“Já somos nós livres, já somos nação!…”
Castro Alves (Ode ao Dois de Julho)
1. LAPINHA
Quitéria se vestiu como a heroína da história para desfilar no Dois de Julho. Acordou cedo, tomou café requentado com um resto de biscoitos amolecidos pelo mofo do velho armário, pôs um vestido verde com bordado amarelo à altura dos joelhos, uma calça amarela e um capacete de papelão, verde com um penacho amarelo. Como não tinha botas, calçou a velha galocha com a qual, nos dias de chuva, pisava no lamaçal que se formava na encosta em que morava. Passou um batom que não se sobressaía nos lábios grossos e ressecados e saiu para a Lapinha. Jamais se atrasava para a festa da Independência da Bahia; da Bahia somente, não, da verdadeira Independência do Brasil, como gostava de dizer em seu ufanismo pueril. Não fora aqui que os portugueses, escorraçados do sul do país, se refugiaram e só saíram na marra, debaixo de tiro, faca, murro e cacete, fugindo pelo mar na madrugada de 2 de Julho de 1823 e abrindo caminho para a tropa vitoriosa entrar em festa em Salvador, pelo Caminho das Boiadas, depois Estrada Liberdade; hoje, Avenida Lima e Silva, numa marcha de negros, brancos, caboclos, esfarrapados, famintos, mas todos felizes? Na Bahia teve guerra mesmo; não foi aquela caganeira do imperador às margens plácidas do Ipiranga, um grito de dor de barriga, não um brado marcial de independência.
Em pontualidade, Quitéria só perdia para o batalhão dos Encourados, que saia no meio da noite de Pedrão, próximo a Irará, para embelezar o cortejo com suas roupas de couro legítimo, calças, jaleco, chapéu de vaqueiro, botas, esporas, facão e espingarda. Era bonito ver aqueles vaqueiros montados nos cavalos como guerreiros sertanejos que partem para a luta, dispostos a tudo para defender a pátria. Quitéria, ou melhor Maria Quitéria Guerreiro dos Anjos, também nascida em Feira de Santana, no distrito que hoje se chama Maria Quitéria, como a mulher-soldado que lhe emprestava o nome, se deslumbrava com os Encourados de Pedrão. Saíram comandados por um padre, numa guerra santa, para se juntar aos verdadeiros patriotas, aos valorosos libertadores da pátria, como seu finado pai ¾ que o Deus o tenha junto a mãezinha e a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! ¾ lhe ensinara quando ainda era menina e sequer admirava a xará guerreira.
Fora o pai quem lhe deu o nome de Maria Quitéria; essa sim, mulher retada, ao contrário das Maria vai com as outras que apanham de homem e não reagem. Sapatão? Lésbica? Que nada! Mulher de verdade, para o que der e vier, bater em portuga, capar luso, defender a gente baiana e o povo brasileiro. Essa história de sapatão deve ter sido inventada em Portugal, por gente que jamais perdoou a surra que seus patrícios levaram na Bahia. Por que essa birra com Maria Quitéria de Jesus Medeiros? Vai ver porque, como ela, era moça do interior, se bem que filha de portugueses. Cadê que falavam de Anita Garibaldi, casada com italiano e tudo? E também de Joana D’Arc, ainda por cima francesa e santa? Para cima das duas, ninguém nunca veio com essa de mulher-homem, mas com a pobre da Maria Quitéria era sapatona, lésbica e pingueluda. Injustiça!
Que mania desse pessoal de diminuir as grandezas guerreiras, a coragem e a valentia de Maria Quitéria, heroína do povo, valente para chuchu. Veados, cambada de cornos e veados, isso sim! Dos Encourados dizem até que não lutaram, não dispararam um tiro sequer e que, quando se juntaram às tropas vencedoras, a guerra já tinha acabado. Se foi assim mesmo, o que importa? Não foram lutar, não pegaram em armas e partiram para a guerra, com vontade de matar ou morrer pela pátria? Então, dá no mesmo. São heróis do mesmo jeito. Os índios da Ilha de Itaparica também não lutaram com suas flechas ou vão dizer que foi tudo armação, folclore? Foi mesmo uma guerra de todo o povo brasileiro, de todo o povo da Bahia. Se alguém duvida, é só perguntar ao escritor lá de Itaparica… Como é mesmo o nome? Zé Reinaldo… João Ronaldo…Ah, sim: João Ubaldo. Vi o livro dele, mas não me deu coragem de ler. Só de olhar para o tamanho me deu tontura, mas ouvi dizer que fala de guerreiros da Bahia, como os que lutaram contra os portugueses.
Misericórdia! Olhe só quem está ali, toda pintada. Dona Ema. Salvador é mesmo do tamanho de um licuri. Como está mudada, bem mais magra. Antes tinha um castelo perto do Cine Liceu e se chamava Maria do Bonfim Soares. Depois, casou com um velho, virou madame e passou a se chamar Ema. Herdou um pensionato, que depois, fechou, do dia para noite, e se mandou no mundo. Gostava de se engraçar com um rapaz, um pensionista franzino. Era Galinho para cá, Galinho para lá. Coitado, obrigado a satisfazer as vontades de Dona Ema! Parecia feitiço. Onde andará, o rapaz? Já deve estar um homem feito. Vou falar com ela…
Fez menção de atravessar a calçada, onde muitos pais com os filhos menores aguardavam o início do desfile. Dona Ema, hei, Dona Ema! A mulher virou a cara e sumiu na multidão, como quem estava com pressa no caminho da festa.
