Do lado de cá talvez houvesse quinhentas balas, só contando as metralhadoras. Três mulatos no flanco esquerdo, um magricelo no meio, todos com submetralhadoras UZZI. Os dois negros da direita estão com fuzis AK-47, e o Gazo tinha uma FAMAS. Todas carregadas. Ainda tinham as pistolas, com quatro pentes sobressalentes, e mais de 25 tiros em cada pente. Carregavam ainda carrega quatro ou cinco granadas, menos o Gazo que jogou todas há dois dias, ele “só” contava com a FAMAS. Armados até os dentes, com jeans surrado e camisas longas grossas, casacos. Seus suprimentos, barras de cereal, água, três latas de atum, cachaça, cerne seca e farofa de feijão, daria para umas cinco ou seis noites, à caminhada. Parados ali, e com algum controle, conseguiriam uma sobrevida de 15 a vinte dias com o suprimento que tinham. Guardavam uma distância quatro metros, em duplas, e com um na cabeceira, eles enterraram os víveres e se instalaram. Não teriam outros apoios senão eles mesmos, não poderiam pedir novos reforços, porque não viriam, e também não tinham comunicação externa. A maioria estava morta ou desertara, o que daria no mesmo porque o exército já tinha avisado que não queria ninguém preso. Estavam isolados. A tarefa era chegar até o centro e desligar os armamentos e a comunicação oficial, programada para não mais ligar. Iriam esperar sempre a noite para caminhar. Caminhariam para o encontro com o inimigo, não estavam fugindo ou em retirada, ao contrário do que acreditava o exército.
Tinham treinado na serra, na Chapada, não no plano. Treinaram na mata, não no asfalto. Treinaram técnicas de rolamento, de movimentação e táticas de sobrevivência, mas não eram militares, eram da Luta. Os recursos as Luta eram pequenos e escassos. Economizaram no tiro. Não tinham recursos para muitas balas em treinamento, então resolveram gastar somente na luta. Vinham treinando cada um em uma Frente diferente. Cada um a partir do seu lugar. Além São Francisco, várias Frentes seguravam os exércitos conservadores de Goiás.
Encontraram-se a primeira vez na praia. A ideia era tomar o centro de controle, o comando das comunicações e do armamento bélico e nuclear, e de lá desligar o aparato violento do Estado. O exército na arrogância dos poderosos tinha concentrado todo o controle em um só botão. Em uma alavanca. O controle das armas e das comunicações seria o suficiente para instaurar a liberdade entre eles. Liberdade tomada por um Golpe, outro Golpe, dado pelo exército, contando com o apoio maciço dos capitalistas, latifundiários e de setores da sociedade abastada. Os pobres e a população em geral não se envolveram, nem apoiaram, nem resistiram. Deveriam instalar a liberdade real, já que sempre viveram luta constante. A Luta era permanente, mas só agora eles estavam armados, organizados e prontos para assumir o controle e devolver a liberdade da produção. Conseguiriam, pelas armas, a distribuição das riquezas solapadas pelo capital. Se organizavam em pules e Frentes. As Frentes eram ajuntamento de trabalhadores armados, sob a coordenação e liderança de um influente militante do grupo. Não tinha um partido só organizado, eram vários partidos de esquerda, militantes sem partido, agricultores familiares, juventude estudantil, numa só Frente.
