LIVRO: Candomblé: a cidade das mulheres e dos homens capítulo 1, Editora Vento Leste, 2014
1 CONTEXTO RELIGIOSO E ALGUMAS ESPECIFICIDADES
Este estudo examina[1], numa perspectiva exploratória, ainda que se tenha chegado a algumas conclusões preliminares, a imagem que se formou a respeito dos homens em confronto com o papel e a liderança de mulheres no interior da comunidade religiosa afro-brasileira. Para tanto, considero a andança do famoso babalaô[2] Martiniano Eliseu do Bomfim o fio condutor para as análises deste livro. Sobre ele apresento notícias biográficas, a partir das quais se buscou compreender seus compromissos, declarados ou não, com a preservação da herança religiosa africana, seus equívocos e acertos diante da religião, o Candomblé que, à época, se moldava, paulatinamente, ao processo acelerado de mudanças que ocorriam em todos os setores da vida e do cotidiano das grandes cidades brasileiras como no caso da cidade do Salvador, durante grande parte século XX.
Ao longo deste trabalho elenco uma plêiade de personalidades importantes, tomadas aqui para representar, paradigmaticamente, aqueles que desempenharam relevantes papéis na estruturação e consolidação do candomblé da Bahia, em especial, os que de uma maneira ou de outra estiveram sempre ao lado das mães de santo ilustres, colaborando com elas nas difíceis tarefas administrativas das respectivas comunidades religiosas. Não será objeto de minhas preocupações analíticas o papel desempenhado pelos homens no culto à ancestralidade, o culto de Babá Egum, realizado, sobretudo, em vários lugares na Ilha de Itaparica, Bahia, agora presente em outros estados brasileiros, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, pelo fato de que o poder sacerdotal está unicamente alocado em mãos dos homens, a quem cabe administrar a liturgia invocatória dos espíritos ancestrais[3]. Embora tais comunidades não possam existir sem a efetiva participação das mulheres, elas são excluídas de qualquer possibilidade de disputa pela administração central do referido culto.
Dentre as personalidades importantes posto que responsáveis por relevantes serviços prestados à consolidação da religião afro-brasileira há de se distinguir o ilustre etnólogo Edison Carneiro, amigo de Martiniano, especialmente pelo seu envolvimento na formulação primeira de um discurso em favor da cultura negra na Bahia, sem deixar, contudo, de fazer referência à forte influência na elaboração do livro A cidade das mulheres, da americana Ruth Landes.
O Candomblé, representado por importantes lideranças, desde muito cedo, teve que negociar com setores representativos da sociedade dominante, ceder quando era inevitável, redefinir-se, quando preciso, não transigir quando se tratava de valores fundantes da estrutura religiosa. Ao lado de tantas outras lideranças que serão mencionadas ao longo deste trabalho, destaco a figura de Martiniano que ocupou papel relevante no processo de instalação e redefinição do Candomblé na Bahia. O nome dele aparece frequentemente nas notícias de jornais que circulavam na Bahia na primeira metade do século passado, principalmente em “O Estado da Bahia”, nos anos trinta, como veremos. A atuação deste líder no cenário em que se estrutura e se legitima o Candomblé como religião afro-brasileira serve de modelo para entender como foi, paulatinamente, se ajustando e acomodando homens e mulheres no interior da religião, onde sedimentaram permanentes relações amistosas para além das eventuais intrigas e diferenças de opiniões e interesses de que se tem notícia através do conhecido “fuxico de candomblé”.
Este estudo caminha, portanto, na direção de uma tentativa de avaliação do que ocorreu e ainda ocorre com relativa frequência, nas relações institucionalizadas entre homens e mulheres, a partir das construções ideais que se foram forjando na comunidade-terreiro fortemente marcado pelo princípio de senioridade iniciática, peça reguladora das relações intragrupais, tornando, de certa maneira, inadequada a leitura e compreensão do que ali ocorre pelo viés unilateral do matriarcalismo, sobretudo se considero a presença de Martiniano e tantos outros como redutores de certos equívocos interpretativos. De uma maneira geral, os antropólogos não se sentem muito à vontade quanto à aplicação do conceito taxonômico de matriarcado, por não haverem detectado – ao longo de investigações –, sociedades humanas nas quais haja o controle absoluto da mulher na condição de dirigente, como assinalam, por exemplo, M. Jacobs /B.J. Stern (1947), “a improvável hipótese que diz respeito à existência de sistemas socioeconômicos caracterizados pela preponderância feminina nas propriedades e no controle econômico, na direção governamental e na liderança cultural”. Mas, quando isto parece acontecer, a noção de matriarcalismo tende a perder o sentido semântico extensivo, sobrando-lhe, apenas, validade de uso temporal, quando da avaliação de certos condicionantes encontradiços na estruturação essencial dos chamados pequenos grupos, ou na avaliação do que acontece em determinadas famílias extensas, tais como se organizam os Candomblés da Bahia.