Quitéria não se fez de rogada: Vai ver que não era ela. Dona Ema, magra desse jeito? Só se for ela mesmo. Quero é prova!
Gostava de ver as crianças no cortejo, com um cata-vento ou uma bandeirinha na mão ¾ de um lado o verde-amarelo, do outro as cores da Bahia. Apreciava ainda mais quando os pais as vestiam de índio, Caboclo, Cabocla, de Sóror Joana Angélica, que Deus a tenha (morta pela baioneta infiel dos portugueses, quando tentava impedir que entrassem no Convento da Lapa) e também de Maria Quitéria como ela. Tinha também sempre um homem vestido de Castro Alves, com aquele bigodinho de descarado e recitando a poesia que ele fez para o Dois de Julho, sem falar no Poeta das Flores, mas este se vestia dele próprio. Um homem já velho, com terno verde e amarelo, todo empertigado e elegante, que distribuía poesia escrita em flores de papel, cada uma mais bonita do que a outra. No ano passado, ganhara um poema do Poeta das Flores. Ia passando, quando o homem chamou: “Maria Quitéria”. Ela olhou e ele lhe estendeu uma flor: “Para você, minha gentil guerreira”. Foi o que ele disse, assim mesmo: “para você, minha gentil guerreira”. Não deu nem vontade de abrir a flor de papel para ler o poema. Aquela frase ¾ “para você, minha gentil guerreira” ¾ já era poesia. Entretanto, movida pela curiosidade de ver uns versos só para ela (até agora só havia recebido xingamentos e esporros), abriu a flor e leu:
No Dois de Julho, o tom é verde-amarelo;
a consciência límpida como o dia,
a coragem um anelo,
o solo sagrado a Bahia.
A baboseira ufanista a comoveu como um discurso caloroso, daqueles que a professora Socorro faz sobre o Dois de Julho. Guardou a flor de papel entre os seios volumosos e seguiu em direção ao Terreiro de Jesus. Este ano, ainda não vira o poeta. Terá adoecido? Que pena, um homem bom e inteligente, o primeiro poeta que vira de carne e osso e ainda mais distribuindo versos como quem oferece pipoca. Já o vira muitas vezes, com um tabuleiro na Ladeira da Barroquinha, sempre de terno e gravata, vendendo miudezas. Era uma pena que não vivesse das poesias que escreve nas flores de papel…
Apreciava o clima de carnaval, sem trio elétrico, que tomava conta das ruas de pedras irregulares, das ladeiras, becos e sobrados da velha Bahia, das bandas e fanfarras que tocavam marchinhas, frevos e dobrados. Até dos rapazes frescos vestidos de balizas, gostava. Quiseram proibir que saíssem de baliza, se requebrando todo como bailarina de rua, mas não conseguiram. A festa é de todos os baianos. Deles também que só querem se divertir e não ligam para arrelia daqueles que gritam “vai veado”… Coitados!
Só não gostava dos políticos roubando a festa, empurrando o povo para sair na frente e se aparecer em busca de voto e prestígio. Ano de eleição, apareciam de tudo o que é lado e partido político, que nem moscas varejeiras, na maior cara de pau. Na caça aos votos não perdiam o Dois de Julho, nem a Lavagem do Bonfim. Com ACM vivo, era briga certa. Não tinha moleza, não. Ele mandava descer a madeira nos inimigos. Já vi muito branquinho cair no cacete, aqui e na Lavagem do Bonfim. Os estudantes vinham, esculhambando ¾ “um, dos, três, ACM no xadrez” e ACM: “quatro, cinco e seis, pau no lombo de vocês”. O couro comia, com policiais à paisana dando porrada a torto e a direito, em direito e em torto, em quem passasse por perto e não respeitasse autoridade.
Até Lula quase cai no cacete. Ainda não era o presidente tão bom para os pobres. Lembro muito bem: Lula e Doutor Waldir Pires, mais o pessoal do PT que também não alisa, tentando passar na marra pelos homens de ACM. Passaram, mas com muita confusão e muito xingamento. No espreme-gato. Foi foda! A presepada só terminou na Cantina da Lua, quando o pessoal se espalhou pelo Terreiro de Jesus para tomar cerveja que ninguém é de ferro.
ACM era assim mesmo: não comia reggae, nem na Bahia, nem em Brasília, em canto nenhum do Brasil. Outra vez, também no Dois de Julho, brigou com a prefeita. Eu tava pertinho, vi e ouvi tudo. Aqui mesmo na Lapinha, na hora da saída dos carros do Caboclo e da Cabocla. O carro-de-som começou a tocar o Hino Dois de Julho, letra do alferes Ladislau Santos Titara e música do maestro José Santos Barreto, tá pensando que não sei?!
Nasce o sol a dois de julho
Brilha mais que o primeiro
É sinal que neste dia,
Até o sol é brasileiro.
Até aí, tudo bem. Lídice e sua turma na frente; ACM e seu pessoal mais atrás, como manda o figurino. ACM se retou quando começaram a olhar para ele e cantar:
Nunca mais o despotismo
Regerá nossas ações
Com tiranos não combinam
Brasileiros corações.
