de Lívia Natália
“Ela faz de propósito! Essa vaca preta!”, vociferava o senhor Frias, prostrado no leito do hospital. Seu corpo já não tinha lá muitos movimentos, mas sua mente estava ativamente indisposta com a atitude da auxiliar de enfermagem. Os filhos o recriminavam – como vocês, caros leitores, também o fariam, mas por outra razão.
– Papai! Não fala tão alto! Sussurrou uma das filhas.
Alguns metros à frente deles, na entrada do quarto, Maria das Graças – Gracinha, para nós – como que alheia à indignação do velho, seguia seu ritual: lavava as mãos e passava álcool nelas, abria o envelope da seringa, colocava a agulha na seringa e a deitava junto à ampola. Por fim, retirava um comprimido de uma cartelinha, que da palma da sua mão pulava para o copinho plástico que entregaria ao paciente. “Ajudar no próprio tratamento deve ser objetivo do paciente, como é nosso…” ensinava Das Dores, a enfermeira chefe.
Na primeira vez, mal a auxiliar saiu do quarto, senhor Frias cuspiu o comprimido, molhando a cama e dois dos filhos. Não houve meios de fazê-lo tomar aquela medicação, mas os homens se recusaram a transmitir à enfermeira a queixa do pai. “Já pensou o que vão dizer da gente?” Entraram em acordo que, no plantão daquela auxiliar de enfermagem, iriam se dispor a ajudar no procedimento, e algum deles colocaria o comprimido no copo plástico.
– Mas o senhor vai controlar suas reações, exigiu um deles.
Com o passar dos dias, as visitas rareavam. Uma semana após a saída da UTI, não se via mais que um filho por dia no hospital. As horas de solidão do senhor Frias cresciam e o dobravam, resignado, ante a dificuldade de ver atendido seu desejo. Se Adelaide fosse viva… Ela, sim, não reprimiria sua revolta e, com certeza, diria àquela negrinha o que era preciso. Mas a esposa morrera há vários anos. Naquele mesmo hospital… Esta lembrança o fez se benzer, para afastar dele o mesmo destino.
No auge do seu delírio, senhor Frias chegou a ter pesadelos de que Gracinha entrava no quarto vestida como uma dessas Rainhas de Bloco Afro. Flutuando em ginga e arabescos, a cor que sua pele emanava escurecia as enfermeiras, seus filhos e ele próprio! Preso por uma camisa de força sobre a cama, ele lutava, ao mesmo tempo, contra a ojeriza e o encantamento, se contorcendo de raiva… e de admiração!
Acordado, constatava o abandono dos filhos, e percebia que também os acontecimentos resolveram agir de modo perverso, lhe forçando a engolir as malcriações. Como rejeitar o comprimido manipulado por mãos negras, se agora da enfermeira às auxiliares todas eram retintas? Todas indiferentes ao seu desespero? No segundo comprimido que deixou de tomar, teve reações que quase o levaram de volta à UTI. Tremia, babava sobre o leito, e por vergonha ou contração involuntária, o medicamento restou encerrado num punho tão firme que ele mesmo só o conseguiu abrir duas horas depois, num solitário momento de frouxidão. Cada pílula, então, descia-lhe repugnando-lhe a alma, ferindo-lhe as entranhas, e ele adotou o subterfúgio de receber a medicação de olhos bem fechados!
Diferente das colegas, Gracinha costumava ir a cada quarto uma ou duas vezes além do programado. Sempre ao sabor da sua intuição. Mulher de poucas palavras, resumia:
– Se meu santo dá algum sinal…
E teria sido Dandaluunda que a fez entrar no quarto naquele exato momento. Senhor Frias a encarava firmemente. Boquiaberto como nos seus próprios pesadelos, o corpo retesado e pendurado em dois olhos esbugalhados e imóveis, mas que gritavam seus estertores. Morria. Como um justo, seu filho roncava debruçado sobre a cama, a campainha de emergência repousando indiferente entre seus dedos. Gracinha não alterou o seu estado líquido, e fluiu até a cama pensando naquele homem inimputável, que qualquer lei anti-racista não mais poderia alcançar. Somente a lei de Deus – e a dela, Maria das Graças. Assim, tomou a sua decisão.
Logo ao ver a auxiliar, senhor Frias mexera a única coisa que podia: a língua. Lentamente, colocou-a pra fora, e fez da boca um terceiro olho apavorado. Exprimia toda a sua ânsia por aquela pílula sagrada, que julgava ser a sua salvação, e que via chegar para o céu da sua boca envolvida num contraste aterrador. Viveria?
Como talvez possam imaginar os nobres leitores, Gracinha não era uma pessoa rancorosa, ou vingativa, e nem mesmo ela entendeu de onde veio a ideia de pôr o comprimido sobre as costas da própria mão.