Os equívocos conceituais e interpretativos se acumulam ainda mais, toda vez que se confunde sub-repticiamente a perspectiva matrifocal, identificadora da valorização cultural do papel da mulher como elemento central da organização interna de cada terreiro, com a explicação do que, efetivamente, acontece no conjunto dessas comunidades, às quais em nenhuma circunstância se estruturam como um bloco monolítico. Se assim fosse, poder-se-ia teoricamente aplicar o conceito de matriarcado aos terreiros liderados por mulheres, onde a descendência é preferencialmente traçada pelo lado feminino. E, por uma questão de isonomia interpretativa, poder-se-ia, igualmente, aplicar o conceito de patriarcado àqueles dirigidos por homens, com descendência preferencialmente traçada pelo lado masculino. Na mesma ordem isonômica, o uso do conceito de matrilinearidade (descendência contada em linha materna) como pressuposto do processo de sucessão nas casas fundadas por mulheres, deve ser seguido da aplicação do conceito de patrilinearidade (descendência contada em linha paterna) para aqueles outros, cujos fundadores eram do sexo masculino. Mas, aqui não negarei, no particular, contextualidade matriarcalizante, quando se acentua a primazia das mulheres na administração de alguns bens e serviços religiosos dentro da estrutura interna dos terreiros de Candomblé. Todavia, quando assim ocorre, prevalece inabalável a autoridade religiosa, sempre fortemente sustentada pelo princípio teocrático – válido para ambos os sexos. Quando se trata de liderança feminina, é assegurada a ela a inquestionável condição de ser, nos limites da comunidade, a única interlocutora da vontade expressa pelas divindades, ratificada, quase sempre, pela prática divinatória. Esta circunstância engrandece e possibilita maior sustentabilidade ao poder sacerdotal, anuído pelo universo sagrado, para proceder livremente a divisão de cargos e tarefas no âmbito da comunidade que administra, mas sempre negociados dentro de um jogo de interesse simbólico do qual as partes envolvidas sabem inteligentemente tirar proveito. Quase sempre se trata de mulheres com larga experiência nos afazeres religiosos e, por isso mesmo, conseguem estabelecer campos setoriais onde e de onde exercem relativo poder político dentro do grupo e os homens chamados a exercerem funções na estrutura organizacional, a elas se ajustam e tornam-se parceiros e colaboradores leais da liderança feminina.
Nos terreiros conduzidos por homens existe situação idêntica àquelas casas cujas lideranças são femininas, no que tange a estruturação e composição do grupo religioso. Igualmente apoiados no poder teocrático, os pais de santo sabiamente se acercam de mulheres que já possuem reconhecido conhecimento dos chamados “fundamentos religiosos” [4] para desempenharem funções rituais pré-estabelecidas. Tais mulheres tornam-se amigas e parceiras ocupando, muitas vezes, cargos ou oiês[5] honoríficos, situação que facilita o exercício da condição de conselheiras quando são discretamente acionadas para ajudarem ao líder na tomada de importantes decisões políticas e, casos raros, a dirimir alguma dúvida circunstancial de natureza ritualística.
Como mostrarei adiante, a situação de Martiniano Eliseu do Bomfim junto a Eugênia Ana dos Santos, mãe Aninha fundadora do Axé do Opô Afonjá, em São Gonçalo do Retiro, em Salvador, Bahia, em 1910, é bem típica de um conselheiro que prestara inestimável colaboração para o soerguimento e consolidação daquele terreiro, sem jamais desejar sobrepor-se a irretorquível liderança da mãe de santo a quem ele tanto estimava.
Contudo, há de se enfatizar que para a composição do grupo religioso e preenchimento de funções estruturantes, qualquer que seja o caso, de liderança masculina ou feminina, prevalece indubitavelmente a distribuição de funções em consonância com o que já está previamente consolidado como tradição; a menos que não haja, ainda que raramente e em poucos casas candomblés, ocorrido algum tipo de reajuste mais drástico na reestruturação formal da comunidade. É o caso, por exemplo, do Babá kekerê[6], ou “pai pequeno” auxiliar direto e substituto eventual do líder religioso, antes existindo apenas a figura da Iá kekerê ou “mãe-pequena”, detentora dessas funções e prerrogativas, mesmo quando se tratava de líder masculino. O surgimento da figura do Babá kekerê, pelo que se tem notícia, ocorre em alguns terreiros jêje-nagôs administrados por pais de santo que, em princípio, estariam garantindo a possibilidade de sucessão pelo lado masculino, ainda que se saiba que nem sempre o processo sucessório se organiza, nos terreiros dirigidos por mães de santo, a partir da candidatura única da Iá kekerê.