A pule era a Frente na cidade. Era a aposta da Luta para tomar cada lugar, cada canto da cidade. Como não queriam formar novas oligarquias, todos seguiam uma só Frente comandada na capital por Bernardo e Bianca. Os dois formaram a Frente no Estado, depois que explodiram as lutas em todos os lugares. Ele tinha passagem pelo exército, o que facilitou o roubo de armas. “Desvio de armas para a libertação”, era como ele chamava. “Roubo é o que eles fizeram em toda a nossa existência”. Vinha de uma família pobre, de trabalhadores. Seus pais e irmãos cresceram sem nada, sem casa ou emprego certo. Trabalhavam no que dava, quando dava. Comiam também quando dava ou quando conseguiam pegar restos e sobras na feira. Diferenciavam restos de sobras. Resto era tudo que já tinha sido mexido, comido, sujo, defenestrado. Sobra era o não usado. Bianca conheceu Bernardo em um dos refugos dos restos. Ele catava o que comer, enquanto ela jogava com o balde. Mas também não era rica, abastada, Trabalhava em uma lanchonete colada na padaria. Fazia os sanduiches e depois no final da tarde jogava os restos para a rua. Pela manhã o caminhão recolhia. Entre 17:15 e o iniciozinho da manhã era o tempo das famílias famintas. Uma multidão ficara sem o auxílio depois do Golpe. Eles tiraram tudo. A família de Bernardo também perdeu tudo. Moravam agora em uma choupana, os cinco. Bianca avistou Bernardo do outro lado da rua, a espera dos dejetos. Colocou na porta e entrou rápido. Voltou com um prato de almoço. Novo e quente. Encontrou Bernardo já catando o que dava. Chamou, e o convenceu a almoçar. Aquele gesto custou seu emprego. No outro mês eles se mudaram para uma casinha no subúrbio, onde se casaram. Passariam pouco tempo ali, seguiram divulgando a Luta e formando Frentes. Eles mesmos formaram uma Frente na cidade, distribuída em várias pules. Era um casal belíssimo. Ele depois de tanto sofrimento, ainda conseguia ser encantador. Forte, rosto firme e fala grossa. A graça era seu antebraço, sempre musculoso. Como vestia o que lhes davam, às vezes, as camisetas curtas deixavam seus ombros fortes à mostra causando algum furor nas mulheres da Luta ou da comunidade. Ele não dava a mínima a elas. Bianca detestava. Ele sorria. Somente nessas raras vezes em que sorria era que se via sua humanidade, de resto era sisudo e sério. Ela também muito bonita, tinha um rosto mais leve, mais suave. Seu corpo era bem desenhado, e seu corpo robusto. Vivia com camisas de propaganda, camisas de malha, e calças jeans, o que obscurecia um pouco seu corpo bem feito. Somente Bernardo nos dias de amor é que tinha autorização para admirar. Eles não tinham partido para a tomada do centro. Ficaram com Pichu em algum lugar entre o subúrbio e Pirajá, tentando abrir espaço para a Frente que vinha do recôncavo, repetindo o gesto da independência da Bahia. Só que agora lutavam contra inimigos internos.
Jovan, Lindó e Piolho eram irmãos. Cresceram no subúrbio e organizaram uma Frente firme e bem instruída. Conheciam toda a cidade. Todos os pontos, as vielas, as ruas, os becos, as casas abandonadas, as áreas de mata. Uma cidade que crescera sob a lógica do capital e da especulação, deixando sem luz, arruamento, saneamento e água aos milhares, abrigaria quantas Frentes fossem necessárias. Organizavam-se em quatro pules, cada pule era uma Frente local que cuidava da Luta naquela região. Jovan era o líder da pule cidade baixa, enquanto Lindó cuidava da pule centro histórico. Piolho comandava duaspules. Era ágil e com piolhos ele se movimentava habilmente na cidade. Crescia em todos os lugares que resolvia formar uma nova pule. Mantinha a da orla e a da chapada, coesas, mas outras pequenas pules espalhadas, como piolhos, em toda a cidade. Tinham que combinar o jogo com os traficantes e ladrões do lugar, senão caíam. Os de fora não entendiam porque eles conversavam e negociavam com aquela gentalha, canalhas que viviam da morte alheia. Os irmãos não argumentavam, porque sabiam que parte da cidade já estava na mão dos “craques” como eram conhecidos os traficantes. Utinga não gostava dessa ideia, mas entendia. Já Barra queria iniciar a tomada da cidade pelos “craques”, Ganhando a população e a boca. Jovan não concordou, e isso ainda não estava resolvido entre eles. Lindó pediu tempo, porque a pule do centro histórico era a maior e mais povoada, não poderiam tomar assim. Piolho dizia que eram moralistas, “deixem que vendam suas drogas até a morte! São os barões que compram, e estamos indo mata-los!!”, repetia Piolho aos berros. Ademais os “craques” mantinham o exército longe, e davam cobertura as Frentes. Os irmãos eram os mulatos.
