Mesmo sendo Carnaval, domingo era sagrado: vencer a distância de Amaralina a Pedra do Sal, enfrentando engarrafamento, para o banho de mar nas águas tranquilas da bacia da Rua K.
As famílias abastadas que viram no loteamento um pedaço do paraíso com praia particular se fechavam atrás dos muros à proporção que os ônibus iam esticando suas linhas e despejando os indesejáveis farofeiros, mas elas se incluíam na boa parte da classe média motorizada que ainda não percebera a mudança do point do verão para outra praia mais distante, onde nenhuma empresa de transporte coletivo ousara chegar.
Torraram a pele, alternando com banhos salgados, até o sol começar a se render à tarde, hora de amassar os traseiros nos banquinhos de madeira equilibrados na parte mais alta da areia, onde se amontoavam as barracas e as pessoas à volta das mesas toscas e bambas. Por sorte uma turma se levantara, e a mesa vaga as recebeu.
As duas, as desgarradas do domingo de Carnaval, se sentiam no direito de esticar o dia sem culpa. A comida de toda a semana estava preparada, cada uma havia feito uma boa faxina no seu quarto-e-sala, e ainda faltava muito para a noite, quando, conforme o combinado, se sentariam confortavelmente diante da telinha para assistir à cobertura do desfile das escolas de samba e do auê da Praça Castro Alves, enlouquecida pelos trios elétricos. Às vezes, uma emissora mais destemida mostrava uns flashes dos grandes bailes, o bastante para acalorar a noite balzaquiana.
Mas enquanto a noite não chegava, devia-se assistir era ao desfile de tipos do pedaço: o do bonezinho verde estava lá, cantando os mesmos boleros, acompanhando-se ao bongô e acompanhado pela mulata sinuosa e farta; o de bigode e cavanhaque passava a mão pela careca vermelha em sinal para a perua semibêbada, que se levantava para espalhar protetor solar na área devastada e aproveitava para roçar os seios no seu pescoço; o gordo alisava, com uma das mãos, a barriga apoiada nas coxas e, com a outra, as coxas da magricela espevitada que dançava baião, samba-canção, guarânia, tudo no mesmo ritmo, a pagodeira.
– Quanta decadência! – comentou a Alta. – Vamos tomar só uma cerveja, depois a gente vai pra outro lugar.
– E isso aqui já foi tão bom… – a Baixinha concordava.
Mas deu uma conferida e os viu: os dois louríssimos se destacando na morenez da Rua K.
Troca o olhar, segura um pouco a vista, tira, disfarça:
– Que homens!
– O de barbicha é uma graça.
– Que nada, o outro é mais viril, alto, enxuto.
– E pensar que a gente está aqui sozinha, com esses dois dando sopa…
– …neste pedaço de terra de Deus em que homem bonito é coisa rara.
Mas o entusiasmo durou pouco: eles se levantaram. O Grande foi ao dono da barraca, acertou as contas. O Barbicha passou a mão na chave do carro. Uma delas não resistiu:
– Vocês já vão?
Aproximaram-se. Os quatro passaram a ocupar a mesma mesa e pediram mais cerveja.
Eram engenheiros de minas, técnicos importados para conhecimento e exploração de nossas riquezas, sabedores de tudo que lhes diz respeito. Mas elas também não ficavam atrás. E discutiram a situação econômica, os escândalos que ficaram por isso mesmo, as epidemias, o narcotráfico, o desemprego, a lentidão da justiça…
Começava a escurecer quando se despediram. O Barbicha reclamou: ia ficar assim? sem trocarem, ao menos, os números dos telefones? Cataram um pedaço de papel, os rótulos de cerveja serviam. Escreveram os quatro endereços. Foi nesse ponto que tudo começou.
– Cristiana? Já morei seis meses nesse edifício – e voltando-se para a Alta: – Conheço também o teu prédio; outro gaúcho, que voltou para o Rio Grande desesperado de saudades da noiva, morou ali. São vizinhas, não é?
– Vizinhas e amigas há muitos anos. Mas por que você saiu de lá do Cristiana? – perguntou a Baixinha. – Os apartamentos são tão bons, amplos, um quarto de empregada reversível…
– Por incrível que pareça, foi por causa de um galo.
– Ah, aquele galo é o disparate – disse a Alta. – Completamente desregulado, canta à meia-noite, uma, duas, na hora em que lhe dá na telha. Você acredita que uma vez, durante o horário de verão, me levantei às quatro da madrugada pensando que estava atrasada, só por causa do desgraçado daquele galo?
