O meu aviador era lindo. Ou “aviadô”, como falava Jeremias querendo imitar francês. “Nada, é um aviadão”, disse Clotilde, ao se bater com ele e comigo na rua, e completou: “Sossega, ali nada derruba”. Tinha um medo que ele caísse no meio do mar, ou deus-me-livre, explodisse. Ele mesmo ria, e eu recusava todos os seus convites para subir a bordo. Preferia ficar sempre na terra, fingindo que não esperava, mas sempre no aguardo do seu retorno. As amigas sabiam o dia, me viam de outro jeito, de cheiro diferente. Pirraçavam porque eu não queria namorar mais ninguém. “Desencana, ele é casado, com aliança e tudo, você que tá pagando de fiel, é?”. Ia querer mais quem? Os outros meninos da loja, os pão-com-ovo da Suburbana? Nem em baile, nem em festa grande, via quem brilhasse daquele mesmo sorriso, nos fios grisalhos, o corpo em pé no porte. Lembro que ele me viu e pediu sugestão para comprar um vestido para a esposa. Eu segurei a vontade e mostrei os mais bonitos: pedia para que ele tocasse os vestidos, e ele acabou tocando a minha mão. “Meu nome é Bernardo”, disse mais tarde, no bar. “O meu é Alex”, eu disse. Estava nervoso, e eu perguntei se ele gostava de mim. Bernardo só tinha coragem para beijar e mais nada. “Então beija”. Só dormirmos juntos na outra vinda, no hotel, quando eu vendei os olhos dele. “O corpo não vê diferença”. E provei. A partir daí, quando Bernardo aterrissava em Salvador, ficava entre o meu quarto e o hotel. Adorava ver aquele paulista grande indo à padaria comigo, sendo olhado. Sentia uma falta depois, caminhava sem tamanho pela calçada, meio metro de um passo pra cá e outro pra lá, até comprava em outra vendinha e comia pão como tinha. Ficava feliz só quando Lícia vinha comer seu bocado. Lícia era o cágado filhote que vivia lá em casa, debaixo da geladeira. Presente de minha mãe, quando eu voltei de Alagoinhas. Pra minha mãe, ter um bicho desses é sinal de saúde, pois se a doença vem, o bicho defende. Eu só acho bonitas as cores, os desenhos no casco. Quando eu como na cozinha, Lícia vem da geladeira naquela velocidade incrível e me pede um pedaço. Bernardo gargalhava. A gente chupava manga e deixava o caroço para Lícia completar sua sobremesa. Mas à noite, o aviador não gostava de caminhar na cozinha, ligava as luzes para ter certeza de que não pisaria no cágado sem querer. Eu nunca tinha pensado nisso, passei a me preocupar desde então, e a imaginar meu peso sobre o casco ainda fino do bicho. Peguei a mania de ligar a luz até para beber água. Bernardo gostava de falar de animais: conversava sobre aqueles que viam no Amazonas, no Mato Grosso, as aves do Cerrado, o zoológico de São Paulo. Eu ficava mais fascinado pela quantidade de lugares que ele contava: o resto do mundo era uma distância tão grande que não me cabia. Me criei na roça, chamava Salvador de “Bahia” e vim de carona com um tio. Rio de Janeiro era cenário montado de novela, Paris e Nova York eram cenário pra foto. Não imaginava de verdade que pessoas vivessem lá, amassem lá. “Como é o mundo visto de cima?”, perguntei a ele. “O melhor. Tudo parece desenhado e perfeito, e toda a gente só é vista de longe”. Perguntei se ele gostaria de viver no ar, e era meu jeito de saber se ele escolheria viver longe de mim. Ele se calou. Não sei também se eu teria uma resposta. Ao contrário do que Jeremias e Clotilde falam, não é fácil ser o comandante. Bernardo me disse que, depois de velho, a gente percebe que não escolhe quase nunca, porque na verdade já escolheu tudo há muito tempo. Comandar não era bem escolher, a não ser com Garcez, o piloto que se perdeu em pleno ar. Foi na década de 80, ao viajar