Albertino estudou em colégio de padre a vida inteira. Estava no terceiro ano do seminário quando foi transformado em professor. Conheceu a Luta em um supermercado. Fazia compras para a ordem, na seção de gelados. Viu de longe Jovan e Lindó conversando, com um terceiro jovem de nome Bernardo. Bernardo saiu com uma moça morena um pouco mais jovem. Soube depois que ele se chamava Bernardo e ela Bianca e que eram casados. Ele ouviu a conversa de Luta. Sem perguntar, chegou perto. Os dois pararam a conversa despistando Albertino. Ele se aproximou e perguntou sobre a Luta. Já tinha ouvido falar, queria ajudar. Tinha como oferecer abrigo, comida, roupas, tudo do monastério. Não tinha armas, mas conseguiria algum recurso, e um lugar para reuniões. Ninguém desconfiaria de um seminarista conservador. Toparam apresentar para Pichu, a liderança daquela Frente. Pichu não conseguiu se esconder com os outros e agora não sabiam se estava vivo ou morto. Na tomada do centro ele ficou no subúrbio com Bernardo e Bianca. Treinou com Pichu tiro e escaramuças. Com os mulatos Albertino treinou reconhecimento de área, ensinou o jejum e a pouca alimentação. Ensinou também as palavras de cristo, o que nem Lindó nem Piolho ouviam nem prestavam atenção, sempre arreliando Albertino. Ele não se importava. Era o magricelo.
Utinga e Barra já chegaram treinados, aliás, eles treinariam os demais. Vinham com seus nomes de guerra. Da luta urbana e camponesa. Utinga, veio da Chapada, onde lutou dez anos na guerrilha de Mucugê. Conseguiu firmar uma brigada por lá. Clandestino veio de semi-leito para a capital. Já Barra passou fazendo miserê no além são Francisco, ele e mais 20. Tinham uniformes e eram organizados. Sempre dormiam em um lugar diferente. Resolveram se dividir e cada um formar uma nova Frente. Seguiram para Sento Sé, Carinhanha, Livramento e Guanambi, onde o combate seria mais feroz por conta da forte oligarquia que formara uma milícia por lá. Diziam até que estavam arrancando as cabeças, reeditando os esquartejamentos do Brasil colonial. A Frente de Alcobaça tinha se juntado ao levante indígena, fortemente armado. Imiscuíam-se nas matas, nas plantações e debaixo da terra, como diziam os agricultores. A última Frente era na capital, e Barra, o melhor, veio parte a cavalo, parte de carro roubado na estrada e, o maior pedaço, de barco, entrecortando o recôncavo. Barra e Utinga se encontraram perto de plataforma. Utinga viera andando da rodoviária. Barra, de barco, passara a noite na praia de Boa Viagem, e só depois rumou para plataforma, com a maré alta. Eram os dois negros.
O Gazo nunca pegou em uma arma. A primeira vez tremeu e vomitou o dia inteiro. Matou um cavalo de uma fazenda treinando tiro a distância. Passou mal. Utinga já tinha descartado a participação dele, que foi chamado quando Guaiamum, tentando passar pela Bacia do Cobre, fora pego. Isso abriu a “vaga” para o Gazo. Ele tinha participado da Frente de Piolho, eram amigos de infância. Mas não gostava de violência. Tinha “treinado” escrevendo, lendo e Lutando com as letras. Não concordava com a Luta. Preferia atuar com o que sabia fazer de melhor, escrever. Até a tomada do centro era o principal articulador das Frentes. Escrevia as cartas, recebia e respondia. Pegava tudo no Seminário que Albertino estudava. Lá mesmo escrevia e mandava, desviando a atenção do exército. Conheceu Pichu numa tarde de quinta, quando o líder foi obrigado a expulsar um delator. Magnata era evangélico, e não queria Lutar. Gazo, entrando defesa em dele, disse que seriam dois os ‘escrevedores” seria melhor assim. Pichu concordou, mas no fim da tarde Magnata tentou trocar informações na Igreja com um dos afilhados da pule de Jovan. Foi levado para a praia da Ribeira, matariam ele por lá mesmo, depois jogariam ao mar. Gazo não deixou, disse que era um absurdo. “Deixei ele ir! Ele não falará nada!”. Pichu, autorizou, mesmo com a ordem expressa de Bernardo e Bianca em matar delatores. Para opositores a prisão, mas para quinta-coluna a morte sumária. Dias depois era o mesmo Gazo que o mataria, trocando tiros na entrada da Lapa. O Gazo era o último e o mais apavorado dos sete. Ele estava na retaguarda.
