Para Rimara Motta, com quem compartilho as sinfonias da vida.
Toda noite é realizada a orquestra dos gatos. Um tenor puxa o coro e os demais o seguem, com violoncelos, flautas e cornetas de pistões. Os instrumentos são inusitados, mas reconhecíveis: cordas, madeiras e metais juntam-se a um coro singular. Um gato maltrapilho para em frente ao maestro e consolida a plateia necessária para o início do espetáculo. O maestro dá sinal e o agrupamento instrumental manda ver. Parece sonho. Há, no entanto, um vizinho que mora bem em cima do palco e que se dana com a música clássica felina. Ele sempre quer estragar a orquestra dos gatos. Talvez por ser um evento realizado na madrugada, o vizinho se ache no direito de se sentir incomodado, talvez seja, apenas, porque não gosta de música clássica felina. Uma vez, chegou a pegar o telefone e ligar para o órgão fiscalizador de ondas sonoras, mas imaginou como seria absurda sua explicação. E lá vinha um outro andarilho noturno.
Plateia formada. Orquestra em ação. Há sempre um jeito de sabotar as coisas, e se o vizinho não pode acabar diretamente com a orquestra, usa subterfúgios para miná-la. Outro caminhante crepuscular acomoda-se com elegância e espera o início do espetáculo. Parece cansado. Sabe que a música pode ser um ótimo tranquilizante. A orquestra recomeça. O vizinho se inquieta. A escuridão do céu sem nuvem carregado de estrelinhas. Brisa leve. O vizinho abre a janela e a música toma de assalto seu ambiente. É retumbante. O gato andarilho hipnotizado pela orquestra. Olhos vidrados na textura musical. O vizinho, olhos inchados, lança um balde carregado de ódio e água fria no tímido espectador. A orquestra se recolhe zangada. O gato solitário corre para dentro da noite, em busca da inesgotável paz que se encontra em algum lugar.
Texto publicado na Antologia Fora Tema, organizado pela Severina Catadora / Coletivo Tear, na oficina “Edições cartoneras: produção alternativa de livros” realizada pela Coordenação de Literatura / Dirart / FUNCEB, em agosto de 2016.