Na memória do meu amor estava a varanda coberta, a silhueta em uma poltrona de vime distanciando-a da imagem mais alta e vital que de manhã andava pela casa ou brincava com a gata, essa imagem que ao entardecer se transformaria uma e outra vez no que me fazia amá-la tanto. (Julio Cortázar)
Aqui mesmo está bom, nesta cadeira de vime enviesada no canto da varanda, onde esperei tantas vezes ouvir as pancadinhas e o ruído da chave na porta. Daqui posso assistir à última reprise dessa cena tão familiar.
O vidro da grande porta que separa a varanda da sala me mostra imagens superpostas. Em primeiro plano me vejo em silhueta, estou contra a luz e o rosto é um borrão de sombras; de nítido, só o contorno dos cabelos meio alvoroçados, do ombro fazendo curva quase coincidente com o espaldar da cadeira. A luz atravessa o trançado do vime e a cadeira, sim, fica bonita em seu reflexo, ao lado da samambaia de folhas largas, matrona, que vem permanecendo viçosa por quase duas décadas. Mais forte que eu.
A outra imagem vejo através do vidro, por trás do quadro formado por mim, pela cadeira e pela samambaia: no pequeno hall de entrada, a porta maciça de sucupira com almofadas, o espelho e o console preso à parede. É ela, a porta, que domina o ambiente, e sempre foi assim. Mesmo quando não era exatamente essa, pesada e imponente, mas uma simples porta folheada que precisava receber tinta branca pelo menos uma vez por ano porque as meninas, apesar de saídas há muito da infância, às vezes tinham recaídas. A mão suada no branco da porta era um vício incurável, e a mancha resistia às lavagens depois de alguns meses. Dar com ela me irritava: fazia sermões, ameaçava, passava freneticamente a bucha com sabão e permanecia alerta, fiscalizando. Até o dia em que a lavei e permaneceu limpa. As meninas haviam seguido cada qual o seu caminho e me deixaram a porta, incomodando com sua limpeza. Troquei-a, então, por uma onde qualquer mancha se perdesse.
Mas não entreguei os pontos assim, sem mais nem menos. A porta foi apenas uma das muitas mudanças acontecidas naquela época. A ranhetice entranhada se dissolvia à medida que se instalava uma nova disposição para a vida, a importância das coisas e dos fatos se alterava, o mundo tinha mais brilho e encanto, e o dia-a-dia parecia menos cansativo, velhas rotinas aposentadas para dar lugar a novas e atraentes atividades. Reacendia-se o espírito de luta e reiniciava-se a busca do prazer, mas o significativo e oportuno prazer. Era uma nova onda que me tomava inteira, fazendo circular algo que não conseguia descrever, dentro e em torno de mim. Havia otimismo, e uma crença ingênua nos meus poderes acabava se revelando coerente, os objetivos alcançados sem grandes esforços – por serem viáveis, por sorte ou simplesmente por força da fé.
As pessoas não acreditam na felicidade, e se for alheia, então, pior: dão sorrisinhos e olhares céticos, menosprezam os motivos, as uvas estão verdes. E os amigos, desconfiados, se perguntavam quanto tempo iria durar o que chamavam, sei, de ataque de adolescência tardia. Mas a tal crise durou vinte anos. Por isso, sentada defronte à porta, mas protegida pelo vidro, convoco os sentimentos bons desse tempo. É uma despedida, um funeral com pompa. Quero que tudo se encerre com a dignidade que conferi a mim e ao que respeito.
Esses últimos vinte anos foram realmente alegres. Estivemos juntos em inúmeras festas: do sindicato, dos diretórios acadêmicos, do partido. Nossa vida social foi intensa, havia sempre uma porção de amigos, dos universitários aos PhDs, e frequentávamos quase tudo, desde as cervejadas nos bares às solenidades em Palácio. Cultivamos prazeres por mim já esquecidos, como dançar, tomar banho de mar e andar de bicicleta. Bem diferente de antes.
