Estendeu até minhas mãos uma xícara de café preto. Não era uma xícara pequena, era uma louça grande e fina de chá, cheia de um café escuro. Foi inevitável pensar em G.H. e na barata, que, não sei por que cargas d’águas, era personagem do livro de capa rosa que trazia nas mãos. O cheiro do café me lembrava do cheiro repugnante das baratas que descobri nos dias que se seguiram à leitura do livro. Por debaixo da cama, andando sobre o fogão, à surdina da noite, quando acordava para beber água. Não sabia se elas estavam ali desde sempre ou “A paixão” ter-me-ia tirado as vendas da alma, para, a partir de então, enxergar baratas.
Clarice me olhava com uma profunda curiosidade. Os olhos oblíquos, quase felinos, a examinar, em meu semblante, a tensão. Seu olhar percorria as vicissitudes de meu ser, adentrava a pele, cortando-me como uma afiada navalha para saber o que existe dentro de mim. Desviava, por vezes, meu olhar desta inquietante constatação. Afastei a xícara do corpo, levantei a delicada colher do pires para mexer o café negro que exalava o cheiro ocre do interior de um ortóptero. Olhei novamente para ela, que retirava um cigarro Hollywood do maço quase vazio de dentro de uma bolsa em cima de sua mesa. A mesma mão que riscou um fósforo repousava em cima de outra carteira de cigarros na mesa de centro. Dois cinzeiros. Uma máquina de escrever Olympia como uma conhecida sentada ao seu lado, no sofá de três lugares, de onde pendia um papel já no fim, e em que, certamente, estavam escritas coisas tão estranhas como as que tinham lido e relido. Sabia que Clarice escrevia com ela no colo. Diante de sua beleza indefinida e misteriosa, senti o desejo de deitar-me em seu colo.
“Então o senhor leu meu livro e não entendeu?” – riscou o fósforo. Uma chama fulgurou no ar e, no mesmo instante, movimentou o punho, apagando-a. O cigarro foi à boca, a fumaça cresceu, criando uma névoa obscura em torno dos seus contornos angulosos.
“Sim, li e reli e não consegui captar a essência de tudo. Pergunto-me por quê.”– levei o café à boca, esquecendo por um instante o cheiro confuso – “É um pouco hermético, senhora Clarice.”
“E o que lhe pareceu incompreensível, professor, no meu texto?” – sorveu mais um pouco de sua fumaça para logo depois soltá-la num movimento abrupto – “o senhor disse que é professor, não é mesmo?” – bateu com os dedos no cinzeiro de metal, simples, que adornava a mesa de centro.
“Sim. Sou professor de literatura do Colégio D. Pedro II. A senhora deve considerar que tenho uma profunda formação em literatura. Faz bastante tempo que ensino essa disciplina.” – bebi mais um grande gole de café. Tremi levemente antes de colocar a louça na boca, e o olhar oblíquo e profundo de Clarice deve ter sentido o meu declínio intelectual diante das suas palavras intrigantes, inalcançáveis.
“É o primeiro livro meu que o senhor lê?”
“Não. Li Laços de família que, por sinal, tem uns quatro ou cinco contos de outro livro…”
“Seis.”
“Seis?”
“Seis contos.”
“Seis contos de Alguns contos, que li, há quase vinte anos.”
“Alguns outros já havia publicado em revistas.” – tragou novamente o cigarro, deixando a mão levantada no braço do sofá, na altura dos seus olhos, sem que a fumaça lhe provocasse nenhuma irritação.
“O senhor aceita?” – estendeu a carteira quase vazia de cigarros, que voltou novamente ao mesmo ponto em que estava, com meu movimento de cabeça negando, acompanhado de um “obrigado”.
“Imagino que, para dar aula de literatura, o senhor deve ler bastante, muitos escritores, inclusive literatura estrangeira.”
“Talvez não tanto quanto a senhora, que escreve.” – levantei brevemente da poltrona e abaixei a xícara na mesa de centro, em que estavam a bolsa, os dois cinzeiros, as duas carteiras de cigarros, uma cheia e a outra vazia, a caixa de fósforos e uma rendinha nordestina cobrindo-a.
