Dessa vez, eu era a estátua de pedra erigida sobre as areias da praia. Apesar das ermas paragens onde me fizeram habitar, tudo ao redor eram olhos. A condição de vida de qualquer estátua é ser contemplada. E eu viva estava. As lágrimas do mar fustigavam-me com violência as ilhargas e as areias vestiam e consolavam-me a face numa sombra. Estátua é coisa que serve para se observar. E eu, em sombra, me observava. Nesses solitários terrenos, quem não tem sombra não pode dizer eu.
Entre nós, a luz. Essa luz apertada de sol a determinar o quanto de mim me era possível saber. Houve tempos em que me manteve dormente, abstendo-se do repouso que eu, devota, lhe oferecia. E tempos em que seu intenso, ardente poder tornava benfazejos os açoites das ressacas, enquanto minha imagem no solo se agigantava. Não que o tempo fosse relevante – nunca houve quem previsse tais circunstâncias – mas a teimosia das claridades e negrumes contavam de algo além de minhas matéria e força. Eu era, então, a sombra da dúvida.
Foi quando, em meio tediosa eternidade de areia, meus contornos pareciam se ofuscar e desaparecer em inesperada treva: misteriosa comunhão de coisas a estenderem-se areentas, vagas, mareadas. Estrelas só faziam irradiar a obscuridade de tudo. Como se fosse a liberdade, crescendo no escuro, tomando o mundo com a sua nudez. Era prazeroso ser mais que estátua contemplando a própria sombra, mais que areia molhada suportando a sombra de uma estátua, mais que água e sal inundando areia. A sombra odiosa finalmente nos abandonava à sorte da fusão dos elementos no breu. Sim, foi numa dessas vezes de libertino enlevo a que chamamos noite, que senti um movimentos diferente a agitar as areias.
As vagas que calmamente espichavam-se pelo espaço, num repente, fizeram-se bravas, dando-se a conhecer à lanterna estranha que vinha lá. Caranguejos esfacelados, foscas as estrelas, conchas e animais decompostos tomando a orla, ritmo. Uma faca de ar armava sua mira na direção de minha cabeça e, num átimo, meus pensamentos circulares encontraram centro na recente sombra que se projetava às minhas costas: novamente a me contemplar tão logo aquela foice de vento torcera-me o pescoço para trás, fazendo-me desmoronar sobre a areia.
Eu era, então, partes assustadas de estátua a se mirarem pelo avesso. Braços e pernas, pela primeira vez, moviam-se; eram flechas a se atirarem ao mar. Um torso espesso de onde pendiam tetas como frutas a apodrecerem. Uma cabeça pontuda. Era o que me descrevia aquela sombra que retornara imprecisa. Eu era tantas e várias que me sentia tonta não pela violência da pancada, mas pelo desfoque daquelas imagens. Tentando juntar minhas partes, notei-me em convergência com o buraco que livre se alargava sob
meu ventre, consumindo suavemente uma infinidade de grãos de areia. Buraco não tem sombra, pensei.
E de novo senti o bafo gélido que vinha dos confins do mar que já não me pertencia. Bumerangue de vento que golpeava o horizonte e o trazia em força contra meus pedaços espalhados pela praia. A foice tornava a sincopar o ar, este que sempre me enchera de carícias quando tudo eram sombras. Foice de vento malicioso e austero contra meus seios, boca e olhos e todos os buracos sedentos de ira. Tortuosa lâmina sem rastro, sombra ou dúvida, partindo meios e fins: finda tua sina no centro sensível e oculto daquela que vos enfrenta.
Foram rápidos e tão precisos os golpes da inclemente ventania que minhas partes se destroçaram sobre a praia e fizeram calmo o dia. A brisa organizava as areias que consolavam o pó em que me tornara. Livrara-se o mar de toda vaidade e eu quis dizer-lhe ainda uma palavra, mas logo fui tragada por uma lenta onda que se lançara distraída.