sobre o Norte, em direção a Belém. Quando Garcez foi pousar, não viu cidade, nem luz, só floresta e um sol de fim de tarde. Eu só imagino a hora em que esse piloto desceu pelas nuvens e soube do engano. Circulou para ver se ainda encontrava a cidade, e de tanto girar perdeu a rota. Nem voltar à cidade de origem conseguia. Tentou se achar e se perdeu mais, com umas cinquenta pessoas a bordo. Os controladores não conseguiam saber o paradeiro, nem o piloto informar referência. Na floresta amazônica os sinais pegavam mal. A noite chegou, e Garcez pedia para que acendessem as luzes dos aeroportos ao redor, mas não conseguiu aproximação com nenhum. O combustível diminuía a cada minuto, até que não teve outro jeito senão pousar logo abaixo. No escuro, perdido, sem saber se embaixo tinha um rio ou um campo, árvore ou montanha. Bernardo me mostrou o áudio na internet da hora em que o piloto anunciou a descida. Garcez desejou a todos um bom final. Acho isso incrível: estar completamente suspenso, sem ajuda de ninguém, sem treinamento especial, sem conhecimento de nada, se aprontando para fazer pela primeira e única vez algo entre a vida e a morte. Será que estamos sempre assim? Me arrepiou quando esse Garcez disse: “Atenção, tripulação, preparar para o pouso forçado”. Até hoje, às vezes, quando eu preciso decidir uma coisa muito forte, repito como um mantra. Bernardo me avisou que o piloto é considerado uma besta, foi uma cagada enorme, ele errou um simples número na hora de decolar, coisa que nem um estagiário faria. “Mas o diabo”, completou, “é que ele pousou como um semideus. O avião pegou a parte de cima das árvores e deslizou, entrando pelos galhos, até parar quilômetros”. Garcez conseguiu botar o avião no chão! Não entendo de nada técnico, e sei que esse piloto pode ser mesmo culpado pela morte de muita gente, não sei, mas para mim é uma imagem que fica. “Atenção, tripulação, preparar para o pouso forçado”. No nada. “Cruz credo!”, me respondeu Clotilde, quando eu contei. “Meio burro, meio gênio, todo mundo é, meu amor, só não tem um avião na mão”, me falou Jeremias. E me perguntaram se eu não achava Bernardo todo perdido. “Com você, ele está na selva! Bicha gulosa!”. Logo quis estudar, viajar, não sei. Com Bernardo soube que eu conseguia entender as coisas, porque ele viu muito e me disse, e eu sentia quase tudo. Porque de mim ele também soube do que não existia. No dia em que fomos para uma casa de praia na Ilha, passar o domingo de folga, eu experimentei tomar ele para mim. Até então eu era a sua amante, me entregava como uma mulher. Sem que nos falássemos, me deslizei, e foi isso, uma fluidez. Minutos depois de terminar, ele passou a socar o travesseiro e a chorar entre irado e medroso. “Eu sou viado!”, gritava abafando o som na fronha. Tive de deixar a raiva passar, até fazer cafuné e envolver seu corpo. “Já viu alguma coisa ser mesmo o que chamam?”, eu falei. “Tudo é só o que chamam. A gente se confunde. Fica perdido no meio. Mas as coisas, o mundo mesmo é selva”. Na lan house depois, abri um site sobre mata, e é verdade: tudo se abriga lá. Jeremias tinha razão, eu era esse lugar perdido. Bernardo demorou três semanas para aparecer e disse que a escala não coincidia com Salvador. Fiquei sem ir à padaria nenhuma, nem comia às vezes. Me acalmou um livro enviado de presente, O Pequeno Príncipe, e escreveu que o autor tinha sido piloto também. Ri e reli, deixava debaixo do balcão da loja. “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Será? Acho que não. Eu te libero, Bernardo. Naquele final de semana, você não quis que a gente repetisse o que fez na ilha, voltei