Caro leitor libertino
Careta, conservador,
Venho aqui mostrar um caso
De inigualável valor
Dessa nossa língua inculta
E bela, que é um primor.
Eu procuro inspiração
Para que aqui eu discorra
Atento à fala do povo.
Peço que ela me socorra
Pois agora irei cantar
Sobre a palavra Porra.
A Bahia é terra boa
De gente safa e esperta
A palavra na Bahia
Geralmente se liberta
Do seu sentido primeiro
E tudo ela desconcerta.
Pois isso é o que acontece
Com a nossa tão distinta
Palavra vulgar e rica
Que a nossa fala requinta.
Se estiver falando asneira
Peço que alguém me desminta.
Há muito que a nossa Porra
Deixou de ser palavrão.
Ela está no dicionário
Em singular posição.
Mas hoje a Porra aparece
Em qualquer situação.
Pois deixou de ser aquele
Objeto arredondado
E ereto (de Portugal)
Ou o fluido engosmado
(do Brasil). Agora a Porra
Aparece em todo lado.
A Porra aqui na Bahia
Tem valor especial.
Evocada a toda hora
De modo tão natural
Ela há muito já perdeu
Seu sentido inicial.
É quase uma entidade
Que sempre se faz presente
Na boca do bom falante:
Do indignado cliente
Ao vendedor estressado…
Até na boca do crente.
De agora em diante
(Caso haja inspiração)
Mostrarei com maestria
Um mar de situação
Em que nós usamos Porra
Como forma de expressão.
Tentarei também mostrar
(Pois sou observador)
As várias funções da Porra
E seu papel transgressor
Dentro duma oração.
Atentem-se por favor!
A primeira, a mais usada,
A mais perfeita função
Que a porra tem na frase
Sem nenhuma objeção
Eu posso aqui afirmar
Que é a interjeição.
Basta observar na rua
Essa minha afirmação:
Sempre passa uma morena
De cinturinha, bundão,
E o macho logo grita:
Porra hein! Que avião!
Cansado de amolação
Qualquer pacato rapaz,
Nervoso, diz pro amigo
Porra! Me deixe em paz!
Vá procurar que fazer
Na casa do seu tomás!
Tem gente que é do barraco –
Futriqueira de mão cheia –
Que adora uma fofoca
E quando vê briga alheia
Logo para pra falar:
"Porra! A coisa ta feia"
A posição mais bem-quista
E de máximo respeito
Onde a Porra se enfia
E que dispensa conceito:
(Talvez a mais importante)
É na função de sujeito.
Quase tudo vira Porra
Nessa central posição
Basta você esquecer
A palavra em questão.
Aí, amigo, relaxe
E solte a imaginação.
A dúvida é um horror!
Ao seu amigo recorra
Se um nome por acaso
Fugir dessa cabeçorra.
Pergunte-o: "como é mesmo
O nome daquela Porra?
Se você está de cama
E se sentindo doente
Mamãe logo traz um chá,
Um mingau, um diluente
E você grita, dengoso,
Ai! Essa Porra ta quente!
Tem gente que é chegada
A fazer muita promessa
E na hora de cumprir
Foge do pau, desconversa.
E é aí que eu pergunto:
"Mas rapaz, que porra é essa?"
Em qualquer briga de bar
É comum aparecer
Um tirado a valentão
Para apartar e dizer:
"Se saia senão eu vou
Picar a porra em você"
A Porra é tão importante
Que pode se apresentar
Na função de vocativo
E advérbio de lugar
Tu duvida? Fique esperto
Que exemplos vou te dar.
O cara diz pra peguete:
"Duas horas te esperei".
Danadinha, ela responde:
"De tu me desencontrei,
Fui lá na casa da Porra
Voltei, mas eu não te achei."
A torcida mais bonita
(Se for mentira, que eu morra!)
A tricolor mais alegre
Em qualquer jogo que ocorra
Se esbalda de peito aberto:
"Bora Bahêa, minha Porra!"
Tem Porra pra todo o gosto,
Todo o tipo de emoção.
Tem artista por aí
Descabido e sem noção
Que chama o amor de Porra
E tem grande aceitação.
Em cima do trio elétrico,
No calor do carnaval,
O cantor incita a massa:
(A euforia é geral)
Gritam "eu te amo, Porra!"
Num mais que insano coral.
A mãe resmunga pro filho
Que só quer se divertir
E não sai da internet:
"Ta na hora de dormir
Tranque tudo, feche as portas
E largue essa Porra aí."
Na Bahia o ano inteiro
Faz um calor de lascar.
Um baiano de verdade
Não se cansa de falar:
"Rapaz, que calor da Porra!"
Para logo se abanar.
A Nega brigou comigo
Por um motivo banal.
Você sabe o que ela fez?
Armou a cara de mau,
Saiu virada na Porra,
E nem sequer me deu thau!
Na Bahia é comum
Uma estranha expressão
Que toda hora aparece
Em forma de negação:
Em todo canto se ouve
"Porra niuma mermão!"
Já estou cansado e tonto
Depois dessa exposição
Se palavra, palavrinha,
Até mesmo palavrão
Sobre a Porra eu vos digo:
Usem com moderação!
Não duvidem se eu criar
Uma espécie de oração
Usando do bom cordel
E da imaginação
Para dar à Santa Porra
Altar e religião.
Eu vou parar por aqui,
Vou tirar o meu da reta
Pois não quero me queimar,
Fazer papel de pateta.
Já falei muita besteira…
Deixarei a Porra quieta .
Salvador, Março de 2014