O pão seco descia pela goela. Ansiosos, os pequenos olhos, a todo momento consultam o relógio na parede. Precisava se apressar ou perderia o caminhão que a transportava até a cidade. Os irmãos pareciam não mastigar, já estavam na porteira esperando a condução. Ela, pequena e rasteira, era sempre a última, juntava seu material escolar com cuidado e colocava dentro da sacola. A farda encardida não era por desleixo, refletia a escassez de água. A chinela gastada se arrastava pelo chão. Mal chegou à porteira e já avistou a poeira, era o caminhão. Ouvia-se o canto das crianças, castigadas pela pobreza, mas contentes em poder estudar.
O caminhão parou, a menina e seus irmãos subiram; o caminhão seguiu,
arrastando poeira. Os bancos de madeira davam dormência no corpo, a lona preta que cobria a condução provocava um calor infernal. Os setes quilômetros que separavam a roça em que moravam até o povoado, foram superados. O caminhão parou, algumas crianças desceram. Para a menina amarela, esse ano os quilômetros aumentaram. Estava no sexto ano, parada agora só na cidade.
Na Escola Municipal, a fila indiana já estava formada. Seus irmãos ali lhe
pareciam alheios, estudavam em séries avançadas. Havia colegas, e eram meninos; completavam-se, até a hora de voltar para casa. Ela ficava sempre só, era quieta, não porque assim quisesse, mas porque assim a faziam: entrava na mesma fila todos os dias e ninguém percebia sua presença pequena, amarela e franzina.
Durante as aulas, seus pequenos olhos não tinham outras direções a não ser a professora e a lousa. Era boa em matemática, mas a disciplina que ela adorava mesmo era a de língua portuguesa. A professora Cândida entrou na sala, sem livros nas mãos. Que estranho! – pensou a menina. Com a mesma voz doce que coordenava as aulas, ela disse a sua turma que juntos iriam dar um passeio pela cidade, era dia de quermesse, era festa.
Os pequenos seguiam a professora Cândida. Para a menina, tudo aquilo era novidade, só vinha à cidade para ir à escola, não conhecia mais nada por ali, tudo ali parecia mágico! Viu quando duas coleguinhas pararam em uma barraca que vendia maçã do amor. Elas tiraram as moedas da bolsa, pagaram a maçã para a moça da barraca e seguiram o restante da turma. A moça da barraca ficou olhando a menina, esperando que ela também comprasse uma maçã, mas, ao reparar em seus trajes, percebeu que isto
ela não podia fazer, e secamente a enxotou:
— Ora essa! Você tá aqui pra espiar. Vá embora daqui! Não espante os
fregueses com essa farda encardida.
A menina correu como um cachorro acuado. Queria se esconder da moça má. Escondeu-se até se sentir escondida. Quando viu, estava perdida. Nenhum sinal do vestido branco da professora Cândida. Na procura até se confundiu com outras moças parecidas, mas não era ela. Veio o pânico! Onde estaria a doçura que a cercava? Era como uma presa solta para as onças. Tantas barracas, olhava em direção a elas e nenhum sinal da turma, da pró.
Sentou na calçada escaldante, sufocada entre lágrimas e soluços. Queria
proteção, queria os irmãos que sempre a abandonavam solta naquela selva que agora se expandira com o passeio. Levantou a cabeça, olhou para a barraca ao lado, viu uma menininha e uma moça bonita. Ao certo devia ser sua mãe, pois lhe comprava uma linda boneca de pano, daquela que ela sempre sonhava ter. Está certo que as que sua mãe fazia não eram feias, e todas as tardes ela se deliciava brincando, mas não possuíam a mesma beleza que aquelas da barraca.
Resolveu andar, quem sabe assim encontrava seus conhecidos. Naquele
momento qualquer um estava valendo, até mesmo os colegas que jamais lhe olhavam, mas que ela conhecia de cor a face de cada um. O desespero tomava conta do seu pequeno coração, a fome crescia, a barriga roncava. A menina só chorava sem saber o que fazer. Olhava a barraca de pastel, mas não era besta de se atrever a encostar e ser enxotada de novo. De repente, foi pega no colo. As lágrimas ofuscavam sua visão. Demorou em reconhecer o rosto meigo que acalentava suas manhãs.
— Mas que susto você me deu, sua danada! — A professora a pôs de novo no chão, pegou em sua mão e seguiu para a escola. A sala de aula estava vazia, seus colegas já tinham ido embora, só restavam suas coisas e seus irmãos à sua espera, com cara de poucos amigos. Recebeu um doce beijo da pró e depois seguiu para a condução em meio aos beliscões e reclamações dos irmãos:
— Mainha vai saber. — diziam eles.
Laércio, o motorista, também a esperava cheio de reclamações:
— Que diabo, menina! No dia que tu fizer isso de novo eu te largo aí, sua
peste! Fica a gente aqui com fome enquanto você bate perna na rua.
A menina entendia a revolta de todos, estavam cansados, com fome. E quem era ela para julgar o coitado do Laércio, que odiava o emprego, e só estava nele para não deixar o filho e a mulher morrer de fome?! Abaixou os olhos para não enfrentar a cara feia dos outros alunos, passageiros do caminhão. Já se passava do meio-dia; era natural que estivessem todos irritados com ela, que também estava com fome, mas nada podia falar. Era apenas uma menina amarela, sem voz e se vez.
Em casa, a comida fria saciou a fome, depois lavou os pratos, varreu a casa, fez as tarefas da escola e foi brincar. À tardinha era seu momento mais esperado, o momento em que as obrigações não chamavam por ela, era só ela e suas bonecas, ela e seu mundo comandado por sua imaginação. Mal podia esperar a hora do jantar, a única refeição que comia quente, quando sua mãe voltava da roça e preparava a refeição do dia seguinte. Fora isso, o jeito era comer frio. O fogão à lenha havia-lhe deixado
cicatrizes nos pequenos braços. Sua mãe foi alertada em uma reunião na escola, então proibiu a menina de manuseá-lo.
Com chapéu de palha na cabeça, a mãe chegou da roça. Os irmãos foram logo relatando os últimos acontecimentos. A mãe puxou a bainha do facão, trancou a menina no quarto e lhe desceu o couro. O pai nem quis saber o motivo. Dirigiu-se ao banho. Não queria saber de aborrecimentos. A mãe que resolvesse. A ele cabia apenas o banho, a janta e o descanso, para no outro dia voltar à lida.