Estavam escondidos há três dias. Esperavam por uma notícia de Luta. Não sabiam se a Frente do interior tinha chegado. Se conseguiram tomar as embarcações do exército. Contavam com um almirante adesista à Luta que tomara um corveta da Base Naval de Aratu. Prometia a defesa por mar. Do exército somente as armas que carregavam, as “desviadas”. Nenhuma comprada do tráfico ou de gringos, apesar da oferta. “Deixem com a população, eles vão ser chamados em algum momento para a Luta”, bradava Pichu. Sabiam que não teriam a ajuda no tempo que precisavam da armada revoltosa. Também sabiam que em algum momento teriam que enfrentar os “craques”. Mas agora sitiavam a cidade. E o exército não conseguiam formar um cordão por fora sendo acossados a todo momento pelas Frentes do recôncavo e do baixo sul. Ao menos a corveta tomada estava garantindo alguma defesa por mar. Do outro lado do rio, ficaram combatendo parte do exército. A população não estava contribuindo com o exército. Mas o exército tinha as melhores armas, e ganhando em qualidade e quantidade. A Frente do norte tinha facilmente conseguido se manter, com o apoio da população e mesmo dos tiros de guerra de Senhor do Bonfim, Crisópolis, Pombal, Euclides. A Frente do oeste, Carinhanha, Mortugaba e Morpará, ainda estava espalhada. E só conseguia barrar a força conservadora de Goiás. O sul estava guardado pelo valente levante indígena. Nada passaria por lá. O que preocupava a todos era a região de Guanambi. Um reduto do que sobrou das oligarquias da terra e do gado, reunia uma milícia armada para enfrentar a Luta. Mas primeiro tinham que conquistar a capital.
AS forças do exército estavam concentradas em proteger o mandatário, no centro. Tomariam o poder político junto com as forças de produção, já que as Frentes do sul estavam a um passo de ocupar os empreendimentos e empresas rurais e esperava-se tomar em breve o centro industrial e as refinarias. Mas tudo dependeria de como os sete, Jovan, Lindó, Piolho, Albertino, Utinga, Barra e Gazo, avançassem na Luta. Isso porque no desespero e despreparo dos mandatários eles convocaram todos os oligarcas, burgueses, latifundiários, industriais no centro para discutir a crise política, econômica e social vivida pós-Golpe. Aconteceria em oito dias. E o exército não gostou da convocação em momento tão inoportuno, quando nem internamente se sabia até onde a aliança internacional conservadora bancaria o Golpe. Ele ainda negociava a entrada da marinha e da aeronáutica no Golpe. As outras forças não tinham apoiado, Mantinham todo o seu efetivo resguardando o poder central no distrito federal. O exército armou então os governos estaduais com o controle nuclear, buscando apoio político ao Golpe. Esse controle ficava no Centro, e podia desligar o armamento pesado, nuclear, e da comunicação estadual. Uma espécie de botão que mudaria o rumo da luta. Os mandatários mantiveram a reunião, sem contar com o apoio militar, e com os latifundiários do sudoeste. As polícias militar e civil tinham desertado, descontentes com os rumos do Golpe, uns juntaram-se as pules, outros se encastelaram para proteger suas famílias dos “craques” e das pules. Uns poucos fugiram pelo norte, se abrigando em Andorinha, reduto de militares policiais desde o levante de Bonfim e da retomada do trilho até Juazeiro. A força de segurança era o exército. E poucos homens tinham ficado para guardar a reunião, a maioria tinha sido deslocada para o Recôncavo e para a Ilha, a fim de barrar a Luta em Nazaré das farinhas. Porém todos estavam bem armados.
