. Nunca mais voltou nem para me dizer se estava feliz… oh! Mace, tenho tanta saudade daquela pantera.
— Um dia ela volta, na certa com um bebê pantera para você criar, consolava Mace.
Novamente Kenakê engravidou. E dessa vez, nasceram gêmeos: dois meninos! E Mali, com sua voz doce, colocou seus nomes:
— Você deixará que sejam Taja Kiriê (pequeno peixe que ilumina) e Taja Kiriã (pequeno peixe que conduz a luz)?
— Claro que deixo! Respondeu Kenakê radiante. São nomes lindos! Estou tão feliz!
Kalbe só fazia concordar, orgulhoso de seus filhos varões.
Naquela primavera, Fana voltara. Chegara mansamente, olhar baixo, como a pedir perdão. Cheirava Kenakê, os meninos. Era manhã cedo e Kalbe já partira para pescar com os homens da tribo. Kenakê chorava de alegria e acariciava o pêlo dourado do animal. Fana deitou-se a seus pés; depois, levantou-se e deu uma volta pelo terreiro. Kenakê procurou-a com o olhar: Fana voltava agora com um bebê pantera na boca e perto da floresta, o macho olhava a cena, defendendo a família.
Kenanê sorriu ao vê-los e saindo para acariciar o pequeno animal, logo arrependeu-se ao ouvir o urro surdo do pai. Fana virou-se para ele imitindo sons. Ele pareceu acalmar-se e Kenakê pode acariciar o animalzinho e conduzi-lo para casa. Era como se Fana houvesse dito:
— Ela é minha dona, não irá fazer mal ao bebê! Agora iremos visitar sua casa.
E lá ficou Fana, indo e vindo, cada vez com mais filhotes, mostrar orgulhosa a prole que crescia.
Foi numa primavera, quando a terra se cobria de flores e havia o mistério do amor no ar, que Kenakê deu à luz sua primeira filha mulher. Por esta época Mace já estava com seu filho grandinho. Luta, casada, esperava o segundo.
Repetiu-se o mesmo encanto dos primeiros partos, só que agora eles faziam o culto dos ancestrais antes do costumeiro passeio ao rio. Quando a menina nasceu, Mali também propôs o nome:
— Que tal Suian Mali?
Kenakê traduziu para o marido.
— É lindo, concordaram os dois.
— Que significa? Perguntou Kenakê interessada.
— Sereiazinha da primavera.
Novamente Kenakê explicou ao marido.
— Será este então, decidiu ele. É lindo!
— Mas… Mali não é seu nome? Perguntou Kenakê intrigada.
— Mali significa filha de sereia. Meu nome mesmo é Suian: Primavera.
— Obrigada! Quer dizer então que dá seu próprio nome à nossa filha? Fico tão honrada! Disse a moça com emoção e traduziu para o marido a homenagem.
— Obrigado! Balbuciou Kalbe também emocionado, enrolando a filha no linho principesco que trouxera. Somos muito gratos por sua bondade, Suian Mali! De costas, ele foi passando pela praia, entrando no mato, pegando a trilha e afinal, rumando para aldeia.
As crianças cresciam; Duta morrera atropelada por um arremedo de carro puxado a búfalos, que transitava pelo terreiro. Kekakê chorou muito e Kalbe mandou tirar o couro, curti-lo e o colocaram na porta da palhoça como recordação. Agora só restava Kika, que vivia brincando com os meninos pela aldeia.
A beleza de Kenakê atingia a plenitude; esbelta, de corpo bem feito, ela crescera mais e conservava a cintura torneada, apesar dos partos que tivera. Os seios estavam rijos e maiores. As coxas, grossas e compridas, sustentavam ancas redondas e sensuais.
Uma noite, depois do carinho do amor físico, Kalbe comentara:
— Você está cada vez mais bonita e provocante, leoazinha! Ter filhos só lhe faz bem.
— Ih! Marido apaixonado… respondera ela sorrindo. E meu príncipe, lindo, lindo, como um leão?
Ele sorriu vaidoso.
— E por falar em filhos… dissera ela sorrindo.
— Mais um? Perguntara Kalbe ansioso.
Ela confirmou com a cabeça.
Kalbe e Kenakê já tinham sete filhos, todos fortes e saudáveis quando Quene, o rei, após uma longa doença e muito sofrimento, morreu.
Houve as cerimônias fúnebres, que duraram vários dias e noites. Os feiticeiros prepararam o corpo untando-o com ervas perfumadas e o enterro foi realizado com a pompa que o morto merecia. Envolvido em sua túnica de rei, Quene foi sepultado perto da aldeia e lá o corpo foi queimado como era o costume dos Huaris e com ele todos os seus haveres.
