Por falar de mar, meu camarada, tem histórias e mais histórias. Mas, Como dizia o povo antigo, cada coisa só acontece na sua hora e no seu lugar. Assim mesmo é que é. E assim foi comigo.
Já viu o homem de beira-mar que não entende de navegação? Pois está falando com ele. Mas eu sempre vivi muito satisfeito ajudando a vender os pescadores de meu pai, no saveiro Boa Esperança. Na vidinha gostosa. É verdade! Pode acreditar.
O vento que sopra do mar, a viração da noite e de dia, a posse a cada tarde de um novo pôr-do-sol, poder escutar as marés mudando o compasso de um canto misterioso como é o canto das ondas, apreciar a chuva quando começa fininha passando entre as palmas abertas dos Coqueiros, até desabar arrastando as Palhas e a terra do chão, tudo isso é um presente de Deus. E mais que isso, o poder de entender a força da tempestade quando os raios se atiram com riscos vermelhos rasgando o espaço, tudo isso, meu camarada, tudo isso, faz o encanto da vida para o homem do mar.
Pois eu vivia assim, na simplicidade de um saveiro e na alegria de acompanhar o velejar do meu pai, no Boa Esperança. Eu era um homem feliz.
Conheci o outro lado da vida naquele dia em que Zé me convidou para viajar no seu barco.
Zé era um pouco complicado. A gente nunca sabia quando ele estava falando a sério ou estava de brincadeira. Ninguém sabia nem para onde o Zé se mandava mar afora, sem contar a ninguém o seu destino. Sujeito estranho era o Zé, meu camarada.
Eu duvidei, quando Zé me convidou, porque ele só viajava sozinho. Era amigo de todo mundo, todo mundo era amigo de Zé, mas ele não era particular de ninguém. Nem mesmo de Marialva, uma menina nova que tinha namoro com ele havia muito tempo. Era um amor, uma paixão que não tinha mais tamanho, mas quem disse que Zé se resolvia a casar com Marialva? Diziam que ele não queria perder a liberdade de dançar e andar pelo bar abraçado com a mulher que primeiro aparecesse, de andar distribuindo presentes a quem bem entendesse. Eu não sei, ninguém sabia, ele só sorria seu sorriso engraçado de quem não quer mesmo é dar satisfação a ninguém. Ele dizia que mulher só precisava ter simpatia e ser cheirosa. Até se não fosse muito bonita, não tinha importância, que toda mulher, só por ser mulher, já tinha sua beleza, mas simpatia mulher tinha que ter. Zé era assim, meu camarada, tinha lá suas ideias e suas manias acho que por ser assim, ele não contava a ninguém o que fazia na vida depois que parou de pescar. Entrava no vendaval e sumia pelo meio do Oceano. Um dia ele voltava. O mastro do Vendaval bem alto, poderoso, parecendo rei do espaço, oferecendo ao vento a larga vela branca, arredondada como uma barriga grávida.
A meninada na praia começava a festejar – Lá vem o vendaval! E ficava alvoraçada, esperando o saveiro encostar. Todo menino do lugar queria ser como o Zé.
Ele recolhe as velas, amarrava a espia ao mourão do cais, e desembarcava, com o tronco no, molhado, e o calção colado as pernas, encharcado de água salgada no fundo do barco os balaios cheios de frutas que, ainda pela rua, ia distribuindo com os meninos que corriam tentando acompanhar seu caminhar gingado e ele vivia assim, e todo mundo por lá também vivia gostando do Zé do jeito mesmo que ele era.
No dia em que ele me convidou para viajar no Vendaval, não aceitei logo, porque fiquei desconfiado. Como eu tinha uma dorzinha de cotovelo por Marialva, e todo mundo sabia disso, fiquei matutando sobre o convite. Zé não convidava ninguém para entrar no Vendaval. Por que me convidou?
