Gero estava deitado no quarto quando os homens armados entraram na casa. Era começo de tarde, hora da sesta, momento precioso para ouvir rádio enquanto dormitava. Depois do almoço sendo, sempre, oca mistura de ruídos esparsos, longínquos e de muito calor. Pasmaceira trivial do lugar.
Os ruídos mais próximos: a mãe a lavar pratos e a arear panelas; depois, a bater pedal na máquina de costura Elgin – mal percebido, de tão costumeiro, o ruído dos pedais embalava sonecas, fantasias, visagens.
Certa vez, viu uma enorme lagartixa-de- fogo espiando-o do telhado, entre caibro e telha, rubra e flamejante, a soltar fumaça pelo que Gero chamou de ventas, e a balançar a cabeça como se dissesse muito bem, sim senhor, madornando a essa hora do dia, vagabundo! Gritou minha mãe!, que veio correndo e disse que não havia lagartixa-de- fogo ou sem-fogo no telhado, isso era delírio de febre que sempre o acometia. Ora, lagartixa nenhuma permaneceria à vista depois do grito que dera, não argumentou pois levaria pito.
Difícil mesmo era ir para a escola àquelas horas vespertinas. Subir a rua a uma da tarde. Não gostava de acordar cedo. Mas preferia não subir a rua a uma da tarde. Era de dar congestão em calango. Por isso Gero estudava no período matutino do ginásio.
Enquanto fazia o quilo ouvia rádio e mantinha livros e gibis na caixa – ler de barriga cheia fazia mal às vistas. Livros e gibis conseguidos mediante esforço de permutas, empréstimos e retiradas na escassa biblioteca do ginásio. Qualquer exemplar era bem-vindo e lido com sofreguidão. O predileto era o que estivesse a sofrer, em suas mãos, o esgotamento do conteúdo. No quarto ou na rede, Gero provava a leitura como descoberta química, como se acumulasse energia para grandiosas aventuras. Mas não depois do almoço, a mãe alertava e exigia.
Deitado, Gero invariavelmente agarrava-se a um sonho qualquer de grandeza, típico de garoto que começa a enrolar pentelhos por distração e prazer. Entre a cabeça e a parede, o rádio sintonizado em emissora paulista, no programa de Hélio Ribeiro. Naquele pedaço de sertão ribeirinho não se captava emissora da Bahia – só à noite, e olhe lá.
O volume do rádio estava ajustado baixo para não suscitar reclamos… quando os homens armados entraram.
Notícias chegavam falando dos tiros, da perseguição. Os homens a zanzar pelas ruas armados com revólveres, pistolas, fuzis e metralhadoras. Deviam esconder punhais e facas de caça nas cinturas e botas. Mas Gero não imaginava que pudessem entrar pela casa adentro como se em trincheira inimiga. Armados, fuzis em punho, as tiras esticadas até o pescoço, de um de dois de três.
Os homens cruzaram a sala rumo ao quintal, silhuetas expostas no recorte luminoso da porta do quarto. Não olharam para os lados, não espiaram para dentro do quarto, o que não deixou Gero tranquilo, pois podiam voltar com raiva do esquecimento e a coisa ser pior. Coisa essa que não sabia bem o que era.
Gero lembrou da mãe lá para dentro, não ouvira baterem à porta, chamarem ô de casa!. Assustou-se mais ainda, ensaiou levantar-se. Não conseguiu, e não foi somente pela tremedeira. Foi também por não saber – de repente estava dentro de uma história de gibi, homens entrando armados em casa – , não saber o que era certo fazer: se aparecesse na porta do quarto, à retaguarda dos homens, algum deles poderia se virar e nele atirar, pensando ser um dos perseguidos; outro homem, à porta da frente da casa, poderia pensar que saía à traição – perceberia, naquele átimo nervoso, tratar-se de um menino? – e nele, Gero, também atirar; e certo mesmo é que sabia não ser do agrado da mãe que ele ouvisse a conversa dos homens.
Entraram, e Gero continuou deitado, ouvidos pescando sílabas. Palavras da conversa, nenhumas, só as de Hélio Ribeiro, roucas e radiofônicas. Baixou mais o volume do rádio, manteve o rosto virado para a porta do quarto e não esperou muito tempo. Os homens voltaram, a mãe atrás deles esfregando as mãos em um pano de prato, cinza-sujo pelo uso. O barulho das botas no ladrilho de barro comum abafando o rufar do coração de Gero, ali deitado e sentindo muita falta da lagartixa-de- fogo.
Os homens armados passaram de volta, canos desapontados, sempre em linha reta, sem espiar o interior dos quartos. Se aqueles a quem perseguiam estivessem escondidos no quarto de Gero, não os teriam descoberto. Um mês antes, no entanto, ali estivera hospedado um companheiro dos fugitivos.