Quando fiz cinquenta anos, não era que a idade me pesasse, apenas me resignara a uma vida sem amor. Minha filha mais velha havia se casado com um jovem oficial do Exército e morava lá onde o diabo perdeu as botas. A outra, funcionária do Banco do Brasil, enfrentava a aventura de viver numa pensão de cidadezinha do interior em que bodes e galinhas transitavam pelas ruas dividindo o espaço com caminhonetes dos coronéis da região, os únicos motorizados por aquelas bandas. Se não era bem o que desejava para elas, ao menos tinha o consolo de sabê-las, como se diz, arrumadas. E ter tranquilidade em relação aos filhos, uma casa própria e um bom emprego, me dizia, era tudo que uma mulher na minha idade poderia desejar. Mas às vezes, à noite, apagava a luz e desligava a televisão, mesmo sem sono, só para poder sonhar. Libertava a guarda e imaginava um homem mais para gordo, com uma barriguinha sobressalente, os cabelos grisalhos quase brancos, a pele já meio flácida no pescoço. Ele vinha, me beijava a boca, os ombros, os seios, o corpo inteiro. Deitava o corpo sobre o meu e fazia amor comigo de forma que me sentia plena. O homem dos meus sonhos era sempre assim: feito na medida, nunca me decepcionava, me bastava.
Logo que as meninas me deixaram só, os casais amigos se mobilizaram. Uma vez por mês me levavam ao teatro, depois jantar num bom restaurante, jamais esticavam em salões de dança, me deixavam em casa. Eu retribuía a gentileza comparecendo aos aniversários, casamentos, churrascos, a tudo de que uma mulher decente e solitária podia usufruir. Mas eram eficientes demais, tinha a impressão de que haviam feito uma escala de plantões para não me permitirem o direito de passar um fim-de-semana agradavelmente recolhida em minha casa. Faltava pouco para me aposentar, esperava apenas completar o tempo no cargo para levar a vantagem, estava cansada. Queria ficar no meu canto, costurar, ver televisão, ler, me entregar ao ócio. Mas vieram à minha casa, me obrigaram a me arrumar e me arrastaram para um almoço em comemoração à formatura de uma moça que vira nascer e era minha afilhada.
Ele não era feio nem bonito, era simpático. Fiquei surpresa e até um pouco decepcionada quando desconfiei que sua atenção ultrapassava a cortesia. Antes que a desconfiança se confirmasse, seria sensato me poupar do constrangimento de enfrentar um desses tipos que são eternos relações públicas e vivem exercitando seu poder de sedução, o que, parece, fazem para suprir alguma carência. Vivida o suficiente para ter-me deixado enganar por essas figuras melosas e grudentas e escaldada o bastante para saber que desejam mesmo é alimentar a falsa impressão de que são criaturas amadas, disfarcei, saí de perto e me refugiei na cozinha. Fiquei assustada quando ele apareceu, pegou dois copos, uma garrafa de cerveja e disse: vamos lá pra fora, vim buscar você.
Por três meses ele me buscou onde me escondesse. Como ex-professor de minha afilhada, um homem vindo de longe e sem família, ficava fácil ser convidado para as reuniões. Foi conhecendo todo mundo, agradando a todo mundo, e quando dei com ele na porta do teatro, levada a um concerto por um casal de amigos, já não oferecia resistência à sua presença. Jantamos juntos, os quatro, e depois fomos dançar. Nessa madrugada ele me levou para casa e entrou.
Foi difícil, muito difícil estar nua diante dele. Tinha consciência de todos os estragos que o tempo fizera em meu corpo ao longo de cinquenta anos. Cheirava a autoflagelação me impor a nudez diante de um homem de apenas trinta e três. Mas pior, bem pior, foi enfrentar os velhos amigos, perplexos e preocupadíssimos diante da minha insanidade, quando não mais pude esconder que me apaixonara pelo professor universitário tão mais moço que eu.
Foram muitas as pressões e os conselhos, foram muitas as dúvidas que me perseguiam nos primeiros anos. Eu também queria encontrar uma explicação para um interesse tão insensato de um homem moço, inteligente, bem situado e com um grande futuro por uma mulher com menos dinheiro, à beira da aposentadoria, bem mais velha e sem nenhum glamour. Maior que as dúvidas, quando decidi deixar de procurar explicações, foi o medo.