Porém, há de se considerar que as atividades das mulheres, especialmente daquelas detentoras de altos cargos na rígida estrutura religiosa, não se restringem ao específico contexto religioso; suas competências alcançam processos relacionais internos da comunidade agindo e interagindo na condição de administradoras, até mesmo de bens e valores circulantes na economia doméstica do grupo de referência. Ai também a perspectiva matriarcalizante é bastante atenuada para possibilitar o encaminhamento de questões coletivas de maneira ajustada em consonância com a adequada utilização e distribuição desses bens e valores oriundos de mecanismos internos e externos de captação de recursos para a execução de serviços religiosos e para a sobrevivência da comunidade como um todo. Observa-se que essas mulheres são competentes executivas de complexas instituições e englobam atividades que transcendem responsabilidades intrínsecas, enquanto oficiantes de rituais ocorridos no âmbito dos terreiros. Nos dias atuais, muitas dessas tarefas são realizadas ou facilitadas por associações civis sem fins lucrativos, que cada vez mais servem de aparato legal para os terreiros, servindo-lhes de suporte institucional para práticas assistenciais e culturais.
Essas instituições formalmente constituídas são instrumentos por meio dos quais os terreiros se credenciam para apoio institucional de órgãos públicos, envolvidos com políticas afirmativas e de inclusão direcionadas à população afro-brasileira. A presença dessas associações, gerenciando parte das atividades não sagradas nos candomblés, tem com certa frequência, provocado alguns atritos entre o poder teocrático do líder religioso e o poder civil de quem as administra. Sobre o surgimento de conflitos resultantes de códigos diferenciados (código de santo X código burocrático) aplicados na administração da comunidade religiosa dos candomblés, Ivone Maggie (MAGGIE, 1975) percebeu que o conflito apareceu de imediato quando a comunidade se reuniu para discutir que tipo de ordem deveria existir no terreiro estudado.
Para o pai de santo, portanto, o terreiro deveria ser organizado internamente através de uma ‘ordem’ que chamei ‘do santo’. Enquanto para o Presidente essa organização deveria ser obtida através de uma ‘ordem’ que chamei de ‘burocrática’ A “ordem do santo” implicava na obediência à Mãe Pequena, num controle ‘mágico’ na aceitação da Demanda e o objetivo dos médiuns deveria ser o de prestar caridade, sem colocar problemas pessoais diante dessa ‘missão’ […] A “ordem burocrática” implicava o estabelecimento de um ‘estatuto’ com regras racionalmente organizadas, ou seja, um controle não mágico, e não aceitação da Demanda (MAGGIE, 1975, p. 122-123).
Mas as mulheres, assim como os homens, são igualmente capazes de superar tais problemas sem cederem às prerrogativas emanadas da liderança absoluta da comunidade, cujo suporte teocrático é determinante para alcançar as conciliações, a manutenção e a continuidade do poder religioso sobre o poder burocrático. Na década de setenta, o autor viveu pessoalmente essa experiência na qualidade de presidente de uma dessas associações e, à época, o “politicamente correto” era encaminhar as discussões na direção do que, por pressuposto, seria do agrado do pai de santo. Ao sacerdote cabia, pois, a prerrogativa de homologar ou não qualquer decisão que fosse tomada no circuito da “ordem burocrática”. No geral, as associações buscam sempre conciliar o interesse civil com aqueles mais diretamente relacionados com o mundo sagrado, sempre na perspectiva de evitar desavenças com a liderança religiosa. Elas são organizadas por parâmetros diferenciados da organização estrutural do grupo religioso, e disso decorrem limitações funcionais traçadas pela liderança religiosa que obviamente recorre a práticas teocráticas no exercício e manutenção do poder político como líder absoluto da comunidade.
Reflexão importante para avaliar relações intragrupais nos candomblés e suas motivações de gênero no desenvolvimento de papéis, pode ser encontrada no excelente trabalho de Rita Segato (1986), ao analisar as relações inclusivas nos terreiros de Xangô do Recife. Aqui se faz menção especial ao texto Inventando a natureza: família, sexo e gênero no Xangô do Recife, o qual divulga aspectos da vida dos membros de casas de culto nagô do Recife, problematizados e analisados a partir da tese de doutoramento da referida autora. Não é sem razão que a autora chama atenção para uma espécie de fragilidade dos estudos afro-brasileiros, quando abordam relações de gênero no contexto das comunidades religiosas, qual seja não considerar em profundidade desejável, a facilmente notada distinção consensual entre papéis sociais e papéis rituais no seio da denominada família de santo. E esclarece o seu acertado ponto de vista na citação que se segue onde aponta a necessidade desse entendimento como ponto de partida para avaliações do desenvolvimento de papéis no contexto religioso afro-brasileiro; papéis sociais e religiosos e seus eventuais imbricamentos nas ações reais de seus membros. Ainda que suas observações fluam do campo religioso do Xangô de Recife, são paradigmáticas para compreender relações intragrupais de outras comunidades afro-brasileiras. Inclusive, é possível sinalizar as muitas similaridades que tais casas possuem com o contexto dos candomblés da Bahia.