Quene foi muito chorado pela família e pelos súditos; ele fora um grande rei, de coração bondoso e justo. Sua coragem servia de exemplo aos guerreiros da tribo. Três dias e três noites suas mulheres choraram sem conforto, como era hábito. Aos poucos, com o passar do tempo, as coisas foram voltando ao normal.
E Kalbe seria aclamado rei, sendo Kenakê sua rainha.
As mulheres de Quene poderiam passar, se o quisessem, para o rei ou para o irmão mais moço do falecido.
Jode veio até a palhoça de Kalbe e pediu chorosa:
— Não quero outro marido, pelo menos por agora. Preciso ficar sozinha na palhoça das rainhas viúvas. Você consente?
— Claro, disse ele, alisando os cabelos encarapinhados da madrasta. Será feito como você quiser, mamãe!
— Obrigada, respondeu Jode chorando convulsivamente.
Kalbe puxou-a perto de si e assim ficaram os dois chorando, escondidos em casa, pois um guerreiro Huari não chora em público e Kalbe necessitava daquele desabafo…
Kalbe ainda não havia sido consagrado rei, quando Kenakê comentou com ele:
— Kalbe, meu leão querido, já temos sete filhos, 5 rapazes e duas meninas. O que você acha de eu pedir a Poemka as ervas que impedem a mulher de procriar? Queria descansar uns tempos e pelo jeito que vou…
— Ótima idéia, querida leoazinha. Já temos muitos meninos! Mas só por uns tempos… recomendara ele. Tenho medo que essas drogas lhe façam mal…
Kenakê sorriu e abraçou o marido, com aquele seu jeito de entrega e o sorriso doce e sensual.
CAPÍTULO 10.
O MILAGRE DE KIKA
As crianças de Kenakê haviam tido doenças que logo curavam. Coisa comum de criança. Mas sua última menina nascera fraquinha, antes do tempo, dois quilos de gente.
Sempre fora miudinha e parecia nem ter forças para crescer. Kenakê se preocupava com ela: fora a única que não lhe dera tempo de ir ao rio para nascer com Mali. Isto a preocupava, porque acreditava que por isto a menina era menos protegida que os outros. Ela carregava a menina consigo onde quer que fosse; quando ia à cabana de Quene cuidar dele, enquanto ele gemia de dor, quando ia à floresta, ou à sua aldeia ver seus pais, sempre lá ia Inaê Mali, sentada no cesto, quietinha, olhando tudo com os olhos grandes no rosto miúdo…
Pouco antes de Quene morrer, a menina teve febre que não passava com as beberagens dos feiticeiros da tribo. Kalbe foi buscar Poemka, cuja ciência ficou impotente com o febrão que prostrava a menina. Ela estava cada vez mais magrinha e abatida. Kenakê limpava os panos de vômitos e diarréia e logo jorrava mais…
Foi feito um culto para os ancestrais, a fim de pedir a saúde da princesinha. Foi feito um despacho pelos feiticeiros para afugentar os maus espíritos da tribo e da aldeia de Kalbe. Kenakê chorava pelos cantos todo tempo. Os outros filhos brincavam sem entender a dor materna. Tara veio ver a filha e pediu:
— Deixe que eu leve as outras crianças comigo e assim você fica somente cuidando da pequena…
E assim Kenakê separou-se dos filhos pela primeira vez…
Ela pediu auxílio a Mali, numa tarde chuvosa, quando o céu estava cheio de nuvens cinzentas. Mali chegou com ar sério.
— Está preocupada com a pequena Inaê Mali? Ela perguntou quando chegou perto da amiga na pedra branca. A água batia nas duas e descia mansamente, mas Kenakê nada sentia.
Mali segurou a cabeça com as mãos delicadas. Chamou com o pensamento os encantados da floresta que chegaram e ficaram juntinhos, mãos dadas, olhos fechados, em oração. Depois chegaram os encantados do rio, todos pequeninos, saltitantes. Junto com Kenakê, que chorava e rezava, fizeram uma prece. Algum tempo assim ficaram; depois com sua voz doce. Mali explicou:
— Volta para casa tranquila; não será desta vez… o socorro virá do inesperado… vai! E desapareceu como por encanto!
Kenakê observou surpresa que os outros encantados também haviam desaparecido…
Foi então à praia, agradeceu à sua protetora e voltou para casa triste, de mãos vazias, sem entender o que Mali havia dito. Repetiu para Kalbe suas palavras. Também ele nada entendera. Kenakê deitou ao lado do marido, sem vontade de comer ou de dormir. Kalbe, com muito carinho, dava-lhe à boca um caldo quente, como se ela fosse um bebê.