Aquele negócio de ficar repetindo, “com tiranos não combinam” enfezou o homem, que tentou dar um empurrão na prefeita. Lídice, que também não é de ficar calada, se virou e disse:
¾ Desencarna, ACM.
Assim mesmo, como quem quer se livrar de uma barata ¾ “Desencarna, ACM”. Só se fosse mesmo um político presepeiro como ACM para desencarnar na hora, continuou abusando até o Terreiro de Jesus, arreliando e acenando com aquele risinho escroto.
Às nove horas, em ponto, o cortejo saiu da Lapinha. Na frente, as carroças enfeitadas com as estátuas do Caboclo e da Cabocla; para os baianos mais crédulos, muitos mais que símbolos da resistência ao jugo português, verdadeiras entidades capazes de operar graças e desastres, Sete Facadas e Padilha, travestidos numa umbanda cívica. Para essa gente crédula, basta pedir, com fé, para o Caboclo interceder e, com força de vontade, para a Cabocla administrar a sorte ou o azar, a depender da encomenda. Os pesados veículos eram puxados e empurrados pelas ruas estreitas e ladeiras pelo Batalhão Quebra-ferro, prepostos da Prefeitura escolhidos para a estafante tarefa debaixo do sol escaldante ou sob a chuva revigorante, de acordo com a disposição da natureza.
Atrás das carroças, os políticos barulhentos da oposição. Os partidários da situação, arvorados em donos da festa mais do que o povo, saíam na frente. Em comum às duas facções, a usurpação da festa pública. Depois, vinham as manifestações da cultura popular da Bahia. Quitéria gostava do Zambiapunga, folguedo de Nilo Peçanha, no Baixo Sul, com seus participantes vestindo máscaras e roupas coloridas, fazendo percussão em tambores e enxadas. Apreciava também o Nego Fugido, do distrito de Acupe, em Santo Amaro da Purificação, uma encenação da revolta dos escravos contra o cativeiro. Ela não era também uma negra fugida, da fome, da miséria e até da morte, depois que mataram o pai em uma briga de bar; a mãe morta pouco tempo depois, de sofrimento abandono? Outro espetáculo que a encantava era o Lindro Amor, de São Francisco do Conde e São Sebastião do Passé, com as mulheres com saias grandes e estampadas, tocando viola, cavaquinho, pandeiro, tambor, violão, e falando no nome de Jesus. Parecia até a festa de Ternos e Reis da Lapinha. Por falar na Festa da Lapinha, onde andara Padre Pinto, bom sacerdote. Surtou e desmunhecou na Festa de Reis, dançando pintado e vestido de Oxum. Tadinho! Disseram que tava doido e quiseram botar para fora da igreja, mas que foi bacana ver o padre pintado e enfeitado como uma porta-estandarte, quebrando e soltando a franga, isso foi. Sacerdote animado desse jeito, nunca mais apareceu na Lapinha. Todo alegrezinho, Padre Pinto! Gente boa. Deus entende a fraqueza dele ou melhor a fortaleza, pois é preciso ser forte para, afetado, desafiar o bispo, o arcebispo e até o papa.
2. SOLEDADE
O cortejo deixou a Lapinha e parou defronte ao Convento para receber as homenagens das freiras e dos alunos do Colégio Nossa Senhora da Soledade. Quitéria ouvira falar, não sabia se era verdade ou invenção, de que ali, há muitos anos, quando a luta pela independência ainda era fresquinha na memória de todos, se enclausurara uma moça, filha de rico fazendeiro da Chapada Diamantina, depois que o marido morrera, ao cair do cavalo durante uma caçada e bater a cabeça numa pedra. Disseram que seu coração também parou junto com o do amado, pelo menos para o amor. A devoção pelo marido era tamanha que se trancara no quarto do defunto e não abriu a porta para ninguém, os familiares tiveram que arrombar a janela e retirar o cadáver já decomposto, sob o choro lancinante da mulher. Como não tivera filho, resolveu se enterrar na clausura do convento, de onde nunca saiu, sequer para o Dois de Julho como as outras irmã, até que morreu, coincidentemente num dois de novembro, Dia de Finados, gritando o nome do marido morto há mais de meio século, como se, de mãos entrelaçadas, fossem reviver o grande amor, desta vez protegidos de todos os males pela aliança com a eternidade. Ouvira a história há muitos anos e se lembrava dela sempre que parava no convento com o cortejo da Independência. Seria lorota? Qualquer dia tomaria coragem e perguntaria à madre-superiora do Convento da Soledade.
3. SÃO JOSÉ
Na subida para a Rua São José de Cima a sede apertou e ela comprou água mineral. Cerveja, só mais tarde, quando chegasse no Terreiro de Jesus, por volta das onze horas. Não que tivesse andado muito, como na Lavagem do Bonfim, quando saia da Igreja da Conceição da Praia, atravessava todo o Comércio, Avenida Jequitaia e, sob um sol de rachar, chegava à Calçada e ainda faltava um bom pedaço até o Largo de Roma, onde parava para fazer uma rápida prece na capela de Irmã Dulce, em cujo hospital fora atendida sempre que precisou e para quem rezava sempre para que estivesse ao lado de todos os santos do céu, zelando por todos os fracos aqui da Terra, logo ela, tão franzina, um fiapinho de freira, mas imensamente forte na graça de Deus.
