Com a mão ensaboada
na pia da cozinha,
sinto uma cócega no peito:
outra bola de gordura se desprende
das membranas da memória.
Salta no abismo sem queda,
pássaro que o sol esconde.
Nessa hora, chego a crer:
sou a mais calma das criaturas.
Ainda assim, não me contenho,
ensaio transbordamentos:
correr cidade afora
até alcançar a areia,
ou escrever coisas dulcíssimas
à gente em cuja boca
derramei naufrágios.
Antes de arremeter-me, todavia,
reflito: é noite alta
na cidade perigosa
e tampouco eu escaparia
de leituras envesgadas
e da raiva matutina
ante as frases mal respondidas.
Só o poema me comporta.