Pronto. Até então, a Alta e o Grande haviam esgrimado verbalmente o tempo todo, enquanto a Baixinha e o Barbicha tentavam contemporizar. O Grande defendia um partido político; a Alta, a sua oposição. Para ele, o problema econômico seria resolvido com medidas drásticas, doesse a quem doesse; para ela, tudo começava com o fim da corrupção, da sonegação e da impunidade. Ele tinha ideais burgueses; ela militava em prol do operariado. Tenho um compromisso com as classes dominadas, dizia, e ele defendia as grandes obras, os monumentos, os elefantes brancos. Ele afirmava que o problema brasileiro era a produção, o mal tinha origem na Colônia: portugueses degredados, índios preguiçosos, negros safados; ela rebatia, alegando que o entrave estava na distribuição, o país é rico, exportamos matéria prima a preço de banana e depois compramos de novo, industrializado, porque não interessa preparar mão-de-obra, é conveniente manter o povo ignorante. Nos grandes centros há violência porque estão infestados de nordestinos; a indústria da seca beneficia os poderosos. Controle da natalidade; reforma agrária. Só faltaram ir aos tapas. Mas, enfim, um ponto em comum: o galo.
– Afinal de contas, onde fica esse galo? – quis saber a Alta. – Vivo me perguntando quem criaria um galo num apartamento.
– Sabes a padaria?
Ela sabia, ficava incrustada entre os dois prédios, numa nesga de terreno.
– Pois o galo fica lá, no quintal da padaria. Um bicho enorme. Da área de serviço do meu antigo apartamento podia-se ver. E o pior é que eu morava no 101, a apenas três metros do galo. Um inferno.
– Acredito. Se eu, que estou ao lado e no fundo, me incomodo, imagino você.
Ele baixou os olhos para o rótulo de cerveja. Havia, finalmente, paz naquela mesa. Por causa do galo.
– Ei, tu moras no 501 – o Grande se virou de repente para a Baixinha moradora do Cristiana. – Da tua área de serviço dá pra se ver o galo.
A Alta olhou para ele, pensando: esse cara, agora, não vai falar noutra coisa. Metido a macho, vai ver está até se identificando com o bicho. Não deu outra:
– O galo te incomoda muito? – já havia perdido aquele ar de sabe-tudo, de rival.
– Bastante.
– Já sei. Vamos dar um fim nele.
A Baixinha e o Barbicha se entreolharam. A Alta encarou o Grande, à espera. Veio logo:
– Eu tenho um riflezinho com bom alcance. 501… acho que dá.
– E aí?
– Depois comemos o galo, com farofa de dendê e tudo – concluiu o Barbicha, em tom de brincadeira.
– Só se ela cozinhar – retrucou a Alta. – Eu não vou cozinhar mais nada esta semana. Vocês matam, pegam, depenam, ela cozinha, e eu levo o vinho.
– Não. O vinho é comigo – decidiu o Grande.
A Alta ficou um pouco irritada. Não estaria ele querendo dizer que ela não sabia nada de vinhos?
– É que sou da terra do vinho – explicou com orgulho.
Tolerou. Afinal, podia ser que realmente entendesse de alguma coisa.
– Qual preferes? Suave? Seco? – o olhar dele tinha amolecido um pouco, se não fossem os antecedentes acreditaria até em docilidade.
– Branco. Suave. A marca, não sei. Não é minha especialidade – admitiu, e desse jeito ficou estabelecido um certo reconhecimento de limites. E, ainda, o assassinato do galo.
*****
O clima perfeito. Havia, finalmente, cumplicidade. No 501 do Cristiana, a Baixinha recebeu os gaúchos. Chegaram munidos de vinho e rifle.
– Deixe eu pegar os copos. Olhe, não repare eu não ter as taças apropriadas.
O Barbicha afirmou não fazer a menor diferença. O Grande ficou calado. Um vinho daquele em copo de extrato de tomate, sacrilégio. Mas ela trouxe copos finos para água e o saca-rolha, enquanto os convidava para a área de serviço, de onde poderiam ver o alvo.
– E a tua amiga? – perguntou o Grande, se pendurando no peitoril. – Ela não vem?
Mas a Alta já ia entrando pela porta aberta, com quatro taças de cristal aninhadas nas mãos e um saco de mercado mal abraçado. Pôs as taças sobre a mesa, tirou de dentro do saco uns pacotinhos de biscoito e um livro. Voltou-se para o Grande:
– Tome. É pra você se informar sobre a nossa realidade.
– Ah, venham ver, venham ver – salvou a Baixinha. – Nunca tive a curiosidade de espiar. É todo coloridinho.
Lá estava o galo, andando nervoso de um lado pro outro, nuns poucos metros quadrados de cimento, junto a engradados e outros trastes. Como que pressentindo.
– Um bicho bonito – disse quase pra si mesma a Alta, enquanto o Grande tirava o rifle de uma capa de couro.
– Achas mesmo necessário? – ponderou o Barbicha, quase num apelo.
– Mas claro! E eu vim aqui fazer o quê?
– Foi só um pretexto para nos reunirmos – ainda tentou o outro.
– Nada disso.
– Escuta: aproveitamos que estamos todos juntos, bebemos o vinho. Se quiserem, vou buscar uma pizza – insistia.
A dona da casa desfiou uma lista completa do que havia no freeser. Era só escolher, tirar e pôr no micro-ondas. A outra calada, bebericando, os olhos nos músculos retesados que apareciam sob a camisa de malha do atirador, rifle em punho, fazendo mira.
– Vê se te aquietas – ainda tentou o Barbicha -, deixa isso pra depois.
– Tem que ser antes de beber. Preciso estar em pleno domínio dos meus sentidos.