Depois era seguir até o Quartel dos Dendezeiros e chegar à Colina do Bonfim. Aí sim, era uma labuta danada, um empurra-empurra – os descarados até pegando na bunda e na xoxota das mulheres – para alcançar o adro da igreja, fechada pelos padres que não admitiam a festa para Oxalá e acender a vela para o Senhor do Bonfim que santo, em qualquer crença, é sempre gente boa. Depois da devoção, a obrigação de comer água e cair na gandaia, num tempo em que era mais moderna e mais disposta, não agora, já coroa e menos atrevida.
Quitéria se lembrava disso tudo, enquanto, em marcha lenta, vencia as ruas estreitas do cortejo de Dois de Julho, com as pessoas se espremendo uma nas outras, a ponto de ouvir e dizer liberdades, vá empurrar a mãe, sua carniça, não pise no meu pé, pederasta, e assim por diante, até que a suada serpente humana, colorida como uma cobra coral, se desafogasse nos logradouros mais amplos, quando se podia sentir uma brisa refrescante.
Um casal de namorados, os dois vestindo camisetas vermelhas, ele bermuda, ela um shortinho de piriguete, lhe estendeu um folheto com a inscrição “Aeroporto é Dois de Julho”. Era sempre assim desde que um xereta tomou a iniciativa de mudar o nome do Aeroporto Internacional de Salvador para homenagear o filho de ACM que morrera em Brasília, de coração fraco, para não dizer outra coisa… Não entendia de política, apenas votava, por obrigação ou quando ganhava alguma coisa em troca, nem que fosse um botijão de gás, mas não achava certo trocar a homenagem aos heróis, todos os heróis da Independência, de Maria Quitéria a um índio qualquer, para agradar a família de um deputado que não era herói de nada. Não se deve descobrir um santo de verdade para se vestir outro do pau oco. Estivera apenas uma vez no Aeroporto. Titirrane! Fora ver o Bahia, que voltava de Porto Alegre depois de ganhar o campeonato contra o Internacional. Campeão! Aliás, Bicampeão! E a Taça Brasil de 1959 em cima do Santos de Pelé e tudo? Animada por um trio elétrico, a festa só terminou na Colina do Bonfim. Até encontrara o professor Saraiva, aquele torcedor doente, que anda pela cidade, com um paletó e uma gravata com os escudos do Bahia e do Botafogo. Retado! Daquela idade e caminhando por toda a cidade, com uns passinhos de pinguim, acenando e rindo para todo mundo. Conhecia Seu Saraiva do tempo em que frequentava, toda segunda-feira, a Igreja de São Lázaro, na Federação, para assistir a missa, comer a pipoca de Omolu e pedir proteção contra chagas e doenças. O velhinho sempre estava lá, com sua simpatia de meninão desamparado.
É cada figura invocada nesta cidade! Tinha até a Mulher de Roxo, uma gorda vestida de freira, com um crucifixo enorme pendurado no pescoço que assentou praça na calçada da Loja Duas Américas, na Rua Chile… Outro dia, no ônibus, vira o ceguinho da sanfona, animando a viagem com música de Luiz Gonzaga, assum preto cegos dos olhos.
Que calor enorme! Quem disse que cerveja só no Terreiro de Jesus? Na descida da São José de Baixo, Quitéria comprara um latão de cerveja e bebeu com sofreguidão. Como as ruas são parecidas com suas casas conjugadas, seus grandes casarões e sobrados antigos! O Santo Antônio Além do Carmo está tomado pelos barões. Antes, neguinho não queria saber daqueles prédios velhos. De uns tempos para cá, foi uma febre de grã-finos comprando e reformando casas, sobrados, bares, pousadas e restaurantes. O lugar foi se valorizando e, agora, uma casinha qualquer está pela hora da morte. Se pudesse, também morava ali e não no casebre do Arraial do Retiro ¾ cabiam ela e seus trecos ¾ o mesmo Arraial do Retiro onde o desabamento de uma encosta durante a chuva matou famílias inteiras, ela escapando por pouco, já que dormiria na casa de uma amiga, mas, na última hora, resolvera voltar para casa, um pouco mais distante do local da tragédia, porque esquecera a televisão ligada e não queria gastar energia, mesmo sendo “gato”, para não abusar da sorte. A casinha era dela e ninguém poderia lhe tirar de lá. Certo que Dona Fininha, sua última patroa, que Deus a tenha, ajudou a comprar, emprestando dinheiro que, muitas vezes, esquecia de pedir de volta ou não queria cobrar. Agradecia a ela e ao Senhor do Bonfim para quem fizera promessa, paga de joelhos numa sexta-feira, dia de Oxalá.
Coitada de Dona Fininha! Morrera largada do marido, sem filhos ou parentes para cuidar dela. Fora ela quem cuidou de Dona Fininha, deu banho e alimentou a patroa entrevada na cama. Morreu mansa como um passarinho, enquanto dormia. Pela manhã, a encontrou tesa, na cama, com os olhos abertos como se ainda estivesse se despedindo da vida madrasta. Mesmo gorda, era chamada de Fininha. Em mocinha, era magra e alta como um pau de vassoura. Com vergonha da magreza e medo de não encontrar rapaz, tomou Postafen e desandou a engordar, a comer e engordar, mas o apelido da juventude ficou; Fininha, acrescentado apenas com o Dona, depois do casamento gorado.
