(Poema único)
suas águas
já não são as mesmas.
há a dureza do asfalto
por onde correm
gotas e lágrimas
[chuva
que lava, leva.
tal como filho,
que no desassossego,
retorna para o colo da mãe.
suas águas são
como o sangue a cobrar
aos seus, tantos
em trapos sensíveis,
insensíveis, carne
que se perfuma, mas
logo volta a exalar, carne.
somos pobres, somos ricos,
e ainda se consegue,
em raros momentos,
ver o brilho
de sua calda.
ladainha de loló
que a sereia do dique
não mais encontra essência na terra
que lhe toque o coração. isso
fez com que perdesse o interesse pelo ar.
que um dia fora como nós e cansou
da imagem do sangue
derramado. que
se exilou
no fundo do dique do tororó.
que sua pureza era única
em toda cidade. que
as entidades espirituais
a encontraram, deram-lhe vida
sob as águas. o canto,
a beleza conhecida de rainha.
jorge silva souza, era
como sua mãe chamava-o, mas
já havia tanto tempo,
ele não ouvia mais a sua voz. cruel,
era como o chamavam agora.
magro, dentes alvos, cruel
tinha a pele do menino que era.
manuel, o padeiro, toda manhã
dava-lhe uma meia de leite com pão,
brincava
cruelzinho,
[ que pelo tamanho infantil
maria, da esquina, passou
a chamá-lo:
elzinho,
[ que um menino tão bom não merecia um nome tão cruel.
a vida
nas ruas era para quem tinha imaginação.
gerir as dores, as necessidades, quase
todas humanas. talvez
elzinho
se sentisse
como um personagem.
aqueles
que lhe lançavam olhares fictícios,
se portavam com uma maldade real.
elzinho,
que andava nas ruas
sob a pele de cruel,
não se orgulhava, mas
o medo,
o desespero,
moviam
o umbral que há dentro da noite.
I
na piedade,
no final da missa,
pedia perdão
olhava os carros passar.
antes da ave maria
estava de volta:
varria as calçadas,
recolhia o lixo,
dava recados,
lavava carros, o suor
encontrava elzinho
e no final da noite,
o menino comia, bebia,
dormia na relva
contando estrelas.
II
a chuva caiu.
quando a noite chegou,
continuava.
nestas horas cada um procura
o abrigo do seu teto para
esquecer-se do mundo.
III
eram dias que antecediam o carnaval,
o lixo solto levado pela correnteza.
elzinho fizera um casebre sobre a árvore,
mas abrigou-se sob a marquise da padaria.
sentia frio e fome ao perceber
as luzes do giroflex se aproximar
intermitentes,
coloridas,
enganadoras.
IV
a manhã seguinte surgiu como num filme
a exibir imagens intocáveis. o dique, lindo.
seu manuel, a vender pães e leite,
cantando antigas marchinhas.
animado com aquele movimento na sua padaria,
homens e mulheres de vários lugares do mundo.
na esquina, maria não estava,
viajara para brincar o carnaval do rio.
nesta época a cidade é regida pelos confetes.
a vida gira em torno dos pequenos coloridos.
as senhoras das janelas passam
concentradas em suas máquinas,
costurando os abadás das meninas.
os bares, vestidos de cartazes de cervejas,
estão sempre lotados.
os ônibus ganham novas direções,
devido a confusão no trânsito…
toda dor é esquecida,
toda fome é suprimida,
todo morador é turista,
ou seria,
todo turista é morador?
dia de fevereiro
um corpo boiava nas águas.
a multidão se acumulou tentando ver melhor o cadáver,
por alguns instantes a festa se deu ali.
enquanto as autoridades responsáveis
não chegavam para dar um fim ao espetáculo,
ambulantes vendiam bebidas e espetinhos.
crianças corriam, outros dançavam,
o sentido da vida, do que era elástico.
quando o socorro chegou, o povo
envolto a uma atmosfera de carpe diem,
dificultou a passagem. minutos depois,
quando os confetes cessaram,
o foco voltou a ser o corpo
que boiava nas águas do dique.
as dezenas de olhares
não conseguiram encontrar.
o corpo havia sumido,
com o silêncio que se estabeleceu,
ouvia-se apenas um canto distante
que se misturava ao som do vento:
de beleza e poesia.
quarta-feira de cinzas
elzinho
nunca mais
foi visto.
lembro dele
cantando
as músicas que já não
tocam mais, feliz,
depois
de ganhar algumas moedas.
fecho os olhos, vejo
tudo escurecer.
Tiago D. Oliveira
Do livro Contações, Ed. Patuá, 2018