Abria a porta do armário e encarava o espelho comprido. Ia tirando a roupa, peça por peça, e olhando atentamente para meu corpo. Fui magra a vida inteira, e as magras, se não despertam tanto a volúpia, ao menos têm a vantagem de não ver despencar os excessos. Eu até que estava bem para a minha idade, aparentava cinco anos a menos, talvez seis, sete. Com boa vontade e alguns artifícios seria possível passar por quarenta, mas ainda assim havia a diferença. Não era preciso olhar duas vezes para constatá-la. Também, eram dezessete anos.
Embora preocupada, tentei. Investi em mim. Assim que redescobri a confiança no amor, me convenci de que as regras têm mesmo exceções e que poderia viver uma delas. Então, iniciei a maratona: me submeti ao check-up há tanto anunciado, renovei o guarda roupa e fiz o que antes achava de extrema futilidade: freqüentar instituto de beleza. Mas foi muito bom, foi sim. O novo estado de espírito se refletiu até na casa. Os móveis antigos e cheios de nobreza se tornaram pesados, aproveitei para trocar também a porta e me livrar de tantas outras coisas que me tomavam tempo, espaço e atenção, para tornar a vida mais prática, mais leve, mais alegre.
Aquela porta ali tem história. Fomos juntos escolher, como juntos tomamos decisões, enfrentamos desafios, comemoramos vitórias. Por ela o via entrar nos fins de tarde, antes as pancadinhas na madeira, me dando tempo para preparar a melhor pose, sentada nesta mesma cadeira de vime, presente dele no meu primeiro aniversário na nova fase de minha vida. Ele me achava bonita, dizia que o vime dava leveza ao quadro e o espaldar alto formava uma moldura para meu corpo. Batia, abria a porta e me procurava com os olhos. Como parte do ritual, eu lhe sorria e não me levantava. Era sentada aqui que ele gostava de me dar o primeiro beijo.
Por isso estou aqui. É nela que devo estar para assistir à cena que, depois do freio, irá reverter a minha vida. Preciso estar nela para me convencer de que é verdade.
Não será como aquela vez, quando tínhamos cinco anos de casados. Era inverno, chovia, e a cadeira havia sido levada para dentro da sala, mas não me sentei para esperá-lo porque estava triste e magoada. Apesar de ter percebido, tempos antes, mudanças em seu comportamento, nada havia que chegasse realmente a me perturbar, e aprendera a não dar crédito a suposições. Mas à tarde aquela mulher estúpida havia me telefonado e me dito todas aquelas coisas. Sabia, por acaso, que se encontraram diariamente para o almoço, e que na minha última viagem, quando passei um mês no fim do mundo para ajudar minha filha que acabara de ter um bebê, eles saíam muito à noite e dormiram juntos? Não, eu não sabia. E não gostei que me contasse. Mas ela precisava me dizer, hoje eu entendo, porque uma decisão havia de ser tomada, e, nesses casos, são sempre as mulheres que tomam as decisões. A recusa em estar na cadeira era um gesto incisivo, que exibia a revolta e também exigia um acerto de contas. Após três dias de briga, choro e arrependimento, foi ela quem não gostou. E até hoje lhe agradeço por ter interrompido um processo que poderia me privar da felicidade que tive por todos esses anos.
Antes de tomar a decisão de agora – e espero que seja a última dessa espécie em minha vida -, me lembrei dela. Se naquela época não tivesse sido tão precipitada, talvez fosse ganhando seu afeto, seu amor, sua cumplicidade, ao tempo em que eu iria perdendo tudo isso. Lenta e gradualmente, iria puxando-o para si e afastando-o de mim. A dor teria sido, quem sabe?, muito menor do que a que sentimos hoje.
Mas o susto me tocou nos brios. E percebi que o amor cobra um preço alto, luta constante, atenção dobrada. Não perdoa os relaxados e distraídos. Então veio a vontade de me expor ao que sempre jurara jamais fazer: plástica de rosto, mama e barriga, as três no mesmo ano.
