Raramente meu sobrinho vem me visitar. Uma certa manhã, ele apareceu aqui de repente. Ele tem dez anos. Chegou tão cedo que entrou no meu quarto me acordando. “Tio, vamos brincar no parquinho?”. O parquinho, há quanto tempo eu não ia lá. Nem me lembrava mais da sombra da mangueira e da areia que cobria aquele campinho.
Mal chegamos e começamos a desbravá-lo, cavando na areia um buraco muito grande. Usávamos uma pá nova que pegamos na garagem, mas não conseguimos tirar tudo, até que o buraco foi aumentando à medida que as coisas apareciam.
Deixei então a pá encostada na parede e comecei a cavar com as minhas próprias mãos. Logo percebi que tinha anoitecido rapidamente, desde cedo estávamos cavando. Foi quando comecei a encontrar os primeiros objetos.
O relógio preto que meu pai me deu de presente quando fiz dez anos, a foto de minha primeira namorada, a bola de basquete, o badogue com que eu brincava atirando pedras, o murro que eu levei na cara do meu melhor amigo, os carrinhos de ferro que eu colecionava, o grito da professora, meu sonho de ser astronauta, meus óculos quebrados, a imagem que tinha de Deus, o medo da morte, todos os fantasmas que vinham me atormentar à noite, as músicas de Moraes Moreira, o fim do mundo, o mendigo que morreu na porta do meu prédio, o sorriso de minha irmã, minhas primeiras observações sobre o sol, o escuro das escadas vazias, as mulheres velhas que me assustavam, as cores dos potes de tinta com que eu pintava, a barraquinha de camping…
Continuamos cavando, até que meu sobrinho olhou para tudo aquilo que estava exposto e disse: “Todas essas coisas não são mais suas. De quem são?”. Eu também não sabia, mas não pude encará-lo. Somente uma decisão me restaria naquele momento: eu nunca mais exumaria minhas memórias como se fossem uma brincadeira qualquer.
(Quando A Luz Do Sol Desaparecer, Nada Vai Se Alterar No Universo; Crônicas, Editora Via Literarum, 2018)