Dedicado ao Núcleo de Estudantes Negras e Negros da UFBA-NENU
“Todos a bordo, menos o Spike Lee”, brincou o moço na escada traseira. O menino com farda escolar ficou com cara de curioso, parecia não conhecer outro que não fosse o Bruce… Este Lee é diferente, pensei. Outro jovem se apressou em chamar os demais para o fundo do ônibus. Desta vez, a trilha será diferente, gritou alguém de lá, que explicou: desta vez, o som vai ser o TUM-TUM-PÁ!
O ônibus saiu rumo ao Centro já com algumas pessoas em pé. Três pontos depois, o cobrador desceu para trocar o dinheiro na padaria e aproveitou para pegar a merenda da viagem. O meu dia estava começando, mas o dele já estava pelo meio.
O som do fundo servia como pano de fundo para aquelas imagens que passavam pela janela. O trânsito começou a ficar lento quando os meninos começaram a cantar “Um homem na estrada recomeça sua vida […]”. Uns duzentos metros depois, o motorista parou de vez. Tudo travado de novo, cobra! Disse ele. Eu comecei a ficar preocupado, a minha missão daquele dia era chegar à Universidade, era somar naquela marcha dos nossos direitos civis… Aquele 17 de maio ia ser histórico e eu sonhava em estar lá. A adoção de Políticas de Ações Afirmativas por aquela instituição seria votada naquela manhã. O Movimento Negro estaria em peso por lá. Afinal, foi este movimento que construiu historicamente esta pauta por aqui.
Enquanto o ônibus não andava, eu viajava naquelas músicas e fui sendo tomado por um filme que passava em minha cabeça. Naquele instante, recordei-me das manifestações, dos pneus queimados, das batucadas e de palavras de ordem, como “Não quero só tocar tambor, eu quero livro, eu quero ser doutor”… Tudo isso chegara ao seu dia crucial. O ônibus continuava parado enquanto os meninos cantavam Negro Drama como se canta um hino. Na mesma fileira, umas duas cadeiras mais a frente, uma jovem não resistiu ao engarrafamento e parecia passar mal. Todavia, a solidariedade sempre dá um jeito de aparecer por aqui: uma mulher de meia idade com lindos dreads grisalhos que contrastavam com sua viçosa pele retinta surge perguntando se a menina queria Dipirona.
Seguindo outros rumos, em mais de um assento do coletivo, os celulares tocam cobrando presenças atrasadas; contudo, o tráfego continua implacável. A sensação térmica relembra o clássico filme do Spike Lee; no entanto, descer não seria a coisa certa a ser feita. Aqui, o Centro é distante da Periferia… Sobem vendedores de água gelada, de picolé, de chicletes e balas… – Confesso que o calor me fez querer de tudo que vendiam, mas meus braços são pequenos, não posso abraços o mundo… Melhor aproveitar as gotas de vento que de quando em quando adentram pela janela.
Quando olhei o relógio, vi que a votação já devia ter começado. Mandei um SMS para um brother para que ele me atualizasse. A mulher que havia dado o remédio para a menina quis saber se ela já estava melhor. Com o semblante mais vivo, a jovem respondeu que sim. Da curva do viaduto, pude ver a fila eterna que nos aguardava lá embaixo. Ao perceber o engarrafamento, alguém comenta: parece que estamos indo pra Meca. Ao ouvir isto, pensei cá com meus botões: a Meca deste dia histórico deveria ser a Universidade… – “Muita treta, muita treta […]”, anunciava o TUM-TUM-PÁ lá do fundo, como um prenúncio do que poderia acontecer, enquanto o buzu se arrasta lentamente.