— Não quero, amor, minha Inaê está mal.
E recomeçava a chorar.
Kalbe fingia-se forte, mas de seus olhos desciam lágrimas que ele furtivamente enxugava para não afligir mais sua mulher. Quene doente, definhando, a pequena Inaê quase morrendo… era um tempo difícil, mesmo para um guerreiro!
A menina amanhecera pior. A febre estava alta, ela suava e delirava… falava coisas desencontradas em sua linguagem infantil. O sol já estava a pino quando Kika, a macaca, entrou na palhoça, vinha da mata; foi direto ao leito da criança. Kenakê pediu com voz fraca:
— Tenha cuidado com ela, Kika; está tão doentinha!
— Hum… rum… rum… rosnou Kika e sorriu.
Quando kenakê voltou ao quarto, a menina estava saboreando alguma coisa vermelha e Kika tinha nas mãos uma banana verde, Kenakê ficou preocupada:
— Você deu banana para Inae? Poemka não quer que ela coma nada, a não ser dado por ele.
Kika confirmou com a cabeça. E mostrou uns frutinhos vermelhos dentro da mão, apontando Inaê.
— Isto também? Perguntou Kenakê aterrada. Você matou minha filha, Kika? E já ia bater na velha amiga, quando Inaê, com a vozinha fraca pediu:
—Mamãe não bata nela não… vou ficar boa… sonhei com… estas bolinhas…de… Kika…
Kenakê ficou sem saber o que fazer. Seria o socorro inesperado de que Mali falara? Correu a pedir conselho a Mace que, junto a Tizo, velava o descanso do pai. Contou tudo em desabafo. Mace respondeu acalmando-a:
—Vamos aguardar… deve ser este o socorro, sim! Kika deve conhecer remédios que usava no tempo que vivia solta na mata… quem sabe? Vamos aguardar…
— Também acho, dissera Tizo. Veja, Kalbe está chegando.
— Querida, Inaê, aceitou o caldo quente! Sei que Poemka não queria que ela comesse, mas ela pediu… disse estar com fome… eu… dei! Disse ele, esperando a reação da esposa.
— Oh! Kalbe! Ela vai ficar boa! E contou ao marido a experiência maravilhosa que tivera.
À tarde, Inae não tinha mais diarréia nem vomito. No outro dia a febre não subiu muito e dois dias depois não voltara mais.
Quando Quene morreu, a garota já estava boa, saltando e brincando, embora com suas pernas magras e fracas.
Um dia Fana voltou com um filhote maiorzinho com a perna quebrada e um recém nascido. Ela trazia o animal doente com muito cuidado ajudada pelo macho; primeiro ela colocara o novinho na porta da palhoça de Kenakê. Depois voltou para a floresta e junto com o companheiro foi arrastando o ferido bem devagar até à porta, para que deitasse junto ao outro. Rosnou, chamando sua dona, Kenakê estava dormindo, envolvida nos braços negros e fortes do marido. Eles haviam tido uma noite de amor inesquecível e Kenakê estava cansada, sonhando, com um leve sorriso no rosto bonito.
Fana percebendo que ninguém acordava arranhou a porta com as garras. Era cedo ainda. Kalila acordou com o barulho e, pé ante pé, foi espiar o que era. Chamou seu irmão Taja Zungali e ambos ficaram espiando.
—Será que são leões? Perguntara Kalila, sentindo medo. Vamos chamar o pai.
— Que leões que nada! Vai ver são gatos do mato… vamos descobrir nós dois sozinhos primeiro! Depois, se for necessário chamaremos o pai!
— Olha lá, Zungali! Estou com medo.
— Medo? Perguntou o outro estranhando. Um rei não tem medo. Kalila! Você será o primeiro guerreiro da tribo! Você não pode ter medo! E se for um gatinho bobo do mato?
Fana arranhou de novo a porta. A pequena pantera gemia baixinho.
— Vamos ver… concluiu Zungali. Ficar pensando, não resolve nada!
— Puxa! Como você sabe coisas! Disse o irmão mais velho com admiração.
— Seu tolo! Então não é? Respondeu Zungali rindo.
Colocaram um tosco banco perto da janela e Zungali por ser mais leve que Kalila, subiu nele enquanto o outro segurava o banco. Afinal, meio receoso, ele espiou.
— É Fana! Disse Zungali e seu rosto abriu-se num sorriso. Está com duas crias aí na porta.
— Vamos chamar a mãe aconselhara Kalila.
— Vamos.
Entraram os dois correndo quarto adentro. Kalbe e Kenakê iniciavam um novo jogo de amor… assustaram-se ao ver as crianças correndo e Kenakê, virando o rosto sensual, abraçada ao marido, perguntou, com ar de espanto:
— Que aconteceu, filhos de Zambi? Viram algum fantasma, ou há leões rodando a palhoça?