4. CURUZU
O corpo do comerciante português foi encontrado no meio da manhã. A peixeira com mais da metade da lâmina enfiada nas costas não deixava dúvida de que morrera à traição. Os policiais da delegacia da Liberdade intuíram que fora morto por alguém que conhecia. Não havia sinais de luta corporal, apenas a poça de sangue no assoalho e uma garrafa de Jurubeba quebrada. O caixa, por trás do balcão de madeira, estava vazio. Latrocínio? Os investigadores consideraram a hipótese; afinal, o dinheiro, ao lado do poder, da droga e do sexo, são os grandes móveis da criminalidade. A grana, considerando que houvesse em caixa, deveria ter sido levada pelo homem, a mesma voz masculina que telefonou para a polícia informando o crime.
Os peritos do Departamento de Polícia Técnica constataram, pela rigidez do cadáver, que a morte ocorrera há cerca de doze horas, portanto entre oito e nove da noite anterior. Espirituoso, o delegado de plantão no feriado riu da coincidência de mais um português expulso no Dois de Julho, defenestrado da vida, como acrescentou em tom de pilhéria, como se falasse simplesmente de mais uma piada de português.
O morto era Joaquim Manuel Pilar Gonçalves, o Portugalho, como era apelidado, à boca pequena, pelos chifres que levou da mulher, que voltara aos Açores com os dois filhos. Solteiro, desde que fora abandonado há vinte e cinco anos, Portugalho vivia sozinho e costumava receber a visita de garotas de programa. Disseram que era até pedófilo. Os vizinhos mais atentos à vida alheia viram adolescentes saírem do puxadinho construído na laje do bar, uma delas com um telefone celular novo em folha, paga do português por um boquete fenomenal, segundo um viciado em crack.
Tinha cinquenta e oito anos, mas aparentava setenta pelo desamparo e a vida desregrada em que se precipitara após as traições reiteradas e a partida da mulher, com os dois filhos, um deles mulato para os padrões genéticos lusitanos. O pai, anarquista que combatera na Guerra Civil Espanhola, com os homens de Buenaventura Durruti, veio para a Bahia fugindo da PIDE, a polícia política do salazarismo. Morreu decepcionado por não conseguir passar para o único filho os três pilares da Revolução Francesa que, com estoicismo fanático, defendera durante toda a vida de lutas e fugas. Liberdade, o filho ainda moço, defendia somente para ele, o resto que se fodesse nos grilhões da escravidão. Ele tinha a fraternidade de um rematado egoísta e de igualdade não se poderia falar neste Brasil de negros e de botocudos.
Nesses momentos de tristeza, o velho Gonçalves se consolava com a lembrança de Lola, a destemida guerrilheira que conhecera num combate desalmado em Barcelona e que, anos depois, morreria de parto, ó filho desgraçado e rude até para nascer… Como era bonita, a Lola, com aquela boca carnuda e carmesim, os cabelos longos e encaracolados, olhos enormes e jeito de cigana fatal, Carmen recatada.
Numa tarde quente de verão, desembarcou de navio em Salvador, com o miúdo ao colo, após uma viagem penosa com o menino chorando e vomitando o tempo todo, no convés de uma embarcação lotada de outros fugitivos, muitos deles espanhóis, com os quais empreendeu gratas conversas sobre a reação desesperada da jovem República à ameaça mortal do Generalíssimo Franco, caudilho filho da puta!
Logo alguns patrícios lhe arranjaram um emprego num armazém de secos e molhados no bairro do Comércio. Depois de muita labuta, comprara uma bodega no Curuzu, a mesma que o filho herdara e onde jazia morto com uma faca enterrada nas costas. O velho Gonçalves, morreu serenamente nos braços de uma mulata de aluguel, das quais requisitava os serviços completos, pois, depois da morte de Lola, decidira que não queria compromisso com mulher alguma.
Do pai, Portugalho herdou também o gosto pelas mulheres pagas. Para ele, o sexo era a melhor das mercadorias e, por isso, não havia porque não se pagar por uma boa trepada, uma boca habilidosa e uma bundinha saltitante. Afinal, conformava-se, você acaba sempre pagando, até mesmo pela porra da boceta de sua mulher e ainda mais do que pelos favores passageiros das putas. Porém, no íntimo, Portugalho sabia que pagava as meretrizes, em lugar de seduzir uma mulher que fosse só dele, porque ninguém podia, em sã consciência, apontar como corno a traição de uma puta. Agia desse modo para evitar novos dissabores e a aplacar a enorme ferida da traição conjugal, ainda aberta como uma rosa ensanguentada num jardim de pesadelos.
5. PERDÕES
Suada e com fome, Quitéria alcançou a Rua dos Perdões. Pensou que em toda a sua vida sempre perdoara a todos que lhe fizeram mal, alguns sem querer, por ignorância; a maioria de propósito, por instinto do cão. Chamaram-na de preta, gorda e feia, safada, tribufu, macaca de jardim zoológico, do escambau. Perdoou até quem a chamou de sapatão, mas agora, acompanhando os carros do Caboclo e da Cabocla, não conseguia perdoar mais nada. E quem me perdoará, além de Jesus Nosso Senhor? Foi quando se lembrou de um homem bom. Seu Alcebíades, Alcebíades Soares França, que não deu queixa dela, quando surripiou da mercearia, em Feira de Santana, duas broas de milho e um litro de Tubaina. Bom homem. Formou três filhos, mas o quarto deu para ruim, virou traficante de drogas e foi morto pela polícia civil no bairro do Calumbi, quando esperava um ônibus para Tucano; de lá, pegar a conexão para Abaré e ganhar o sertão pernambucano. Esquecidos da alegria dos três filhos que conseguiram formar e sempre foram gente boa, Seu Alcebíades e Dona Rosinha se encolheram no desgosto. Imagine, criar bem os filhos e uma vergonha apagar três orgulhos!