Bonita e segura, mas nunca despreocupada, me policiava para não ficar adivinhando problemas. Em tese, passara por cima do episódio, porque aprendera também a tirar partido das coisas desagradáveis – no fim das contas, eu saíra ganhando. Não pensava na possibilidade de tudo vir a acontecer novamente, estava convencida de que havia sido um escorregão, e que não iria se repetir. Gostava de cuidar de mim; me saber amada me fazia amar-me. Queria ser feliz, fazer alguém feliz e contribuía com minha parte sem preguiça. Estava alerta.
Mas isso foi há muito tempo. Passando a mão pelo braço da cadeira, sinto as farpas do vime, que vem se soltando com muita frequência. Como ele, eu também estou velha. Se bem que a pele esteja bem cuidada, o cabelo com brilho, as unhas feitas e o porte altivo, o cansaço me lembra a cada momento os meus setenta anos.
Foi isso que lhe disse, exatamente isso: tenho setenta anos e estou cansada da obrigação de parecer menos. Sei que não me exige parecer o que não sou, mas eu lhe dei isso, e não é justo lhe tomar agora. Não é justo impor a alguém uma presença diferente daquela que lhe prometeu por tantos anos.
Posso manter ainda por um tempo, quem sabe até o fim da vida, que se aproxima, uma imagem que caia bem em seus olhos. Afinal, fiz isso por vinte anos. A diferença é que durante todo esse tempo eu quis fazer e agora não quero mais. Não tenho mais força para lutar contra o tempo. Quero deixar de pintar os cabelos, usar um vestido folgado, namorar os netos, fazer uma costurinha, acompanhar novela na televisão. Quero descansar.
E pensei muito, muito mesmo quando me acusou de egoísmo: e ele, não importava? Ele não era uma coisa, como os móveis, como a porta, que, ao deixarem de ser úteis, práticos, joguei fora sem remorso. Ele era um ser humano com direito a todas as suas fragilidades. E enquanto o via falar, indignado com minha falta de sensibilidade, meu coração apertava.
Você não vê que não me importo, disse ele, que isso não faz a menor diferença? Use seu cabelo como quiser, durma à hora que quiser, faça o que bem entender, eu não me importo porque sempre soube que você é mais velha que eu, não me esqueci que você tem setenta anos. Mas, e os vinte que passamos juntos, hein? Eles não representam nada? Você me põe pela porta afora como se fosse um empregado a quem paga os direitos trabalhistas e demite?
O cabelo já grisalho e ralo no alto da cabeça, ele agora se parecia com o homem dos meus antigos sonhos, só que aqueles sonhos não eram mais os meus.
De repente se tornara um velho. Seria assim que as outras mulheres o veriam – um velho? Então me perguntei se meu comodismo não era de uma maldade extrema. Ele tinha razão de se sentir assim: usado.
Depois me convenci: é um homem forte e não é um velho. Tem apenas cinqüenta e três anos, idade em que muitos recomeçam. Não faltam mulheres solitárias que queiram confortá-lo, e logo o saberei com outra, dando os primeiros passos num amor que poderá durar. Sempre ouvi dizer que o segundo casamento tem mais possibilidade de ser até que a morte os separe e, sendo assim, aumenta também a chance de que tenha uma mulher acompanhando-o na velhice.
Devo ser franca: não sei se esta decisão foi acertada ou não. Não sei se fiz por mim ou por ele. Nem sei se foi para poupá-lo de minha decadência ou me poupar de uma futura decepção. Estou cansada. Não tenho mais vontade, não tenho mais paciência, não quero mais ficar pensando nisso. Estou muito cansada. Além do mais, a campainha está tocando, e a empregada vai atender. Deve ser ele. Vem apanhar as duas últimas caixas que ainda ficaram por levar. Não lhe pedi a chave, mas evita usá-la. É um homem honrado. E por isso o amei. Não sei se o amo ainda, mas quis ficar aqui, contra a luz, para vê-lo a uma certa distância, a porta de vidro entre nós. Mesmo que não olhe, saberá que estou aqui.