Uns diziam que o saveiro tinha pertencido a um avô de Zé, um Pescador respeitado, mas que tinha uma cisma, era supersticioso. No barco dele não entrava mulher. Ele acreditava que a sedução da mulher atrapalhava a pescaria, quisesse ou não quisesse o homem que estivesse com ela. E que por isso é que o Vendaval era o maior pesqueiro da redondeza. Mas isso, naquele tempo, meu camarada, porque de uns tempos para cá, o Vendaval tinha deixado de ser pesqueiro, e ninguém sabia do que vivia Zé, o herdeiro do saveiro.
Outros também falavam que, certa vez, encontraram o Zé namorando Marialva dentro do Vendaval. Que tinha sido em uma noite Santa de sexta-feira da Paixão, e que, por isso, o barco de Zé ficara amaldiçoado. E quem tentasse pescar naquele saveiro nunca mais apanharia nenhum peixe. Isso diziam. Mas dizem tanta coisa, não é, meu camarada? O real mesmo é que Zé deixou de pescar no Vendaval depois daquele dia, porque não pegava nada.
O primeiro dia foi quase um dia de luto no lugar. Quando o saveiro encostou, a princípio ninguém parecia entender por que retornava sem pescado. Uma Bulma triste torturava os olhos grandes de Zé. Todo mundo olhou para o barco e os olhos correram para o rosto de Zé, mas ninguém perguntou o que quer que fosse, para não atormentar mais o espírito do homem. Todo mundo respeitou o silêncio da tristeza dele. Parecia um funeral. As ondas de enchente de março batiam no casco do saveiro espalhando para o alto a espuma branca espessa que salpicava nos rostos dos meninos que tinham a corrido para a atração do barco. E era somente o que se escutava acompanhando o rumor da ventania daquele fim de tarde. Eu me lembro como se fosse hoje, meu camarada, o céu estava cinzento que nem a véspera da Tempestade. O Vendaval ia lá e vinha cá na fúria das ondas, e ninguém falava nada, olhando, no fundo, os balaios sem um peixe. Só depois que o povo foi se dispersando, os murmúrios começaram.
Tinha sido por aqueles dias que flagraram o namoro de Zé com Marialva dentro do saveiro. Bem que o avô falava da maldição.
Desde aquele dia Zé tornou-se pensativo. Todo mundo reparava que a alegria dele estava entristecida. Mesmo depois que ele começou a viajar sem revelar o destino do barco; e, depois de demorar um exagero de tempo, voltava com os balaios cheios de frutas, mesmo por esse tempo, ele não tinha mais a mesma alegria antiga, seu rosto aguardava uma sombra que olho de ninguém atravessava. Homem de mar não fica sem pescar, meu camarada. Homem de mar traz, nas veias, os roteiros da navegação; a pescaria é destino que vem traçado nas palmas das mãos.
Foi depois de passado um tempo, que, um dia, Zé me convidou para viajar com ele, como lhe disse antes. Como também lhe disse, fiquei desconfiado e perguntei até onde ele estava me chamando para ir com ele.
– Quando a gente estiver em alto mar eu lhe conto – ele me respondeu. Mas eu pensei: Será que Zé tá com ciúme e quer me levar para me dar um fim, por causa de Marialva? Porque ele não me diz logo para onde tá querendo me levar? Isso eu pensei que estava bem pensado, embora eu soubesse que Zé sempre fora cheio de mistérios, principalmente depois que deixou de pescar. Mas meu receio tinha razão de ser, ou não tinha?
Aí fui procurar Mestre Moreno.
Depois que meu pai morreu, eu quase fui morar na casa de Mestre Moreno. Quer dizer, morar mesmo, não. Eu morava mesmo era no barraco onde sempre vivi com meu pai. Isso porque meu irmão se mandou do mundo quando minha mãe morreu e ninguém mais soube dele. Mas eu ficava muito tempo lá com Mestre Moreno e tia Cilu, porque eu não sabia navegar, só sabia vender os peixes que meu pai pescava. Por isso fui ajudar a vender os peixes de mestre Moreno e acabei Considerando o mestre no lugar do meu pai para me ensinar tudo, para me aconselhar, sempre que eu precisava. Sabe como é, meu camarada, menino novo precisava ter aquele mais velho, mais vivido, para lhe ensinar as coisas certas deste mundo.