Será tudo coisa ruim? Tanta gente boa sofrendo e penando, e, quando não penando, sofrendo; e outros muito bem na vida, mas só na vida, porque depois eram outros quinhentos.
Porra de perdão!
7. ADOBES
Olha a comadre Zefinha! Como está bem, depois que largou o marido. Vou lá falar com ela. Comadre, ó, comadre, tudo bem? Sempre no Dois de Julho, comadre… Pois não sou Maria Quitéria. Entre, comadre, venha bater um feijãozinho. Obrigada, mas não tô com fome. Então, tome uma cervejinha. Aceito, comadre. O que foi isso no seu olho, comadre? Tá inchado. Levou porrada? Ele de novo? Foi a última vez, comadre. Juro. Faça como eu, comadre, largue o traste. Já larguei, comadre. Obrigada pela latinha. Tô indo. Apareça, comadre, só vem de ano em ano… É o desfile, comadre.
7. CRUZ DO PASCOAL
Quitéria parou na Cruz do Pascoal, na esquina dos bares. Com vontade de mijar, entrou em um deles. Foi barrada na porta do banheiro. O dono exigiu um real. Ela riu. Tirou de uma pequena bolsa a tiracolo uma nota de cinquenta e pediu o troco. O homem disse que não tinha trocados. Quitéria se enfezou e disse que, assim, era de graça. Entrou no banheiro, sentou-se na privada com absorventes boiando na água e, enquanto urinava, despejou também toda a sua aflição; pensava na porra da vida que levava, mas, logo, sentiu-se melhor ao se convencer de que não apanharia mais de filho da puta nenhum.
Na saída do bar, viu Seu Carlatino. Fizera faxinas na mansão dele e recebera gorjetas. Homem tão bom. Como pode ser preso e algemado pela Polícia Federal, feito um bandido qualquer? Seu Caarlaaantiiino, cumprimentou. Quitéria, Maria Quitéria, respondeu Seu Carlatino, úmido de uísque. Quer um uisquinho? Aceito, sim sinhô.
Quitéria tomou a bebida de gute. Tossiu, quase vomitou, respirou fundo e se sentiu melhor. Não gostava da bebida, mas recusar uísque era um luxo desnecessário. Valeu, Seu Carlatino! Agradeceu e seguiu em frente. A bebida a fez suar ainda mais e o suor retirou a camada de pó, disfarce do sangue pisado em uma das pálpebras. O inchaço nos olhos começou a incomodar. Amanhã ¾ pensou ¾ vou ao posto de saúde e faço um curativo.
Uma escultura, viva e metálica, passou raspando pelo braço dela. Quitéria levou um susto. Logo reconheceu Jaime Figura, vestido como um vilão de metal, a assustar meio mundo pelas ruas de Salvador. Ninguém conhecia o rosto dele. Será deformado por fogo ou lepra? Dizem que dorme num caixão de defunto. Deus é mais! Mas era manso como um passarinho de ferro. Só tinha a mania de sair por aí com sucatas no corpo.
8. BOQUEIRÃO
Era bonito ver a mancha humana fluindo pela Ladeira do Boqueirão; os estudantes, as bandas, as fanfarras, as balizas em seu êxtase de pernas e braços que aceleravam a coreografia em direção à igreja para, depois, virar à esquerda rumo ao Convento do Carmo. Todos os anos, o grande casarão azulejado da escola se destacava pela decoração, centenas de bolas de assoprar com as cores da Bahia.
No percurso, muitas casas se enfeitavam com motivos azul, vermelho e branco e verde-amarelo. Havia até um concurso da prefeitura para premiar as fachadas mais enfeitadas. No Carmo, crianças e jovens, fantasiados de índios, Castro Alves, Sóror Joana Angélica, a Irmã Dulce do Dois de Julho, e também de Maria Quitéria, se postavam nas janelas das casas, em palcos improvisados e nos passeios para saudar o desfile e chamar a atenção dos repórteres, fotógrafos e cinegrafistas.
Uma família vivia de propaganda na festa. A moça muito bonita, morena jambo, cabelos longos e corpo de modelo, todo ano surpreendia os passantes com uma fantasia diferente. Dizem que se casou com um gringo e foi embora para o estrangeiro, sob a proteção do Caboclo e da Cabocla, seus padrinhos espirituais de casamento. Deve ser verdade. Ninguém nunca mais viu a jovem na festa. Já deve estar cheia de caboclinhos e caboclinhas mestiços, falando inglês, italiano, alemão, ou qualquer outra língua desses turistas que só vem aqui para comer as baianas ou dar o chicote, sendo que muitas gringas chegam para dar para os negões, até as casadas com os cornos galegos que não ligam muita para essa história de chifres como gente civilizada.