Mesmo os ouvidos menos atentos poderiam ouvir os lamentos meio blues que ecoavam no interior daquele coletivo. Uns falam do tempo quente, outros, do tempo parado naquele congestionamento e eu só pensando no tempo de mudanças que está por vir. O rap agora é acompanhado do choro de uma criança que quer picolé. A mãe o avisa que não pode tomar gelado. O vendedor de picolé vai descendo e o de bala vai subindo. Os dois se cumprimentam ao se cruzarem na escada e o baleiro já engatilha seu improviso na base dos meninos lá do fundo: “eu só quero trabalhar pra na ‘Furtos’ não pará ou pros ‘homi’ ‘num’-‘mim-‘cor-tá’! E, um tanto satisfeito, perguntou livremente: Se ligou na rima?” A criança aproveita que o rapaz está em pé ao lado e pergunta para mãe se ice kiss é gelado. A mãe, desarmada, compra o drops de R$ 1,00 e ameaça: e não me peça mais nada hoje, viu! O rapaz agradece a todo mundo, elogia os dreads da mulher e desce. As rimas do baleiro deixaram sociologias espalhadas em várias conversas.
Enquanto uns cochilam, outros dão satisfações pelo celular, outros olham sem muita esperança pelas janelas, umas senhoras reclamam da qualidade do transporte público e da violência…
Fico observando o celular, torcendo por boas novas, ao passo que a mãe abana a criança que dorme no colo com as balas na mão. O caminho continua longo. Os meninos da sonorização já tocaram Dexter, GOG, Sabotagem e agora estão só conversando e dando risada. O centro da cidade parece que ainda vai demorar a chegar. Um homem que estava na fileira oposta a minha pediu para os meninos tocarem uma do Fundo de Quintal ou do Zeca Pagodinho. Em resposta, o que antes fazia a marcação no teto do ônibus disse que vão tocar uma do Bezerra e depois, atendendo ao pedido, vão tocar O show tem que continuar. O homem pareceu ficar satisfeito. Olhei para o cobrador, que agora estava com cara de poucos amigos, e sorri.
O telefone vibrou e olhei depressa para ver a mensagem, mas era uma oferta da operadora. Aquela frustração me fez ficar pensando como seria meu curso se eu tivesse lido Cheik Anta Diop nos primeiros semestres. E como seria se outros cursos o lessem? E se a professora Conceição o tivesse estudado, como seria o Egito para mim já no Ensino Fundamental? Afinal, naquela época, aquele Egito grandioso, com sua medicina e arquitetura geniais, parecia estar num continente diferente daquela África que eu via na tv. Nunca quis perguntar à pró Conceição, mas eu sempre ficava pensando que o Egito fazia fronteira com a Grécia e seus pensadores… Agora, seria diferente, pensei, as Políticas de Ações Afirmativas teriam outras histórias pra contar para os estudantes e até para a pró Conceição… Espero que a ‘solidão racial’ dos corredores universitários, tão falada por minha amiga, chegue ao fim. Mas, e se forem apenas corpos negros rumo a um esquecimento de sua memória histórica? Não, não… Temos os quilombos universitários, temos a lei 10.639, Maria de Lourdes Siqueira, Carlos Moore…
Enquanto estava pensando sobre isto, o celular começou a vibrar sem parar. Várias mensagens estavam chegando e dizendo coisas como: “kd vc?”, “chega de Ratzel, Lombroso, Nina Rodrigues”, “A Federal agora é Preta!!!!rsrs”… Fiquei com um misto de emoções. Lembrei-me do meu professor de antropologia que, apesar de pesquisar negros, tendo vários livros publicados, era contra as Políticas de Ações Afirmativas. Ele quer se manter afastado do seu objeto de estudo ou seria preocupação por já não saber onde estudariam seus filhos a partir de então? Caramba, são tantas histórias neste momento… Eu era o primeiro da minha família e da minha rua que entrara numa universidade pública para estudar e achava estranho os meus colegas de escola levarem a vida toda estudando em escolas públicas e, quando cogitavam o ensino superior, só pensavam em faculdades particulares, enquanto meus colegas de universidade pública… Estranha esta inversão… Muitos filmes estavam passando rapidamente em minha cabeça. Eu estava radiante com o resultado da votação. Contudo, não estar lá na hora da aprovação me deixou meio assim… Mas, aquela conquista era algo muito maior… E os meninos lá do fundo pareciam captar a minha explosão, pretensamente discreta, pois, tão logo, puxaram uns conhecidos versos do Ilê Aiyê que começavam assim: “Que brilho é este negro?”.
RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (Org.). Cadernos Negros, volume 36: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2013.