Os rodoviários tinham decretado greve desde a terça feira passada. Já tinha mais de uma semana de greve que paralisava a cidade e o interior. Com isso lojas fechadas, outras saqueadas. O movimento sem-terra tinha rachado. Uma parte juntou-se a Frente, a outra maior marchava rumo a cidade sem armas, só com suas ferramentas: foices, ancinhos, inchadas. “Serão mortos!”, disse uma liderança sertaneja. “Mortos como gafanhotos”. Bancários, petroleiros, garis e todo o serviço público tinham paralisado suas atividades há dois meses. O clima de guerra civil se espalhava e a propaganda oficial não conseguia reduzir o medo, resultando em uma queda no apoio ao Golpe. No sexto dia receberam a notícia de que o exército fechara o cerco por fora de Pirajá. Tinham entrado pelo Parque de São Bartolomeu, mas a BR 324 ainda estava com a Luta, e a pule de Castelo branco e Cajazeiras VIII não tinha dado notícia. Eram pules independentes, não seguiam nenhuma coordenação. Na saída para Lauro de Freitas e Camaçari a cidade estava na mão da Luta, mas não tinham certeza por quanto tempo. As notícias eram de que Pichu estaria morto, Bernardo muito ferido e Bianca tinha ficado do outro lado do cordão. Estava viva e lutando, mas isolada agora com poucos trabalhadores e recursos escassos. A pule da orla estava em frangalhos, só restando o subúrbio, que era mais espectro do que armamento. Mais suor do que bala. A última chance era no oitavo dia. Barra recebeu as notícias com serenidade. Piolho, Jovan, se desesperaram. Eles sabiam agora que era a última chance. Reuniram-se a noite. Abraçaram-se. Passaram a situação para Albertino, Gazo e Utinga, que cerrou os dentes. Fariam duas colunas. A primeira lançaria uma rajada de metralhadoras, granadas e tudo o que tinham na direção do exército. A outra coluna em duas seguiria para a reunião. Piolho era melhor atirador. Iria na segunda coluna com Jovan e Lindó. Barra e Utinga conseguiriam sustentar os tiros ali, e Albertino tinha força para lançar as granadas longe. Gazo seria o guarda costas de Piolho. Daria cobertura total. Levaria a sua FAMAS e mais uma UZZI. Cada um com suas pistolas. Deslocar-se-iam na noite do sétimo dia, mas só na madrugada, quando tivessem a certeza de que todos os oligarcas, mandatários e industriais já estivessem ali para a reunião começariam, então, o ataque. Iriam contar com a resistência do povo do sertão além São Francisco, com a força do subúrbio, para abastecer em armamentos e coragem quem lutava por Águas Claras, Pirajá e Valéria. E com a ajuda dos povos indígenas no sul. A propaganda da Luta tentava com que as informações chegassem aos grevistas e militantes. Era a última chance.
Fizeram o combinado. Mesmo recebendo a notícia de que Pichu ainda estava vivo, e que tinham conseguido recuperar o cordão na cidade com a junção das pules de Bianca e do subúrbio, e com a notícia de que o latifundiário de Guanambi estava morto, eles mantiveram o plano. Mesmo porque, para recuperar o cordão, a Luta tinha perdido a BR 324, e em breve os tanques vindos de São Paulo e do Espírito Santo chegariam a capital. E ainda tinha tanque e carros vindos do norte e nordeste. A corveta de apoio tinha dispersado para o mar do Uruguai. Não era possível recuar. O almirante refugiou-se no país mais a esquerda e mais fragilizado do continente. A primeira coluna iniciou o ataque antes de clarear. A reunião não se instalou, mas todos estavam no centro, dormindo em salas improvisadas, tornadas quartos de hotel. Metralharam os militares que estavam na rua central, desprevenidos. Era uma juventude que iniciava a vida militar, mais por alguma renda do que por ideologia. A força de segurança mais bem preparada estava á frente do portão. A primeira coluna encontrou a verdadeira resistência. Empreenderam o planejado; granadas e um fuzilamento inicial a altura de um exército ianque. Uma parada, mais fuzilamento. Albertino foi baleado na perna, mas não parou de atirar. Lá dentro todos de moviam para proteger-se nos quartos improvisados, aos gritos. Acuados como porcos. Barra gritou para que avançassem. No fundo do prédio maior entraram Piolho, Jovan e Lindó e Gazo. Jovan e Lindó receberam um tiro de escopeta e caíram agonizando. “Os miseráveis estão armados”, gritou Piolho. Jovan ainda teve tempo de matar mais dois militares, lançando a granada. Lindó já caiu sem vida. O prédio central, vermelho, onde ficava o mandatário e seu estado maior, também era só pânico. Todos os burgueses, latifundiários, empresários e políticos que se preparavam para acordar, estavam aos prantos, despertando ao som das metralhadoras. “Piolho”, disse Gazo trincando os dentes. “vamos matar todos antes de tomar o prédio… quarto a quarto”. Piolho era um combatente urbano. Tinha o hábito de matar e estava ali para isso, ou para morrer. Não respondeu Gazo. Olhou assustado e interrogando com um olhar caiçara, como aquele covarde tinha se tornado um guerrilheiro. Lançou uma granada para dentro do prédio, e então gracejou, com seu humor inabalável, “e você acha que estou aqui para quê?”.
