Richard Francis Burton, ou simplesmente Dick, o Velhaco, revelou para o Ocidente, no Século XIX, a face oculta e triste de Meca e os desertos que separam Zanzibar do Lago Tanganica, na África Oriental; não logrou descobrir as nascentes do Nilo, mas anos depois, no coração das trevas africanas, teve uma experiência singular, omitida nos seus relatos de viagem e que em nenhum dos 29 idiomas que dominava saberia exprimir com exatidão.
A expedição durava já três semanas quando os carregadores somalis desertaram. A simples visão das estátuas encontradas na base do Jebel Shansan infundiu-lhes não se sabe que espécie de pavor. Sozinho, entre os sacos e as caixas de mantimentos, Burton tomou o único caminho que sabia seguir, enquanto houvesse força e esperança, para chegar ao destino que o seu aguçado sentido de explorador dizia estar próximo.
Tão distante de tudo e tão próximo do que lhe parecia ser “a fonte primordial de todas as coisas”, Burton continuou, para frente, segurando com força, nas suas mãos, o fio da vida – o mesmo que o trouxera dos campos domesticados da Inglaterra e dos braços de Isabel, pelos mesmos mares que um dia, perdido já nas brumas do tempo, os fenícios ousaram conquistar, após atravessarem as Colunas de Hércules.
“Eles também”, pensou com alguma nostalgia, “eles também vagaram sob este céu azul, tão inusitadamente azul, que paira sobre a selva e os deuses africanos e tudo o mais que permanece oculto para nós, estrangeiros”. Mas lá estava ele, seguindo em frente, com sua ideia fixa e a sua faca caucasiana.
E quantas mentes sonhadoras ele não representava, segurando a ponta do fio, lançado ao abismo, selvagem e só como apenas um homem infeliz pode ser? “Eu sou o Abismo!”, pensou. Por isso poderia representar a grande maioria que se agarrava em algum ponto daquela mesmo fio e que se julgava ainda no direito de pensar: “Você não tem raízes e consegue viver? Você se lança no vazio… para quê? Você deixa para trás tudo pelo que nós sempre lutamos: a segurança e a comodidade do mundo, bens tão delicados, homem, você os pisa com as suas botas sujas de lama!”
“Burton! Você nos abandona para voltar depois com as suas vitórias e as suas histórias desassombradas de um mundo virgem, com as suas Montanhas da Lua que se afundam em lodo e sangue, com as suas mulheres exóticas, com seus homúnculos primitivos, com seus rituais degenerados e seus navios de velas infladas: homem de muitos caminhos, maldito, herói e vilão, ídolo bastardo, o que merece um homem assim?…”
Richard Burton! – disse ele para si. – Calma… Eu sou todas essas vozes e tudo o que me resta: o medo, o pânico, o horror. Eu sou a malícia obstinada dos que riem da sua própria desgraça. Eu sou a força, a raiva e a alegria de saber que não poderia estar em nenhum outro lugar do mundo. Eu posso olhar nos olhos do demônio e ver neles (em mim) as sementes do paraíso.
Burton viu então a montanha e decidiu que não havia caminho de volta. E subiu a montanha durante sete dias e sete noites. Do alto avistou, surpreso, o platô, o vale e o horizonte, a paisagem que perdera um dia, há muito tempo, no jardim da sua casa, nos suaves campos da Inglaterra. Viu sua mãe, e o seu pai, que não tinham rosto, e a si mesmo, que brincava junto ao muro de pedra, além do qual se espraiavam as colinas suaves de Yorkshire.
“Eu me esquecera dele”, pensou com tristeza, enquanto ouvia, ao seu lado, uma voz de mulher que lhe sussurrava aos ouvidos.
– Veja, Richard… o menino. Ele tem um pressentimento. Ele olha o horizonte, inquieto, sem saber que o pensamento que o assalta será, a partir daquele momento, um desafio… É agora, apenas, uma impressão leve e silenciosa, como uma sombra que pousa sobre a criança, com asas de anjo e pés de pomba.
– Ele – oh! a inocência! – Ele não pode sequer sonhar, não é mesmo?, naquela tarde celestial, que aquela sombra, projetada sobre ele de não se sabe que terríveis abismos, crescerá, lentamente, como uma sede que nunca poderá saciar.
– O menino não pode prever, enquanto observa a pequenina aranha na teia presa ao muro, suavemente estremecida pelo vento, que aquele sentimento sussurrado – e apenas sentido, como uma aragem – na planura da sua terra natal, o levará, muitos anos depois, a lugares repugnantes onde nenhum outro homem branco, antes dele ousou sequer pensar em ir.
– Nas profundezas do Velho Mundo, na Ásia, na África e na América, seus olhos verão abominações, e sua presença se tornará inquietante para os seus, até que não haverá caminho de volta, nem esperança, e os suaves campos da sua infância se perderão, para sempre.
Richard Burton caiu de joelhos e, pela primeira vez em sua vida, chorou. “Fui longe demais em mim e já não posso tolerar o que sou”, pensou, enquanto via passar à sua frente uma procissão infinita de homens sem rosto que eram um único homem, e um único homem só.
– Mas ainda há uma esperança, Richard – disse a voz da mulher. – Veja: se quiseres, com um sopro dissiparei a sombra que neste momento pousa sobre o menino. Um leve sopro e tudo se modificará, e a ti será dado o privilégio de recomeçar e refazer tudo, desde o princípio. Um sopro, apenas, e tu será outro. Este é o milagre que te reservo: a ti. Bendito seja.
Burton levantou-se, de um salto, e na sua face iluminou-se um sorriso, que logo se dissolveu. Olhou para si mesmo e viu ali, simultaneamente, o deserto de Uganda e suas areias incandescentes; a expressão selvagem do árabe que lhe trespassou o rosto com uma zagaia, naquela noite fatídica de 1855; os corpos nus das mulheres que possuiu, nas mil e uma noites de Allahabad, de Gujarete e do Baluchistão; o fogo, a fumaça e os corpos agonizantes na Criméia; o sol desaparecendo lentamente por trás das montanhas de Bahawalpur; o mar azul cintilante, num entardecer melancólico do Rio de Janeiro; o ventre moreno e os olhos amendoados da dançarina no palácio do sultão Barukshi, no Marrocos; o leão majestoso que o derrubou na savana do Sudão; o tiro que o salvou dado por Sidi Mubarak, seu saudoso guia; a amizade de Speke, e sua imperdoável traição; febres, perdas, amores, batalhas, paisagens, conquistas, frustrações, tristezas, intrigas, alegrias, Isabel. De repente, num momento apenas, num átimo de segundo, toda a sua vida passou-lhe diante dos olhos, enquanto o menino continuava parado ali, diante do muro, observando a aranha em sua teia. “Sinto muito”, disse Burton aprumando-se, de pé. “Você devia saber. Neste caminho, não há retorno…”
– … Não há retorno – repetiu a voz da mulher, como um eco.
Burton voltou-se, então, rapidamente, mas não havia nada mais além do vento que assobiava nos rochedos.
Integra o livro de contos O visitante noturno. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo / Funceb, 2000.