Quitéria bebeu outra cerveja e retemperou as energias para a caminhada. No Carmo, admirou as casas enfeitadas com bandeiras e bandeirolas e a arquitetura monasterial do Convento, agora convertido em hotel de luxo; antes, abnegação ascética, hoje, esbanjamento mundano de turistas à cata de emoções transitórias. Só parou nas escadarias da Igreja dos Passos, a mesma que serviu de cenário a um famoso filme nacional. Sentada num degrau, ficou escutando o cantor Gerônimo:
Eu fui, no Campo Grande,
ali eu fui chorar ,
eu fui pedi,
eu fui pedir para o Caboclo me ajudar.
Isso mesmo, pensou Quitéria, vou pedir para o Caboclo me ajudar.
É fumo e mel,
é fumo e mel que Caboclo quer,
para me ajudar.
A mulher nas escadarias se deu conta de que não tinha fumo, fumo de corda, único aceito pelo Caboclo e mel do melhor, mimo para a Cabocla. Não tinha fumo, nem mel, mas possuía fé, uma fé imensa no Caboclo, protetor dos pobres e uma crença enorme na Cabocla, mestiça dos desvalidos.
Desceu as escadarias rumo ao Pelourinho. O aperto humano aumentou defronte à Igreja do Rosário dos Pretos, pretos como ela, rosário das contas de sua aflição. Não entrou na igreja, abarrotada de fiéis, turistas e curiosos. Benzeu-se na porta do templo da Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora às Portas do Carmo e seguiu, esperançosa, para o Terreiro de Jesus.
9. TERREIRO DE JESUS
Esse homem seco como um palito de fósforo, só veste branco. Todo elegante, magrinho desse jeito, foi até Rei Momo, quem diria… Quitéria olhava Clarindo Silva, o dono da Cantina da Lua. Também não envelhece, desde que me entendo por gente tem o mesmo rosto miúdo e a barba branca e rala. Até parece um orixá.
Na Cantina da Lua, políticos, artistas, intelectuais e boêmios insones bebiam e conversavam, na parada quase obrigatória dos sedentos de álcool, política e futilidades. A maioria voltava para casa e não acompanhava a programação da tarde. Considerava cumprido o trajeto; muitos diziam, para si mesmo, que se a festa era resgate da história, deveria mesmo acabar no Centro Histórico. Quitéria pensou que o trajeto deveria ser ao contrário, começar no Campo Grande e acabar na Lapinha. Aí, sim, ia ter gente à beça até o final. Mas, logo, se deu conta de que o Caboclo e a Caboclo tinham mesma que ir para o Campo Grande.
Olha meu xará, todo encharcado! Quitéria mirava Quitério, o garçom do Quintal do Raso da Catarina, bar próximo ao Campo Grande, nos fundos de um casarão que reuniu a flor da boêmia da cidade e o espinho dos bêbados chatos. No Quintal, Seu Jeovah de Carvalho, que Deus o tenha na santa paz, declamava umas coisas bonitas com uma voz de trovão e bebia como um condenado.
Quitéria trabalhara na cozinha do bar, preparando os tira-gostos, como a carne defumada, para forrar o estômago dos pinguços que tomavam o príncipe maluco (cachaça Caribé, com uma rodela de limão coberta de canela em pó.)
Do Terreiro de Jesus, foi para a Praça Municipal, onde os carros do Caboclo e da Cabocla ficavam parados no intervalo do desfile, retomado às três da tarde, até o Campo Grande. Não foi fazer reverência aos dois ícones como dezenas de pessoas que se aglomeravam na praça. Para ela, o verdadeiro altar do Caboclo e da Cabocla era o Campo Grande, onde havia um monumento ao Dois de Julho, uma estátua do Caboclo, de quase três metros de altura, pisando uma serpente, a cobra dos portugueses invasores, o maior monumento das Américas, na época, projetado pelo italiano Carlos Nicoli, por isso mesmo, gente da Bahia tá pensando que paizinho não me ensinou tudo isso…
Aproveitou a pausa para descansar e comer um prato feito num bar e restaurante da Ladeira da Praça. As três, em ponto, estava preparada para a caminhada final.
10. CAMPO GRANDE
Quitéria não via muita graça na programação da tarde, mas cumpria a obrigação até o final. Não havia mais a multidão festiva que percorria, em algazarra cívica, as ruas do Centro Histórico. Morno, o desfile saia, acelerado, da Praça Municipal, seguia pela Rua Carlos Gomes, decadente e suja, dobrava a Casa da Itália, pegava um pequeno trecho da Avenida Sete de Setembro e acabava no belo jardim do Campo Grande, com suas árvores frondosas e o grande monumento ao Caboclo. As carroças dos símbolos da festa ficavam numa cabana de palha até o dia cinco, quando, sem glamour nenhum, retornavam a Lapinha, onde mofavam até o próximo Dois de Julho.
Quitéria ouvira falar que, impressionada com empolgação popular do desfile, uma alta autoridade portuguesa quis levar a estátua do Caboclo para expor em Portugal, não sabendo, o gajo, que a serpente flechada pelo Caboclo representa a tirania lusitana. O abestelhado, como Quitéria definia em seu senso popular, foi dissuadido do empréstimo por um intelectual baiano que evitou o vexame diplomático.
As fanfarras e as bandas de música que acompanhavam todo o cortejo se exibiam no Campo Grande. O maestro Fred Dantas regia sua Oficina de Frevos e Dobrados. Antes, lembrava Quitéria, havia festa no antigo Cruz Vermelha, clube de graxeiras, como diziam os filhinhos de papai, mas era ali que o povo se divertia.