A entrada do prédio tinha uma guarita vazia, foram subindo os degraus às pressas, ouvindo ainda as metralhadoras de Utinga e Barra. Não ouviam as granadas de Albertino. Barra tinha se deslocado para perto da entrada, o que possibilitou que os militares se reposicionassem fora do prédio. Por fora estavam quase tomando a entrada e, se não chegasse reforços para o exército, sairiam dali vitoriosos. Gazo estava quase sem ar, mas atirou em cada quarto que entrou. Piolho já não respirava mais, ansioso, queria todos os burgueses mortos. Um abria a sala, o outro atirava impunemente, por cada dia vivido na privação. Por cada morto. Por todos. Na outra sala ao contrário. E mais tiros. Faltavam quatro salas, e não sabiam se já tinham matado o governante e seu estado maior, mas seguiam matando um a um. Pelo mapa que fizeram a sala central era a do comando do armamento bélico. A comunicação estadual ficava no outro andar. Piolho ordenou que Gazo ficasse.
Ele subiria, mataria todos, e voltaria para que entrassem na sala do mandatário e do estado maior, passando a controlar o armamento nuclear e bélico, além da comunicação e, portanto, a Luta estaria vitoriosa. O exército buscando centralizar ainda mais o poder, arrogando o controle que tinha sobre os mandatários, alguns do próprio exército, e com uma supremacia militar inquestionável, centralizou nesse mecanismo de alta tecnologia todos os armamentos nucleares e bélicos, deixando na mão do governo estadual o controle dos armamentos. Esse controle estava na sala central, onde tinham que chegar desarmar o sistema e anular os armamentos nucleares e bélicos. Ele ficaria ali, montando guarda, como ordenado por Piolho. Gazo não obstou. Mas os tiros abafados da sala de cima o confundiram, e sentiu-se desesperado. Lembrou de quando matou aquele cavalo, e depois o viu estrebuchando. Apertou os olhos e viu Piolho no lugar do cavalo. As lágrimas desciam e ele pensava em todos mortos. Seu colhão ardia de medo. Ele não tinha muita munição, não sairia dali com vida, isso era fato. Mais tiros. Seriam da arma de Piolho? Deveria Subir? Deixar o posto? Outra rajada. Gazo tremia.
A luta tinha resistido o quando podia no interior. Os sertanejos mostravam uma bravura indômita. Toda a sua resistência aprendida contra os efeitos da seca e contra as políticas mesquinhas de controle da água e dos recursos pareciam agora ajudar na luta. Acuavam os militares, e depois sumiam no meio da caatinga. Matavam um militar sem nem serem vistos. Mas a pouca munição e a quantidade e qualidade técnica dos milicos estavam vencendo. A abertura no norte, desarmado e fragilizado pela milícia militar, possibilitou a entrada de tanques, homens e armamento. De nada adiantou a explosão da ponte Juazeiro-Petrolina, os militares tinham construído outra saindo de Curaçá, já que a de Paulo Afonso também fora destruída pela Frente das Tribos Indígenas do Nordeste. A população não contribuiu, e também não resistiu. Eles avançaram até Monte Santo, quando muitos militares se juntaram a Frente. Quem ficou seguiu descendo por Cansanção. No caminho encontraram plantações de soja e sorgo queimadas. Os militares entraram vindos do Ceará e do Rio Grande do Norte, as duas maiores bases do nordeste. No oeste do Estado houve resistência, mas ainda assim as forças de Goiás invadiram, arrancando as cabeças dos membros das Frentes. A luta continuava, com fortes resistências, mas muitas perdas. O Levante indígena mostrou-se frágil e inocente, foram atropelados pela marcha dos exércitos do sul e sudeste. Poucos resistiram. Eram as poucas e tortas notícias que se tinha. Guanambi caiu, com a morte do latifundiário, mas não conseguiram manter uma