Dois dias depois, na manhã de terça-feira, 28 de dezembro de 2004, os repórteres que cobriam o tsunami deram a notícia: “Uma menina da Malásia foi encontrada viva num colchão que flutuava sobre um metro e meio de água. É um bebê de 20 dias. Chama-se Tulasi e está bem”.
Foi então que a câmera de uma TV sueca parou muito depois daquilo que era uma aldeia; viera correndo por cima dos destroços que boiavam na imensidão cor de bílis; percorrera mais de duas léguas de uma estrada de terra, mostrando a safra de gente morta nas mais incríveis posições, pavorosa legião de acrobatas do desespero, desfigurada, coberta de lama… e gente viva indo e vindo, esbarrando, trêmula, trincando os dentes…
E gente viva paralisada, lívida, oca, porque para elas o tempo escorrera, e o espaço era agora sem intimidade, como aquele homem que perdera a mulher e os oito filhos, o maior tinha 10 anos… e depois de mostrar olhos secos de tudo, blasfêmias, soluços, estupor, o vaivém das escavadeiras, em suas lagartas de aço, colhendo e empilhando separadamente detritos e cadáveres; caminhos e ambulâncias da Cruz Vermelha; fogo e fumaça preta subindo em linha reta, ininterrupta, porque vento nenhum soprava, e o fedor era de cortar de faca… a pira dos mortos crescendo… a câmera chegou a um abrigo que era um vagão abandonado num trecho de floresta e subiu bêbada os degraus enferrujados, chocou-se com um balaústre, recuou, quase caiu, bateu-se em ventres suados, pedaços de plástico, roçou cabeças, miçangas, farrapos, até alcançar o rosto redondo de uma mulher de 19 anos — testa proeminente, olhos castanhos amendoados e miúdos, cabelos lisos até cintura, seios túmidos sob um vestido de chita — em cujos braços, aninhadinha, estava sua menina de 20 dias.
Enquanto essa menina dormia num pequeno quarto de tábuas, a menos de três quilômetros da praia, sem que ninguém esperasse, na manhã daquele domingo 26, no mar azul-turquesa e manso, morno, assim estirado até a linha do horizonte, houve um fragor surdo e confuso, logo seguido de um barulho múltiplo. Um turista canadense, que estava num morro perto da praia, viu e filmou o recuo de uns dois quilômetros do mar. “As águas costeiras foram sugadas; achei aquilo fantástico”— e numa grande extensão levantou-se uma parede imensa que em segundos invadiu a terra…
E você dormindo no que era sua aldeia…
Não foi uma onda única, mas uma série de ondas gigantescas. “Para entender o que é um tsunami”, explica um geofísico italiano, “pense numa panela de pressão cuja válvula reguladora é obstruída enquanto aumenta o calor gerado pelo fogo. A pressão interna vai aumentando proporcionalmente ao acúmulo de energia potencial. Então se rompe algum ponto da estrutura da panela e há uma grande explosão. A energia liberada nesse tsunami foi aproximadamente 1 bilhão de toneladas de TNT, o equivalente a cinco mil bombas atômicas, iguais à que arrasou Hiroshima”.
Você, dormindo…
O abalo de 9.1 graus, no fundo do oceano Índico, mudou o eixo de rotação da Terra, deslocou ilhas, com um maremoto que engoliu não sei quantas e atravessou 6.500 quilômetros a uma velocidade 800 km por hora, matando, em segundos, mais de trezentas mil pessoas em treze países, oito no Sudeste da Ásia (Indonésia, Malásia, Tailândia, Mianmar, Bangladesh, Índia, Sri Lanka, Maldivas) e cinco no Leste africano (Quênia, Seychelles, Somália, Tanzânia, Madagascar); alterou marés até no Chile.
Salva e sã numa colchão a flutuar e agora no colo de sua mãe, essa menina dormindo é a feliz encarnação da imagem que leio (e vejo) nestes versos de Drummond:
A dileta circunstância
de um achado não perdido,
visão de graça fortuita
e ciência não ensinada…
Não mais há o que dizer sobre o curso desses dias, entre 26 de dezembro de 2004 e 30 de janeiro de 2005. Pois, como avaliar a extensão e profundidade da desgraça, e constatar que, para além da abjeção, à luz crua e à sombra de tantas mortes, houve ladrões, sequestradores e estupradores?
Entretanto, esse duplo inferno foi incapaz de cancelar, poucos dias depois, o Réveillon. Como se a colheita de mortos não mais prosseguisse e a humana humilhação tivesse deixado de existir na noite de 31. Como se o dia 1º fosse mesmo o despontar de um ano novo.
Assim vazio o rito dessa passagem para o que não era senão o nada mais desolador, ou mais tétrico, à medida que baixavam as águas e se removiam escombros, cumpria comemorá-lo, entulhá-lo com júbilo enlatado e profusão de foguetes, fogos de artifício, shows, roupas, comidas e bebidas de luxo. E só um minuto de silêncio foi feito para lembrar os mortos e os que viraram seres fantasmagóricos porque perderam, da maneira mais atroz, um, alguns, todos os entes queridos.
Ó migalha de 1 minuto, que cara foi a vossa e que sentimento pudestes expressar diante dessa dor e de seu cortejo de demências?
A despeito da solidariedade que houve, incapaz de suspender um festim estúpido e mesmo cruel, de corresponder ao vazio de humanidade a doer no peito de tantos, de tornar sagrados os sítios em que foram achados esses mortos, é ainda possível conjurar, na franja dessa migalha de 1 minuto, o esquecimento da lição trazida por essa tragédia e das que lavram diariamente, naturais ou fabricadas pela indústria global da miséria.
Na longa noite do tsunami, um vagão velho e abandonado. Uma guirlanda de luzes pálidas. Como quem faz silêncio dentro do silêncio, na espessura e leveza encantatórias desse nome, entre o acaso do espanto e o da sagração da vida com o gosto humilde da alegria, saudemos a menina Tulasi.
Janeiro, 2005