“O senhor é professor, eu sou uma leitora livre. Para falar a verdade, nem escrevo tanto assim. Passei oito anos, antes de escrever esse livro, numa completa ausência de inspiração. Não leio certamente para trabalhar, me alimento de leitura mais que de literatura. Por exemplo, agora estou lendo Georges Simenon…”
“Georges Simenon?”– reagi, dando certa tensão ao nosso diálogo.
“Sim. Simenon. Inspetor Maigret.” – disse sorrindo, numa delicada ironia. O sorriso de Clarice desmontava um pouco a imagem sólida e misteriosa da mulher pretensamente acima do “humano”, que descrevia sensações, dominando-as. Para mim, Clarice não trabalhava a estética de sua literatura. Ou ,talvez, o turbilhão de sensações lançado no papel fosse sua própria estética?
“A senhora já leu Virgínia Woolf? Thomas Mann? Hesse?”
“Não lembro. Acho que não.” – fitou-me de forma séria, apagando o cigarro, lançando a ponta de seus dedos contra o cinzeiro duas ou três vezes. Seu cabelo contornando o rosto. Uma camisa de riscado com mangas três quartos. O último botão solto, revelando o pequeno pedaço do colo. A saia na altura do joelho. Uma perna levemente inclinada para frente. Sobressaía de sua perna, uma pele branca, fina, irresistivelmente sedutora.
“Para falar a verdade, li O lobo da estepe, de Herman Hesse. Gostei muito, mas já faz muito tempo.” – abaixou-se para retirar o último cigarro da carteira vazia, amassando a embalagem com uma das mãos de dedos longos e finos. A outra mão guardava graves cicatrizes de um incêndio em sua casa anos atrás. Lembro-me de certa vez, no café da manhã, antes de partir para escola e ministrar aulas, ter lido uma nota de jornal a respeito. Era a sua mão queimada, com curativos nos dedos para que pudesse datilografar na Olympia. Observava-a agora, enquanto segurava o cigarro, trocando-o depois de mão, riscando o fósforo novamente, que fulgurava menos que da primeira vez. A luz do sol, adentrando pela janela, de frente para Clarice, contornando em luz e sombras toda a força de seu enigma. – “Você certamente, para lecionar, lê muito mais, e com outro olhar, talvez até mesmo de quem espera mais do que se deve daquilo que lê. Um livro é apenas um livro. E escrever para mim é um exercício para não morrer, não sucumbir ao esquecimento.”
“Kafka, por exemplo.” – coloquei a mão na boca para dar um pigarro – “O inseto de A metamorfose serve a uma metáfora da nossa condição humana.”
“Minha barata não é uma metáfora, é apenas uma barata.”
Levantei os olhos para ver se sorria com a mesma linha de ironia que percebi em seu primeiro sorriso: permanecia séria, olhando para o vinco da saia, passando os dedos para logo depois levantar a cabeça, tragar o cigarro e me fitar com os mesmos olhos de mistério. – “E o que o senhor entendeu de A paixão?”
“Confesso que não entendi. A proposta do romance, ou novela, é boa. É de reflexão. Mas a falta de temporalidade e espacialidade deixa tudo tão inverossímil. A barata…”
“Sinto que a barata te incomodou um pouco…” – Olhou mais uma vez, encerrando forte censura sobre mim, levando novamente o cigarro à boca, a cinza inclinando sobre sua mão, as sobras de sua mão destruída. E a imagem daquela mulher enigmática, como as esfinges egípcias, ocorria-me de forma tão sedutora que um temido fascínio emergia de mim. Ela era um pouco G.H., a enigmática mulher das iniciais, aquela a qual não sabíamos nem mesmo o nome ou porque existiam desenhos grandes e indecifráveis como os que os homens primitivos haviam feito nas cavernas imemoriais. Olhando bem, ela era toda G.H.. Só você, Clarice, poderia adentrar um quarto de empregada e passar um grande tempo divagando sobre as coisas humanas. Aquilo era seu vômito, sua orgia solitária, a destruição de seu ego, o desvendar de sua própria vida. Era tudo, menos literatura. Eu estudei, li Clarice, para entender e entender-me. Acima de tudo, para realizar bem o meu ofício. Mas, o que é que eu faço com este livro rosa na mão, que li mais de uma vez, e que ainda assim não consegui encontrar uma história, uma única frase que afirmasse a sua “literatura”? Mas, como dizer tudo isso para você? Esperava encontrar uma mulher fria e distante. Uma pretensa escritora. Porém, o que meus olhos viam, era uma mulher fascinante, estranhamente sedutora, de uma beleza tão diferente, um rosto bruxuleante, um sotaque estranho, quase vil. Fascinava-me a estranha composição física, a mão destruída, os olhos oblíquos e felinos, a pele brilhante e macia, e a mulher que não tinha respostas prontas, que não discutia a sua literatura, nem o que fazia. Era como se escrever fosse uma extensão do seu pensamento e nada mais. O compromisso com a escrita terminava ali.