força da Luta. O cordão rompera-se na capital. A Luta tinha conseguido tomar as refinarias do Recôncavo, de Candeias a Madre de Deus. Falava-se na morte de Bernardo e Bianca. Os rumores de que Pichu fora brutalmente degolado pelo exército oficial deixava a todos entristecidos e sem ânimo, Pichu era o imortal. Os trabalhadores estavam reduzidos à resistência do aparelho central, da casa do comando. E os exércitos rumavam para lá. Barra, Utinga e Albertino jaziam mortos no centro. Albertino ainda lá fora, com uma pistola na mão, justo a que ostentava o terço no pulso. Barra e Utinga, enquanto subiam fuzilando os militares que estavam nas escadas, foram surpreendidos por uma explosão tardia fruto de arapuca montada pelos militares. Morreram juntos e lutando. A esperança era Piolho e Gazo. Com o estampido dos tiros Gazo se desesperou. Agora era somente ele. Tremia o queixo. Entrou na sala de comando empunhando duas pistolas. Cinco ou seis homens e duas mulheres estavam no canto da sala chorando. No centro da mesa todo o comando das armas e da comunicação. Apenas uma alavanca como pensara. Arrogantes militares! Pensaram que nunca chegaríamos! Medo e raiva. Era o que sentia. Gazo tremeu os lábios, Piolho fora fuzilado, enganado na sala de cima! Mirou um a um. Deu ordem que levassem as mãos à cabeça. Um não obedeceu, “baixe a arma seu porra!!”, gritou o militar. Gazo atirou, enfurecido, em sua testa. Tiro tão certeiro que devolveu o brio a Gazo. “Mão na cabeça, seus burgueses de merda!!” Um calafrio tomou conta de Gazo, os tanques chegaram. O som dos motores estava logo ali fora. Sabia que não haveria negociação, seria degolado. Mais carros. Sentiu uma respiração ofegante em seu ombro. “Viemos aqui para isso, Gazo”, murmurou, no limite, Piolho, se arrastando, voltando entre os mortos. “Eu sei… estava esperando você chegar para…”, e, antes de terminar a frase, descarregou todas as últimas balas que tinha. Matou a todos. Piolho, baleado, não teve tempo de apertar o botão. Desfaleceu ao lado de Gazo, enquanto ele conseguia puxar o controle, e desarmar o Golpe em sua essência violenta e autoritária. Irônico que não conseguiram sem violência. Um movimento contra hegemônico de resistência e resiliência. Do lado de fora se ouvia urros, choro e gritos de “Viva a Luta! Viva a Luta!” Os tanques foram tomados na entrada do Estado. Trouxeram não a morte, mas a esperança de um mundo livre e liberto. Bernardo e Bianca se abraçavam em lágrimas. Foram carregados pelos tanques dos desertores. Tinham tomado os tanques e os carros, contando com a adesão dos militares do norte e nordeste. O levante indígena ainda resistia, enfrentando quase solitários os tanques do sul e sudeste. As populações do sertão continuavam aguerridas, em luta. O povo sublimou a Luta às alturas, partilhando a pouca água e comida e o abrigo. O povo sertanejo mostrou-se outra vez camaradeiro, agora com seus iguais.
A população aos poucos pode sair às ruas. Os mortos seriam celebrados. Jovan, Lindó, Piolho, Albertino, Barra e Utinga teriam seus nomes jamais esquecidos. Pichu permanecia com destino ignorado, não se sabia se morto ou vivo. Outras lideranças da Luta nas diversas regiões com certeza seriam reveladas e lembradas. Gazo ainda não acreditava e chorava copiosamente, como muitos. Tinha desaparecido no entre a multidão ensandecida. Bernardo e Bianca eram erguidos pelos populares. Organizar-se-iam para formar um novo governo. Pensar um novo governo, uma nova sociedade. Novas formas de produção, de moradia e de vida mais saudável, mais humana. As mortes não foram em vão. A Luta, então, vencera.
Conto parte do livro Lugares da Cidade, Editora Arte Graf: Salvador,2016