ontem à tarde escutei uma dessas pessoas
que criticam
os fumantes e os alcóolatras
chamando-os de quase suicidas
que se matam aos poucos
sabendo que o que têm em mãos é potencialmente fatal
a morte só não chega de uma vez só.
desde então eu tenho me enxergado assim
quase suicida.
enquanto escrevo
penso nas células do meu sangue e em como
não deve existir
mais nenhuma
que não esteja coberta como uma crosta grossa de açúcar,
sódio e gordura;
e em meus neurônios,
que de tanta abstenção de sono
nem devem funcionar direito mais.
o frasco de tarja preta antes durava um ano,
mas hoje eu tenho que ir atrás de uma receita nova
em menos
de quatro meses.
olha só quantas coisas você deixou de fazer por causa dele,
disse uma amiga, atrás de um beco, o único lugar escondido que achamos pra conversar,
depois de eu ter contado
que não frequento minhas aulas de dança
há mais de mês.
depois que toda a culpa por estar destruindo minhas próprias células me consome
eu abro um suco de laranja, daqueles de mercado,
e tomo dois copos inteiros
pra fingir que ainda existe
algum pingo de saúde
aqui dentro.
os copos sujos ficam em cima da cama,
rodeado de formigas
e eu até espero
que em alguma dessas madrugadas
elas se atraiam pelo meu sangue,
hoje tão doce,
e me engulam durante o pouco tempo em que durmo