– Não. Deixa a vassoura aí. Hoje não pode fazer nada, é dia santo! – dizia
vovó.
Era assim o ritual mágico da Semana Santa. Na quinta-feira, a casa ficava
cheia de expectativas e emoções. O terreiro recebia o cisco vermelho do
amendoim torrado e da sala podia se ouvir o bater do pilão a misturar castanha e farinha para fazer a fufuca.
Até os gatos perdiam o medo e ficavam a miar durante todo o dia atraídos pelo cheiro de peixe que dominava o espaço. Na cozinha, eu velava o ritual
gastronômico do caruru feito por minhas tias: cortar o quiabo, limpar o camarão, colocar o pão de molho para fazer o vatapá, o azeite de dendê
dançando com o leite de coco batido na hora criavam uma pintura única na
superfície da moqueca. O arroz branco ganhava um toque especial com o
bagaço do coco e de ingrediente em ingrediente o banquete ia se formando.
Vovô ficava sempre com a parte de entreter as crianças: levar paro o rio, para brincar no curral, amarrar balanços e rede, ensinar a jogar peão… Ele era o capitão do nosso acampamento.
Pronto! A noite chegou e ninguém mais entra na cozinha. Os panos de prato, brancos e limpos, cobrem as panelas substituindo as tampas de alumínio anunciando a fragilidade daqueles pratos típicos. Se mexer pode azedar.
A noite passava como um relâmpago e de manhã começavam a chegar os filhos e os filhos dos filhos, os amigos e os amigos dos amigos. Se ontem o
terreiro estava coberto de palha de amendoim, hoje são os carros, motos, cavalos e as crianças correndo que enfeitam o chão de barro vermelho. Depois dos abraços dados, alguém entoava da varanda:
-Crianças! Venham lavar as mãos para almoçar.
A reza abençoava a mesa e agradecia pela fartura epela união que aquele dia nos dava. Alguns “améns” depois e, as crianças com seus pratos fartos já começavam a se espalhar pelo chão. Se tem uma coisa que criança gosta na
casa da avó, essa coisa é chão.
Terminado o almoço, a regra continuava a mesma:
–Não. Deixa os pratos aí. Ainda é dia santo!
Todo mundo se dirigia até o rancho e a únicao brigação era manter as histórias vivas na roda de conversa, saber como andava a vida uns dos outros até que a tarde caísse e os carros começassem fazer o processo inverso, o mais difícil, o da volta, aquele que nos devolvia às nossas semanas profanas de almoço rápido, atividade escolar para fazer, brincadeira limitada e chinelo no pé.
Vovô com seu chapéu preto e a camisa aberta até a altura do peito ficava de olho na cabeceira da ladeira para ver se todo mundo tinha passado, ido.
-Vardo passou lá agora! – falava dando meia volta.
No dia seguinte ele levantava antes das galinhas ecatava tudo que tinha nos
pés de fruta e a farinha que tinha feito com as próprias mãos, arrumava em
sacos separados e quando a gente levantava, ele já estava assoviando com
um palito de dente na boca. Seu assovio era uma forma de dizer: já estou com saudade!
A gente entendia, abraçava e pedia a bênção.
Deixar a vassoura de lado tinha o mesmo significado de quando Marta e Maria receberam Jesus. Marta escolheu as tarefas, Maria escolheu apreciar a presença. Ficou com a melhor parte. E era isso que vovó queria dizer:
aproveite a melhor parte, aproveitem estar juntos.
Toda semana é santa quando se espera por quem a gente ama e não há nada mais gostoso do que riso coletivo no pé da mesa.
“Vamos celebrar, o amor há de renascer das cinzas.”
Cantava Mateus Aleluia enquanto eu escrevia.
Em memória de meu avô Jonas que desde fevereiro de 2006 ressignificou a palavra saudade .