Três negros chegam ao chiqueiro. Bastião, Rogaciano e Cobé, nus da cintura para cima, calças de aniagem amarradas com embira. Um traz uma corda; o outro, uma faca de ponta de doze polegadas, amoladíssima, e uma vara; o terceiro, um porrete de guatambu.
Lama e fedor ardido, pocinhas de uma nata meio azulada. Cinco porcos capados, refugando o que ainda há de crueira, milho, cascas de frutas, o indistinguível nos cochos, parecem dormir de tão moles e gordos, corpos desconformes que a lama empapou inteiros e depois secou em grumos nos dorsos onde os pelos estão mais duros e eriçados; mandíbulas à mostra no ronco leve da respiração, dentes brancos e afiados, gengivas cor de rosa com uma gosma cinza escumando nas reentrâncias.
Não são mais porcos; são monstros que vão morrer, e pedem a morte, porque não é mais possível engordar — os ventres num abaulamento e em dobras que deformaram a própria condição animal; devoraram tudo que podiam devorar, de mistura com os excrementos da casa-grande, mal nenhum, o que é da ceva, que da ceva seja, vinha dos antigos, “cague aqui que é para os porcos”, Ioiô nem ordenava, as mucamas em sua azáfama já sabiam, duas vezes por semana catando penicos e emborcando toletes, caldo espesso, muco e merda tenra em baldes de pau, e restos de restos, uma lavagem só a despejar nos cochos para a engorda.
Calças arregaçadas até os joelhos, um dos negros entra na lama; com a vara cutuca um dos porcos deitados, imita-o grunhindo e guinchando, gesticula, diz palavras de encantamento em quimbundo; o bicho arrasta-se, pesaroso ondular de gordura em arrobas que perderam a conta; com sacrifício a musculatura se distende o mínimo, afundada em banha e sem comando nas juntas, para suster a massa monstruosa, avançar; e avança, aplastando-se, enfiando o focinho na lama, e funga, espirrando, salpicando a nata azulada que se rompeu nas poças.
O fedor é agora tão intenso que tonteia, e atrai as varejeiras, que aos enxames cobrem os cochos, pousam nas estacas, esvoaçam, agridem-se, acasalam-se.
A primeira operação da morte vai findar: o porco avança, cruza a porteira, grunhindo baixo, rouco, vencido, a respiração crepitando. É laçado, arrochado pelo vazio, escornado, preso ao moirão de aroeira maciço e liso com manchas de sangue que ali secaram e encruaram para sempre; então recebe, as patas para cima, o golpe fundo na maminha e estrebucha, a lâmina entra até o cabo, Rogaciano é mestre nessa arte: o sangue esguicha, as mucamas o aparam nas gamelas. Morte sem uivo, nem grunhido-uivo. Sombra de espasmo, patas inúteis, breve estertor, quietude. Desarrochado o vazio, o sangue esguicha com mais força.
Aumentam as varejeiras, que agora zumbem espritadas.
Fecha-se para baixar o círculo dos urubus que já pousam de bicos abertos. Uelé, Djubi, Engrácia, Pituca, Raimundinha, Caleme, Ziru, Maria Flor, Danganã… mais chegam mucamas, e a renca de negrinhas e negrinhos pelados, correndo com os cachorros na malhada em frente à senzala. E logo aos magotes os trabalhadores do eito, vaqueiros, capitães do mato, e vindos do Brejo Grande os pedreiros, carpinas, mestres, pintores, santeiros e ajudantes da obra da Igreja de Nossa Senhora da Ponte do Aboboriz, neste ano da graça de 1682, com seus ferros, seus cambões, seus teréns do ofício — Aristides, Ranulfo, Dembo, Manuel Pé de Boi, Nizuá, Corimba, Quim Sirrê, Bambelô, Jueno, Ditinho, Lucumi…
Mais três porcos tiveram morte igual; o último, Cobé matou a porrete.
Então, para atenuar o fedor entranhado em tudo, o banho fervendo com alecrim, cascas de imburana e batatas de dandá: cada porco é colocado no forro de folhas de bananeira, quatro negros pegando pelas patas.
Cutelos empunhados, peladura e esquartejamento, precisão nos cortes. Para a casa-grande — pernis, costelas, mantas de carne e de toicinho. Para a senzala — olhos, pés, orelhas, fígados, corações, rins, buchos, tripas, bofes (o sangue, a poder de gotinhas de mulungu, vai talhando nas gamelas). Cabeças e pelancas para os urubus e cachorros. Respingos de sangue para as varejeiras.
Maria Flor está prenha de Dembo, ninguém sabe por enquanto; esgueiram-se toda noite para detrás da casa de farinha, deitam-se entre moitas de alcaçuz; alisam-se, chamegam-se, ele chupa-lhe a língua, lambe-lhe o umbigo envolto em penugem… Ainda um tanto agarrados, depois levantam-se, olham hieráticos para o alto, cantam baixinho:
Eokeô, eaé
Agbá Ijená
Apá komô re i wá. *