– Ei, ô… você nem viu o livro que eu lhe trouxe.
– Livro? Que livro? – o Grande se virou e apoiou o rifle na máquina de lavar roupa.
– Pra você ler, se informar e não ficar repetindo aquelas besteiras que disse na praia.
Todo o rosto dele se contraiu. Ela sorriu com o canto da boca. Levou o copo aos lábios, estendeu-lhe outro cheio:
– Bom vinho este que você trouxe. Tenho que admitir: de vinhos, você entende.
A Baixinha passou a mão na garrafa, tornou a encher os copos:
– Vamos brindar à nossa amizade.
– A outros futuros encontros – falou o Barbicha.
– Ao vinho – disse a Alta.
– À morte do galo – reincidiu o Grande, com o olhar fixo na Alta, e retornou à área de serviço.
Cada um dos outros três deu um gole em silêncio. A Baixinha chamou-os para a sala, cozinha não era lugar para se receber visitas. O Barbicha acompanhou-a. A Alta se levantou mas foi se colocar ao lado do Grande, na amurada. Espiou: o galo circulava lá embaixo, no quintal da padaria.
– Bicho bonito. Que porte!
– Tem mais é que morrer – sentenciou o Grande.
– É só mais um chato como outro qualquer. Mas, sem dúvida, um belo macho da espécie.
– Disseste bem: um chato. Só faz incomodar os outros.
– Há quem perturbe e não perceba.
– É – e ele olhou bem nos olhos dela: – Tem gente que incomoda e nem desconfia.
– Se você está falando isso pra eu sair daqui, pode tirar seu cavalinho da chuva.
– Preciso me concentrar. O bicho não pára de andar.
– Vamos ver se você é bom de tiro, como é de vinho.
– Vais ver já.
Apertou o gatilho. O galo bateu asas, voejou por sobre os engradados, emitiu sons estridentes.
O Grande mirou de novo. Atirou.
A Baixinha e o Barbicha apareceram na cozinha.
– Mataste? – quis saber o amigo.
– Não. O sacana não fica quieto.
– Ah, deixe o bichinho pra lá – intercedeu a Baixinha.
– Não. Desta vez eu me vingo deste filho da puta.
Os quatro se debruçavam na amurada. O Barbicha olhou pra baixo, pra cima, viu gente nas janelas.
– Para com isso, estás chamando a atenção da vizinhança – e segurou o ombro do amigo, justo na hora em que puxava novamente o gatilho.
– Ei, que tiroteio é esse aí? – berraram lá de cima.
– Vou ligar pra polícia! – gritaram de outro apartamento.
A Baixinha arrancou o rifle da mão do Grande:
– Quer me criar problemas? Assim o proprietário me pede o apartamento. É aluguel antigo, não vou achar outro por esse preço. E aí, vou morar onde? Debaixo da ponte?
O Grande olhou pra ela com seu primeiro sorriso da noite:
– Acabou. O galo está morto. Vocês estão livres da cantoria de madrugada. E se houver algum problema, eu assumo.
Meteu a cara pra fora do edifício e gritou:
– Era só o galo. Olhem lá, está morto.
Alguns vizinhos ainda reclamaram qualquer coisa, mas logo fez-se silêncio. Estavam todos livres do galo.
A Alta arriscou um olhar para o pátio da padaria. O bicho jazia em cima de um engradado, as asas abertas.
O Barbicha, aporrinhado, passou a mão na chave do carro. Virou-se para o Grande:
– Tu és um desmancha-prazeres. Estragaste a noite. – E voltando-se para as mulheres: – Me desculpem, mas vou-me embora.
A Alta pegou também sua chave, deu um beijo no rosto da amiga:
– A festa acabou. Mas não tem importância, fica pra próxima.
– Mas você não vai ficar? – a Baixinha estava atônita, de repente o circo desmontara. – Vamos ver televisão, os flashes dos bailes…
– Não, não. Pela primeira vez em muitos meses, parece que vou dormir uma noite inteira, sem despertador de meia em meia hora.
O Grande ficou só com a Baixinha:
– Olha, se te causei algum problema, peço que me desculpes. Já te disse: qualquer coisa, eu assumo.
Desceu pela escada para evitar encontros com moradores, o corpo atlético, ágil. Na rua, recebeu com prazer o vento fresco da noite no rosto suado.
– Ei, assassino?
Olhou, viu a Alta parada junto ao portão do prédio vizinho. Guardou o rifle no carro, olhou-a novamente, se aproximou:
– Nem pude apreciar o vinho. Mas tenho outras garrafas em casa. Queres ir lá, tomar uma taça comigo?
A Alta o olhou de cima a baixo, sem pressa para responder.
– Não. Mas eu também tenho um bom vinho na geladeira.
Subiram. Uma a uma, todas as garrafas de vinho da Alta foram consumidas. Ele ainda desceu para buscar outras que deixara guardadas no carro.
Quase embriagados, deram os últimos goles já na cama. E tudo talvez tivesse corrido muito bem se, às três e dezessete da madrugada, o galo não cantasse lá no quintal da padaria.