“Não a barata. Mas o mistério do interior da barata. Por que, Clarice?” – Foi inevitável que exprimisse, em meu rosto, o nojo pela descoberta de G.H.
Clarice abaixou-se novamente, apagou o cigarro. Vi, pela primeira vez, seus cabelos loiros, ralos. Vi um leve volume de seus seios descobertos de forma tímida. O homem, e não o professor, sentiu um calafrio percorrer o estômago. Uma vontade remota de expulsar o café de meu estômago. Uma mistura de paixão e estranhamento me dominou naquele instante. Certamente não a mesma paixão que você descreveu em G.H., a paixão destemida e assustadora de sua personagem. Olhando agora bem em seus olhos, Clarice, com toda minha timidez e temor, vejo que você é ela. Você se encerrou em si mesma e construiu-se experimentando o proibido.
“O senhor poderia ler um trecho para mim. Um trecho escolhido, significativo, que seja um mistério para o professor” – estendeu a mão tocando o estofado do sofá. Seus dedos percorriam delicadamente o sofá, sentia-os percorrendo a mim, retirando as abotoadoras de meu paletó, crescendo horizontalmente e encontrando as linhas de meu pulso. Eu, diante de você, Clarice, tão impotente quanto os meus próprios sentimentos. Tão desolado pelo meu autorreconhecimento. Por minha fragilidade, diante de sua beleza e história. Não era o mesmo homem que se sentiu aliviado por não compreender o incompreensível, a dolorosa visão do inexprimível, do inevitável.
“Bom, têm tantas passagens tão… significativas… intrigantes…” – levantava, para os olhos de Clarice, seu livro rosa, capa da primeira edição. Era como segurar a parte mais oculta e íntima de sua vida. O toque e a sua voz estranha. Um sibiloso pedido. Senti-me tão desprotegido como a barata esmagada contra a porta do guarda-roupa do seu quarto de empregada. Como queria entrar em seu quarto de empregada para constatar os presumíveis desenhos na parede, o armário e algum resquício da barata que você experimentou.
“Talvez lhe cause certo estranhamento por ser uma história não linear. Mas te antecipo o meu descompromisso com a literatura, professor. Sou uma amadora e pretendo continuar sendo para manter minha liberdade.”
Amadora… Clarice e G.H. eram as amantes, as que davam amor, as amadoras. Carregavam, nas vidas, a paixão desmedida pelo que é inexato e humano. Ser amadora e não se nominar escritora dava a ela a maior das liberdades. Uma liberdade que eu não fui capaz de captar em seus textos. Olhando a vida pelo viés da paixão, da violência, da sua própria brutalidade, poderíamos ser amantes para não sermos escritores. Poderíamos ser amantes, para não sermos leitores. Poderíamos viver.
“Sabe quantas coisas na vida ainda são um mistério para mim, professor? Todas. Todas as coisas da vida me são um mistério. E as que ainda não são, simplesmente por não terem surgido, certamente serão, quando eu puder sentir.” – baixou os olhos procurando o infinito, o que não poderia mais ser dito. Era um jeito todo próprio e singular de se baixar os olhos. Cada vez mais me convencia de que ela própria se escrevia, mudava de máscara, escrevia a si mesma como uma personagem.
“Por que, Clarice? Por quê?” – Esqueci o pronome ‘senhora’, tão íntimo havia tornado o nosso momento. Seus olhos sobressaltaram-se ante minha súplica tão inusitada. A minha ignorância ressoava de forma tão primária, como a primeira das dúvidas, a explicação do inexplicável. Você se perdeu em meu semblante tentando entender a minha súplica. Seus olhos fortes, profundos, vivos, ferozes deitaram sobre o desconhecimento do professor de literatura. Escondeu sua mão queimada, a ramificação de sua árvore, de seu corpo, sob a outra mão. O brilho do seu anel cintilou, refletindo a luz do sol que baixava e adentrava pela janela da sala.