Finalmente, é importante ressaltar que a casa de santo é, no mesmo tempo, um centro de culto, onde vários tipos de rituais são realizados e o lócus de uma unidade social, a família de santo. Esses dois aspectos não devem ser confundidos. Além disso, é importante distinguir os papéis sociais dos papéis rituais atribuídos aos membros da família de santo (SEGATO, 1986, p. 33).
Diante do exposto, o que se pretende é uma tentativa de relativização do entendimento de tais processos, em lócus privilegiado para tramas relacionais diferenciadas, mas não diferentes do contexto maior onde se acha inserido o Candomblé. A compreensão de papéis desempenhados por homens e como eles interagem com mulheres pode possibilitar a identificação de pontos conciliatórios e consensuais, mais do que conflituosos, nas relações entre eles. Aliás, relações dependentes do desempenho de papéis específicos, ditados pela organização sócia religiosa e pelas rígidas estruturas marcadas principalmente pela noção de senioridade e de mando sacerdotal, presentes em toda a história do Candomblé. Essa leitura relativizante poderia ser facilitada caso se considere as leituras de “dentro para fora”, pela circunstância de se poder, ao comentar diferentes textos publicados sobre Candomblé, avaliar em perspectiva bastante pessoal de quem exerce práticas de culto, interagindo permanentemente com homens e mulheres em circunstâncias as mais variadas. Evidentemente que tal perspectiva tem limites teóricos, somente atenuados pelo exercício pessoal de se continuar pensando como pesquisador no momento da interpretação desses textos discursivos.
E melhor ainda, quando a interpretação pode se valer, aqui e agora, da importante participação de Edison Carneiro na vida e na obra de Ruth Landes, “A cidade das Mulheres”.
[1] Na sua versão inicial, este texto foi apresentado ao III Alaiandê Xirê – Festival de Alabês, Xicarogomas e Huntós, na Mesa Redonda: “A importância dos sacerdotes no matriarcado”, realizado em Salvador de 8 a 10 de dezembro de 2000.
[2] Na África Ocidental, na região da Nigéria e do Benim, o sacerdote da adivinhação – o responsável pela consulta oracular – é designado por vários nomes que indicam as características de sua função religiosa. Entre os termos utilizados, Babalaô e Oluô foram especialmente preservados no Brasil. Júlio BRAGA. O jogo de búzios, p. 25.
[3] Sobre Egum e seu culto na Bahia, ver, entre outros: Juana Elbein dos SANTOS. Os nagô e a morte; Júlio BRAGA. Ancestralidade afro-brasileira: o culto de babá egum.
[4] Fundamentos religiosos ou “coisa de fundamento”. Expressão amplamente utilizada quando se alude de uma maneira genérica aos segredos do candomblé, isto é, um conjunto de saberes e fazeres litúrgicos ciosamente guardados e que preservam a identidade da tradição. A eles só tem acesso os que se submeteram aos rígidos rituais de iniciação, e especialmente aqueles que estiveram mantidos por algum tempo em reclusão conventual, mesmo assim, ressalvado o princípio de senhoridade iniciática. O conhecimento de determinados rituais só é transmitido àqueles que alcançaram determinados postos na hierarquia ascensional dos candomblés da Bahia, precavendo-se para que as pessoas não se apropriem, de maneira imediata, de todos os passos do processo ritual.
[5] Oiê – título honorífico ou nome de um cargo especial exercido dentro da estrutura dos candomblés jêje-nagôs. Ao portador dá-se o nome de ajoiê ou mais frequentemente oloiê.
[6] O autor assistiu na década de oitenta do século passado, o processo de estruturação definitiva do Ilê Axé Opô Aganjú, de Lauro de Freitas, fundado e dirigido por Balbino Daniel de Paula, Obaraim, filho-de-santo de Maria Bibiana do Espírito Santo, mãe Senhora, à frente do Ilê Axé Opô Afonjá de São Gonçalo do Retiro até 1967. Pai Balbino entronizou na estrutura religiosa do seu candomblé a figura do “pai pequeno”, escolhendo para ocupar o cargo um dos seus filhos prediletos, filho de Oxossi, Odé Faromim.