Fui perguntar ao Mestre o que ele achava de eu me mandar pelo mundo afora no Vendaval, sem saber para onde estava indo.
-Sua cabeça é seu mestre, você já é um homem, menino. – ele respondeu.
Queria dizer que era eu quem resolvia, que já tinha idade para decidir a minha vida. Ah, meu camarada, Será que tem idade para a gente saber decidir? Os atalhos da vida são tão escuros que eu acho que um homem nunca vai ser um homem completo, no sentido de resolver as estradas da sua vida com sabedoria. Os atalhos da vida são como uma noite de escuridão, que a gente tem obrigação de atravessar. Acho que o homem sempre será cego para decidir seu rumo, por que depois da noite de hoje, até chegar o amanhecer de amanhã, só se vê pela frente a escuridão do desconhecido, para ir por dentro dela, tentando apostar que acertou, que fez o que era melhor. Pois eu fiquei assim, de dentro daquela indecisão, só considerando. Seria que Zé estava pensando em livrar-se de mim, naquela viagem? Sempre eu ficava pensando, se ele amava tanto Marialva, porque não casava logo com ela, em vez de se mandar mar afora, por tanto tempo e deixar a mulher sozinha? Então ele queria me levar, para se livrar de mim e não ter preocupação na sua ausência mas eu não queria que Zé percebesse a minha desconfiança. E já que eu precisava resolver, resolvi.
Fui viajar com Zé sem saber para onde ia.
Entramos no Vendaval com uma carga enorme. Ele falou que eram mantimentos. Perguntei o que eu poderia fazer para ajudar na viagem. Isso porque eu achava que não estava certo sair aproveitando aquela imensidão de mar, só como quem aproveita um passeio de diversão, sem fazer qualquer coisa para dar uma ajuda. Não estava direito, eu pensava. Se até quando viajava com meu pai, no Boa Esperança, nos tempos de menino, meu pai sempre me pedia para dar uma ajuda, segurando uma corda, ajeitar um balaio, qualquer coisa assim… Só nunca me ensinou os segredos da navegação. Zé não me deu resposta. Nem tirou os olhos do mar, de pé como estava, no comando do leme. Achei que ele tinha uma preocupação e rezei para que ela não fosse sua má intenção em relação a mim. Então fiquei ali mudo também, só olhando o Vendaval cortando a água como um facão afiado, e indo em frente, para onde só Deus sabia. Durante toda a viagem ele quase era outra pessoa. Não era o Zé das brincadeiras no mar, do jeitão de sedutor que parecia querer todas as mulheres que encontrava. Era um zé emudecido, sisudo, que parecia que tinha perdido a voz. Quase todo tempo. E olhe que a viagem venceu muitos dias e muitas noites. Só às vezes ele recolhia as velas e deixava o saveiro dormir na preamar, para descansar, E então assobiava um pouco como quem se sente despreocupado e feliz. E era só nessas horas que eu relaxava, porque trocávamos algumas palavras, um comentário bobo sobre as coisas da terra, mas nunca se falava no nome de Marialva. Ela assim, meu camarada, como uma ferida aberta no meio de nós dois, o nome dela, que nem ele nem eu tinha mais coragem de tocar, porque com certeza ia doer. Nele e em mim. Isso eu pensava e isso eu teria. Mas ele não demonstrou uma vez sequer. E ele já tinha tido muito tempo para me atacar, atirar meu corpo dentro do oceano, alimentar com meu corpo os tubarões, sem uma testemunha que fosse. Tempo ele bem que teve quem sabe por quê não fez?