“O senhor deseja outra xícara de café? Eu posso pedir.” – Desistiu diante de minha negativa com a mão esquerda, que se levantou do livro que ainda repousava em minhas pernas. Meus olhos estavam úmidos de um sentimento de frustração diante da minha incapacidade de dialogar com você, de estabelecer uma linha de pensamento que esclarecesse a ideia pura e objetiva que tinha da literatura. Devagar, você suspirou, desabafando uma crescente inquietação. Eu me comovia pelo fato de sua escrita ser cada vez mais inatingível, mais ainda agora, em que tentava debater a estranha ideia de sua forma diante da mulher que conseguia desfazer-me a um movimento, a um olhar despretensioso. Poderia não entender sua escrita, mas, a cada momento, crescia meu envolvimento com a mulher-Clarice. Minha mão tentaria alcançá-la, percorreria seus cantos, seus defeitos, sua pele, seus cabelos loiros. Contemplaria seu semblante por um tempo, observando-a surpresa, apaixonada, como a sua personagem patente. Seria escrita, de forma surpreendente, como cada página que virava em minha leitura, como cada palavra lida que tentava articular-se à próxima e nunca, mas nunca, formava alguma frase a alcançar e me atingir de forma reveladora, a revelar a essência de sua escrita.
“Há um tempo, uma jovem estudante de dezessete anos me procurou aqui me dizendo que A paixão era o seu “livro de cabeceira”. Se não me engano, ela tinha lido quatro vezes.” – rompeu o silêncio que minha visível angústia havia estabelecido entre nós. Atirava sobre mim a minha própria incapacidade de compreender seus textos.
“Eu serei o professor de literatura que não entendeu seu romance, senhora Clarice.”
“Talvez seja o professor que não quis compreender. Eu mesma me surpreendo com as coisas que escrevo. Entendo boa parte do que escrevo muito bem. Mas têm textos que são um mistério, e sei que seguirão como mistério, porque essa é a sua essência”
“A senhora enquadraria A paixão como um desses textos?”
“Não. Particularmente, o livro não me é um mistério. É um texto denso. Para mim, um texto morto, como os outros. Mas com uma história e múltiplas mensagens. Se não fosse assim, a jovem e tantos outros não teriam me procurado para comentar o livro. Talvez, professor, o senhor precise carregar palavras difusas para perto de seus pensamentos e reuni-las, o senhor mesmo, da forma que elas lhe toquem melhor. O senhor leu meu livro, professor?”
“Como assim, ‘li seu livro’?” – Meu rosto contraía com a dúvida levantada sobre a minha honestidade e caráter – “Claro que li, senhora Clarice, li e reli, como eu mesmo lhe disse. Disse que não entendi apenas.”
“O senhor sentiu, professor?” – levantava, nesse mesmo instante, seus dedos no ar, ao lado de seu corpo, uma sombra grande refletindo no chão. Mexia os dedos um contra os outros, alisando a sensibilidade perdida pelo acidente, os pequenos curativos nas suas pontas. A máquina deitada no sofá, o papel que às vezes se mexia, erguido por uma leve brisa vinda da praia e percorria a sala entre nós, de maneira leve e sorrateira, interferindo, de alguma forma, no nosso encontro.
“O que senti?” – segurei com a outra mão o livro repousado em minhas pernas. Sua voz suave, pausada, estrangeira, trazia uma tensão no ar, a tensão da descoberta, as descobertas superficiais, as descobertas profundas, a nudez da alma manifestada de forma tão inesperada.
“Sim. O que sentiu, professor?” – apressava o movimento dos dedos de sua mão levantada no ar, visivelmente irritada com minha insistente recusa em desvelar sua escrita.
“Bom… como assim, ‘sentiu’?”
Clarice mexeu as pernas de forma inquieta. Estendeu a mão sobre o braço do sofá, desfazendo a sombra do chão. Olhou para a janela. Seu olhar de feitiço chamava o vento, a brisa que levantava o papel da máquina repousada ao seu lado. Era a ‘professora’ dando a fórmula da leitura de sua Paixão? Eu, que entrei pela porta como o professor de literatura do Dom Pedro II, recolhia-me, nesse exato instante, como um aluno inconstante, sem algum brilho, querendo entender A paixão e, consequentemente, desvendando o coração de feitiço da mulher misteriosa, tão inatingível quanto a sua escrita.