a ser mulher, mas de um jeito ruim. Você me machucou, e eu não quis continuar. Eu te bati na cara para você saber que estava com gente, meio bicho mesmo e gente. Uma coisa que você não aprendeu foi brigar, mesmo nos seus anos de garotão na Zona Norte de São Paulo, e iria tomar porrada se viesse. Mas você entendeu, pediu desculpas, por tudo, tudo, e viu aí que estava me envolvendo. Eu era o rapaz suburbano do Nordeste que você podia ver quando quisesse, mas logo se importou, e o seu pânico foi descobrir que se importava. Chorou daquela vez até ficar vermelho e de dar dó. Parecia que em sua cabeça havia um passeio de inferno, que é quando tudo se junta: disse o padre uma vez que não é o fogo que nos queima no inferno, mas o “não” da nossa mão, a nossa mão nega o fogo e por isso se queima. Nunca entendi, mas guardei. Tinha muitos “nãos” ali, eu enxerguei no seu olho, e você, igual a todo mundo, só não queria sofrer. A sua ligação, dois dias depois, dizendo que sua esposa descobriu a alteração de sua escala e desconfiou de tantas idas a Salvador… Eu sabia. Você disse que teria de sumir por uns tempos. E eu soube que você escapulia, porque aí onde você mora a pista já está clara, plana, pronta para pousar. Você não quer pousar na mata amazônica. Como pode falar mal de Garcez? “Mas ele não podia fazer outra coisa, eu posso”, disse Bernardo. E é verdade. O que eu queria, o que eu esperava? Tem herói feito sem obrigação, tem herói que poderia virar as costas para o vilão e sair? O vilão faz o herói. Coragem é conversa fiada, a gente só duela quando não tem escapatória. Bernardo tinha: uma carreira à frente, uma mulher que logo engravidaria, conquistas e amizades feitas. O máximo que ele faria era arranjar outro rapaz bonito, mais próximo, um comissário: algumas aventuras para deixar tudo como está. Estava tudo certo e assim ficaria – tudo já ANAC, CENIPA, torre chamando. Eu disse que ele não precisava mais me procurar, que selva ele não aguenta. Não! Desliguei o telefone e tremia. Fui para cozinha tomar uma água. Fui pegar o açúcar e daí senti que pisava em algo duro. Me alarmei em um salto e procurei o interruptor. Não achava, e comecei a chorar: com certeza havia esmagado o cágado… Um teto que só é casco, meu deus. Quebrei tudo, meu deus, tudo, tudo. Com a luz, olhei para o chão de imediato. Eu havia pisado era no caroço de manga, e chorei. Arrastei a geladeira até encontrar Elisa, que se encolheu inteira. Fiquei alisando com o dedo e soluçando. “Pensei que tivesse te perdido. Você não, você não…”. Pedi licença do trabalho por três dias. À noite, Jeremias e Clotilde vieram cuidar de mim. No sábado, eu disse que iria comprar ração para Elisa, que só comendo coisa do chão ela não cresceria nunca. “E você lá entende desse bicho. Não sabe nem se é cágado ou jabuti ou tartaruga, nem se é macho ou se é fêmea!”. Saí no dia seguinte só para isso, mas no meio do caminho, parei no ponto e peguei o ônibus para o Aeroporto. Uma hora de percurso, até passar pela entrada de bambus, que Bernardo dizia ser famosa como uma das entradas de aeroporto mais bonitas. Caminhei pelo saguão, senti o frio do ar condicionado, me espantei com todos aqueles painéis, e era gente de mala, gente esperando. Subi a escada rolante para uma área sem ninguém, só com uma enorme janela para a pista. Em volta, árvores altas e o branco das dunas. Um avião imenso acabava de aterrissar, e fazia um som, o seu som de animal. Era bicho, eu era, tudo era. E me mexi de alegria porque entendi e passei a viver entendendo. Bernardo estaria para sempre no ar.
(do livro “O Mar e Seus Descontentes”, pela Via Litterarum, 2016)