A sede apertou. No início do Forte de São Pedro, Quitéria entrou no Bar do Tirson, ¾ ex-ponta-direita retado do Bahia -, bebeu duas cervejas e comeu um acarajé do tabuleiro da baiana mais próxima. Saiu do bar e foi chorar aos pés do Caboclo. Ajoelhou-se diante da estátua e chorou, chorou muito, como desde a infância não chorava, sem ligar para as grossas lágrimas que lhe escorriam pela face, nem para as pessoas que pareciam rir dela.
Choro, choro, sim! Choro por paizinho, morto numa mesa de sinuca, choro por mãezinha, morta de dor e de saudade; choro por essa vida filha da puta, por tudo que passei de ruim, enxotada como um cão danado; choro pelo dia em que cheguei a Salvador, com uma mão na frente e outra atrás, sozinha, meu Caboclo, perdida e sozinha, minha Cabocla. Choro, sim. Choro por todas as mulheres maltratadas pelos homens, pela juventude gasta, pelos abusos que sofri, pelo filhinho que perdi; choro por esse mundo errado e torto.
Choro, sim, meu Caboclo. Choro e peço sua ajuda; me salve, meu índio santo. Choro também pelo português que matei; choro também por aquela praga. Era gente, então, choro. Será que morreu mesmo? Não quis matar ninguém, meu Caboclo. Fui ao bar pedir dinheiro emprestado. Estava desprevenida para à festa. Ele estava cortando uma calabresa com faca e tomando Jurubeba. Trabalhei para ele muito tempo, limpando o bar, cozinhando e até despachando no balcão. Quando estava bêbado vinha para cima de mim, com aquela conversa mole de vem cá negra safada, vem quenga. Não vou mentir. Algumas vezes, fui. Depois enjoei. Só me queria quando estava cheio do pau. Se tivesse são, eu não prestava. Tem cabimento, meu Caboclo? Fodia como um bicho, fungando e cafungando. Nem nessa hora sabia tratar mulher. Gozava e me batia, acho que para me castigar pela fraqueza dele.
Não quis matar. Só tomei um ódio, depois que ele me deu um murro no olho. Sabia que era 2 de Julho e que eu iria para o desfile. Foi de propósito. Quem gosta de desfilar com o olho inchado de porrada? Pirraçou o tempo todo. Botou o cacete de fora e disse que o nome do pau dele era madeira, Madeira de Mello, que eu deveria chupar até limar, que o General Labatut era paneleiro, como se eu não soubesse que era veado na língua dele; Lord Crochane picareta, João das Botas, borra botas; Maria Felipa preta descarada, o corneteiro Lopes, da Batalha de Pirajá, não sabia tocar porra nenhuma, por isso, ao invés de anunciar a retirada deu o toque de atacar; os brasileiros um monte de cagões e que Maria Quitéria fodia com todas mestiças do recôncavo. Eu ia lá suportar tanta provocação, meu Caboclo? Foi aí que me retei e disse: Portugalho, Portugalho, corno de uma figa! Foi a vez dele se retar. Deixou balcão e me deu um soco no olho. Doeu, doeu muito, meu Caboclo. Mas a vergonha de apanhar doeu ainda mais. Bateu e deu as costas, como se nada tivesse acontecido, tão acostumado de me ver apanhar calada. Daquela vez a raiva foi me tomando, o ódio subindo à cabeça, a paciência fugindo de mim. Ficou bem na dele, bebendo Jurubeba. Apanhei a faca em cima do prato de calabresa e enfiei nas costas dele. Deu um grito de bicho ferido, não sei como os vizinhos não ouviram, e caiu na hora, derrubando a garrafa de Jurubeba. Dizem que dá tesão! Não quis mais saber de nada, meu Caboclo e protetor. Peguei o dinheiro dele e fui para casa, sem conferir se estava vivo ou morto. Só consegui pegar no sono de madrugada. Acordei cedo, me arrumei, tomei café e, agora, estou aqui, pedindo sua ajuda, meu santo baiano. Por isso choro, choro, choro e choro, por tudo que sofri e por tudo que ainda vou sofrer, porque sofrimento de pobre não dá descanso. Não tenho vergonha de chorar, que me vejam chorando, sou mulher e, se fosse homem, chorava do mesmo jeito. Choro, choro e choro, meu Caboclo!
As lágrimas deslizavam grossas no rosto grosso de Quitéria. Ela ainda chorava, quando recebeu um forte tapa na nuca. Desabou e se virou, a boca aberta, os olhos atônitos, em busca de explicação.
¾ Levante, vagabunda! ¾ ordenou um dos policiais.
Quitéria se levantou num tremendo esforço. Olhava para lado à procura de um socorro improvável. Antes de ser brutalmente empurrada para o camburão, ainda teve tempo de olhar o Caboclo e gritar: Viva a Bahia! Viva a Independência da Bahia!
Pelo brado, recebeu um soco e perdeu dois dentes.
No dia seguinte, um jornal sensacionalista, com um toque de ironia, publicou uma matéria com a fotografia de Quitéria em sua fantasia tosca, e estampou a manchete:
MARIA QUITÉRIA MATA PORTUGUÊS NO DOIS DE JULHO
11. UM ANO DEPOIS
Pela primeira vez, Quitéria faltou ao desfile.