Pássaros dançam no ar. O céu resplandece no azul das quatro da tarde de um outono que chega ao fim. Nem todos podem contemplar aquele fulgurante quadro. O trem está parado na metade sul do mundo. O dia passou rápido. A pequena tela azulada suspensa na cabine informa que às 16h30 do dia 22 de setembro será primavera.
Atenção senhores passageiros, chegamos a nossa parada final, Estação da Calçada.
Beatriz ainda está com os olhos na janela, todos os passageiros já desembarcaram, mas ela continua ali, com um sorriso que voa até os pássaros. Seu estágio no escritório de advocacia, encerrado sempre às 15h00, era marcado pelo aviso do seu chefe: “Bia, tome um táxi ou um ônibus para ir pra casa, nem pense em pegar aquele trem sujo e perigoso, viu?”
Embora recebesse dinheiro e também fortes recomendações de seus pais para pegar um táxi do Rio Vermelho, onde morava, até o seu estágio, no subúrbio da cidade, Beatriz preferia usar a recomendação até o bairro da Calçada, quando descia do táxi em frente à Estação de trem urbano. Ali, sentia o ar pesado e multifacetado das imediações de uma Salvador que pouco conhecia.
Vendedores ambulantes, camelôs e outros transeuntes ocupavam as ruas como formigas operárias. Alguns homens tinham corpos visivelmente estropiados pela carga da vida. Junto aos homens, alguns jovens auxiliavam o trabalho vendendo caixotes de frutas e produtos Made in China.
Se recebesse um olhar atento daquela profusão de gente, Beatriz, pensava ela, seria julgada como alguém da justiça – pelos seus trajes – que estava ali, sem dúvidas, para promover injustiças. Não era o caso.
O trajeto de aproximadamente treze quilômetros e meio, entre o bairro da Calçada e o seu destino semanal, às sete da manhã, no escritório de advocacia em Paripe onde estagiava, servia como um portal de transição de suas ideias.
Beatriz entra na estação e compra seu bilhete.
Assim que ocupa o seu assento, uma senhora religiosa lhe oferece um panfleto bíblico, cordial mas desatenta, Beatriz recebe o panfleto, o dobra e guarda no bolso de sua camisa três por quatro listrada.
Encostada junto à janela, Beatriz espera as matizes que se desenvolverão ao longo do percurso. Seu entusiasmo e excitação parecem inéditos, embora já esteja há mais de seis meses indo e voltando naquela única linha férrea, atravessando as dez estações.
Como parece mágico estar em tantos lugares diferentes sem sair do lugar. Trinta minutos pontuais. O barulho dos trilhos e da buzina dão um tom de interior. Sente-se abençoada. Abraça a sua maleta. Beatriz espera se indignar com as palafitas, mas também contemplar as belas paisagens: praias. ah! aquela ponte, suspira!
Beatriz suspende o braço e verifica seu relógio analógico: seis e dez. Como são boas as convenções. É primavera: céu azul, sol radiante, temperaturas amenas e ambiente florido. Por um momento, retira a mão esquerda de sua maleta e pega o panfleto que recebera: “Até a cegonha do céu conhece os seus tempos determinados; e a rola, a andorinha, e o grou observam o tempo de sua arribação.” – Jeremias 8:7′