— Não mãe… Fana voltou! Disse timidamente Kalila.
— E trouxe duas crias! Completou Zungali.
Kenakê riu e olhou carinhosamente o marido. Seus olhos expressavam uma pergunta muda:
— Abandonar agora este ninho gostoso ou ir ver Fana?
Kalbe compreendeu e sussurrou baixinho ao seu ouvido:
— Os garotos não vão nos deixar em paz enquanto não formos ver Fana e as crias… logo mais… continuaremos onde paramos…
Kenakê sorriu novamente. Amar Kalbe era tudo que queria da vida…
Fana estava angustiada, à espera de auxílio para a sua cria. Além de quebrada a perna estava sangrando ferida. Kalbe e Kenakê foram logo chamar os feiticeiros para tratá-la. Levaram o animalzinho que gemia, com muito cuidado para dentro da palhoça. Poemka chegou e começou a limpar o ferimento.
— Como é profundo! Comentou Kalbe. Teria sido queda?
— É possível… talvez de uma grande arvore alta…
— Ou na serra… comentou Kenakê penalizada.
Depois foram até a mata procurar um pequeno pedaço de madeira para imobilizar a perna; molhado este numas ervas coagulantes e cicatrizantes, pegaram pedaços de pano branco limpinho e enrolaram a perna. Depois, com carinho maternal, Kenakê deu ao filhote umas beberagens que o faria adormecer. Chegou então à porta da palhoça para tranquilizar Fana. Parecia que a pantera era um ser humano e entendia perfeitamente sua dona.
— Está tudo bem agora, minha querida! Venha ver seu filhote!
Fana olhou para o macho que espreitava na entrada da mata. Rosnando tranquila, esperou pela resposta dele. Depois entrou resoluta na palhoça. O macho veio devagar e, vigiando temeroso, entrou também…
Ambos cheiraram o filho, lamberam, lamberam, depois se olharam, foram lamber as mãos dos donos e saíram pulando para a floresta, acompanhados do pequenino; só então Kenakê se deu conta de que ela também viera mostrar o recém nascido.
— É lindo seu filhinho, Fana ,disse, como desculpa. Volte mais tarde que quero ver direitinho como ele é…
O animal virou-se para Kenakê, balançou o filho que carregava com a boca por uns momentos, como a mostrá-lo e depois, virando-se para frente, acompanhou o marido…
Voltou à tarde para ver o ferido e depositou o pequenino nos pés de Kenakê que ficou a brincar com ele.
— Parece que até os animais entendem você, leoazinha, disse Kalbe brincando com ela.
— Eu criei Fana, sou mãe dela. Tem que entender os sons que emito… respondeu Kenakê em sua sabedoria simples de nativa. Para ela isto era natural, para Kalbe fazia parte do jeito encantado da esposa…
Nem tudo foram flores na vida dos dois. Houve momentos em que as crianças adoeceram; houve fases difíceis, quando Kalbe se ausentava com os guerreiros para lutas com as tribos inimigas… houve uma epidemia que dizimou muita gente, atingiu Kenakê e seu filho menor. Nessa epidemia morreu o filho de Mace, a quem Kenakê amava com afeto materno. Enfraquecida pela doença e pela longa vigília no cuidado com o garoto, ela ajudava a Mace a olhar o filho noites a fio, sem descanso, receiando que ele também se fosse…
Antes da epidemia, Fana, que viera todas as tardes até que a panterazinha ficasse boa, voltara com ela para a floresta …
As mulheres da tribo desvelavam-se, ajudando-se umas às outras; duas das mulheres de Quene faleceram. Vários homens se foram, inúmeras crianças.
As pessoas tinham febre, muita febre… dores … deliravam. Enfraquecidas, morriam. Suas peles ficavam amarelas.
Kenakê ia e vinha, cuidando de todos, sobretudo do filhinho de Mace. Numa madrugada chuvosa, ele morreu. Mace chorou baixinho, repetindo:
— Olorum, me ajuda! Oh! Olorum!
Kenakê abraçava-a com força; ela bem sabia que as palavras de nada adiantavam naquele momento …
Os cadáveres eram tantos que eram incinerados aos grupos. Poucas pessoas não tiveram a doença, entre ela Kalbe. Ele estava sempre ao lado da mulher ajudando, confortando, levando alimento quente aos necessitados.
Kenakê chorava tanto que seus olhos agora pareciam secos e seu sorriso era triste…
Quando tudo passou, Kenakê compreendeu que estava amadurecendo: estava ficando sábia e aprendera a viver…