Vencido, baixei os olhos até o romance rosa, sentindo uma enorme vontade de sair do apartamento, de não olhar para trás. De atirar talvez o livro na primeira lixeira que encontrasse na calçada. Esquecer a tensão e o desencontro de nosso diálogo. Duzentas baratas marchavam deitadas em minha perna. Era só abrir o livro rosa.
“Eu sabia que entrar não era pecado… – tossi um pouco, tentando dar um tom mais sereno à minha voz, baixando os olhos para um trecho marcado – … Mas é arriscado como morrer. Assim como se morre sem se saber para onde, e esta é a maior coragem de um corpo. Entrar só era pecado porque era a danação de minha vida, para a qual eu depois não pudesse talvez mais regredir. Eu talvez já soubesse que, a partir dos portões, não haveria diferença entre mim e a barata. Nem aos meus próprios olhos, nem aos olhos do que é Deus” – olhei, procurando a aprovação para o que fiz. Clarice, que tinha os olhos baixos, levantou-os, agora mais úmidos do que o habitual. Havia um interesse de ‘leitora’ em seus olhos, a curiosidade de descobrir o que viria além. Já não havia relação entre a escritora e sua escrita. As palavras soavam de forma estranha em seus ouvidos. Certamente, o mesmo arrepio que me dominou no início da leitura e a perturbou no início da escuta.
“Foi assim que fui dando os primeiros passos no nada. Meus primeiros passos hesitantes em direção à vida, e abandonando a minha vida. O pé entrou no ar, e entrei no paraíso ou no inferno: no núcleo.”. Fechei o livro ainda com a cabeça baixa. Ainda assim, percebi que Clarice tinha também sua cabeça baixa. Baixara a cabeça para ‘sentir’ o texto. Escutar e sentir. Um texto que não era mais seu, a seu dizer. Mas que ainda assim a tocava profundamente porque a palavra era sua origem, seu esteio, seu chão. Era a palavra a própria alma de Clarice. Por isso não bastava ler, teorizar, debater: era preciso, antes de qualquer coisa, sentir a escuridão e o ocaso. A amplidão. A brevidade das horas.
Estava assim, junto à Clarice, observando a repercussão do que eu lia em seu semblante, ‘sentindo’ as palavras. Sentia, pela primeira vez, o significado de A paixão. Porque “A paixão” se refletia em seu espelho. De repente, veio uma vontade de repartir a palavra com a mulher sensível à minha frente. O livro apoiado em minha perna. Talvez devesse começar da primeira página, lê-lo por completo, descobrir a minha própria ‘paixão’, o caminho a ser seguido, a vontade de romper, eu mesmo, o invólucro original e experimentar o proibido.
Levantei-me para me despedir de Clarice. Não poderia continuar, nem ocupar seu tempo. Ouvir deixara-a visivelmente cansada, não pelo simples ato de ouvir, mas pela experiência de se desvendar o que se ouve. Fiz sentido de que seguiria para a porta. Vi a cortina levantar sobre um vento maior e a luz que se esvaía. Clarice levantou e veio em minha direção. Seus contornos continuavam mais dissolvidos que o momento pretérito, quando fumava, enquanto sondava o personagem do professor de literatura. Enquanto, incansavelmente, retirava a minha máscara e procurava meu rosto.
Pude perceber sua boca, seu corpo de senhora, seus olhos tão diletos para mim. Por um momento, sufoquei-me de desejo. A mão segurando o livro, pronta para baixá-lo ao chão. Uma mão pronta para segurar-lhe o punho e impedir que fugisse de seu destino. Em silêncio, me despedi, voltando os olhos para ela ao sair à porta. Clarice, ainda misteriosamente, observava eu me afastar por completo de sua presença.
Da calçada, seguindo para o caminho de casa, voltei meu olhar procurando sua janela, por onde percorreriam o vento e a luz. Ainda pude ver a mão se afastando, segurando um cigarro entre os dedos. Efêmero e original. Ficou apenas a fumaça. O mistério de Clarice.