Uma rua central, que encontrava lá em cima com a rua larga, do ônibus, ramificava várias outras ruelas, vilas e cortiços. Moradas cheias de gente, e história. A rua seguia incerta assim até o fim de linha. Comércio de bebidas, farmácias, algumas igrejas – três evangélicas e uma católica guardavam e protegiam o curso. No final, perto da antiga fábrica de vidro, um terreiro garantia a proteção. Nas vielas e cortiços do fim de linha muita gente morando. Além da antiga fábrica desativada, do terreiro e do ponto de ônibus, um abrigo para os motoristas de ônibus e um restaurante popular, que lhes servia refeições, fechavam o cenário. A padaria ficava mais abaixo, meio escondida pelas árvores e ladeada por uma casa abandonada. Todos diziam que tinham matado uma mulher de um padre ali. A lenda da mulher do padre corria longe e amedrontava os passantes. O prédio da associação era antigo. Fora de um dos gerentes da fábrica de vidro. Ele abandonou depois da falência da fábrica e o prédio permaneceu vazio até ser ocupado pelos moradores, que fundaram a associação, já com quase cinquenta anos. Um cenário pauperizado economicamente, com mazelas da periferia e distantes do acesso aos serviços públicos e dos centros de poder. Depois da fábrica, depois da mata que crescera e permanecera intocada é que ficava o tesouro da região.
No ponto, um bêbado, esquecido, ainda curtia o friozinho da noite anterior, provavelmente bem curtida. Friozinho que começa no pé e sobe até o pé da barriga, nas banhas e gorduras localizadas. Jogado no chão do abrigo, sem camisa e calça rota ele parecia morto. O fedor de cachaça e cerveja encruada denunciava a farra da noite, o porre ou a doença do alcoolismo. Os motoristas que aguardavam o horário para sair comentavam maldosamente: “Esse daí não conseguiu entrar em casa”, disse um, outro cobrador, arreliando, cantarolou uma marchinha de carnaval, “…eu como água de segunda a sexta feira, mas se me aborrecer eu como a semana inteira…” Ele continuava lá, adormecido nos braços de Morfeu, no coração de Oxalá “Epa Bàbá”, saudou uma senhora que aguardava a saída do ônibus.
Um arruamento, mal calçado e pouco iluminado, terminava sem terminar o arraial do cabrito. Na rua de trás ainda o prédio da associação de moradores parecia agitado: a prefeitura vinha naquela manhã derrubar algumas moradas que foram construídas na ocupação da antiga fábrica. Os moradores começavam a chegar para a reunião, alguns de longe já acusando o presidente de comparsa da prefeitura. “Ladrão! Você tá levando o que nessa boca?! No seco é que não tá saindo!”. Gritava uma antiga moradora que já sabia da fama – má fama – do presidente e de seus conchavos com os poderes públicos. “Aqui minha filha é assim, igual biscoito, vai um ladrão vem dezoito!”, disse ao entrar na sede. Um gordo barbudo, açougueiro nos finais de semana, vinha irritadíssimo, descendo a rua. “Quero ver se vai ficar por isso mesmo! Eles vão construir um condomínio no lugar, vender caro, e ainda vão botar o nome do Cabrito!”. Durante a semana ele era mecânico na cidade, e aos finais de semana trabalhava próximo ao fim de linha, via tudo, sabia de tudo. Tinha braços que pareciam coxas de fortes e gordos. Sua barba grande, era maltratada e suja. “Não tenho tempo para homem ficar me alisando em barbearia! Me deixe, viu”, redarguia sempre que alguém perguntava se estava faltando gilete. Aos poucos mais moradores iam se aproximando da sede. O salão ficava pequeno, mas todos se amontoavam e iam sentando, os mais jovens, no chão, e os demais nas cadeiras. Seu Roque era oposição ao presidente. Chegou cedo e ficou na entrada da rua. Cumprimentava a todos. Uns efusivamente, outros nem tanto, mas apertava a mão e beijava um a um. Depois entregava o folheto que tinha recolhido na cidade sobre o condomínio de luxo que pretendiam instalar depois de derrubar as moradas: “Vivendas de Vidro”, numa alusão a antiga fábrica. Ele era morador fundador do arraial do Cabrito. Era antigo, já estava também velho. Chegou por lá desbravando junto com outros o lugar, conhecia todo mundo. Foi quitandeiro, feirante, motorista de van, e agora estava aposentado. “Quebrei a perna no CIA-Aratu, em um acidente, nunca mais andei direito”, explicava. Pai de seis filhos, Seu Roque não gostava de muita brincadeira, era sério, e não se envolvia em malandragem. Seus filhos eram todos estudados, só o mais novo continuava morando por lá. E não dava trabalho. “Que tem seu Roque hoje? Falando com todo mundo, sorrindo, estranho…”, cochichou de lado d. Maristela, seguindo de uma cutucada com o cotovelo em Marinalva. “Eu sei…eu sei o que ele tá querendo…”. As duas eram fás do presidente da associação. O medo era o mesmo da razão da adoração: sem o presidente a comunidade perdia prestígio, não saía na imprensa, não era ouvida pelos vereadores nem pelo prefeito. Eram fãs da abnegação do presidente em defesa da comunidade. Mas também prisioneiras do medo pela sua saía. “Podem até tirar a luz das ruas, e o caminhão do lixo pode não entrar…” já saíram comentando, criando e espalhando notícias “plantadas”.
Enquanto a vida lá fora continuava, com seu movimento insano e fumacento, na comunidade o dia era de reunião. A decisão a ser tomada envolvia a todos e, dessa vez, todos estavam interessados. “Vamos torcer para que fique assim até o final”, iniciou a fala o presidente, saudando a plenária e propondo uma música de achegamento. “É pra que a gente tenha um dia de reflexões, de harmonia e de construção coletiva…”. “Papo furado!”, gritou no meio do salão Seu Roque. “Você não vai vender nossas terras para o empresariado!”. Prós e contras começaram a discutir ao mesmo tempo, uma falação sem fim. Puta-velha o presidente aumentou o volume da canção-oração de um conhecido compositor, cantada por Padre Miguelito, pároco da diocese, sacerdote da igreja local, e também presente à reunião. Os mais velhos iniciaram “o canto em louvor da paz”, escolhida para a ocasião de um dvd com trinta músicas. “Paz pela paz… pelas crianças…, paz pela paz, à juventude…”, e o coro foi se formando, silenciando ao mesmo tempo os beligerantes.
A música ainda entoava no salão, “paz pela paz, pro mundo novo, paz pela paz, a liberdade…”, agora cantada pela maioria, mas escutada por todos, quando uma picape preta parou na rua de cima. Logo atrás outros dois carros foram parando. Desceram seis ou sete engravatados. Uma moça e um rapaz com camisetas desceram com panfletos e cartazes. Enquanto o musculoso jovem vestia camiseta regata e calça jeans, ela com longos cabelos arrumados e olhos claros, trajava uma bermuda-short e camiseta customizada, bem no meio da barriga. Desceram e iniciaram a distribuição do material, sorrindo e saudando a todos com seus sorrisos programados, plásticos. Enquanto os homens engravatados encaminhavam-se para a sede da associação, dois outros, munidos de máquina e apetrechos fotográficos, desciam para o local da antiga fábrica.
A incorporação de grandes condomínios de alto padrão a paisagem das cidades acontecia em todas as regiões da cidade. Ruas, quadras, e até bairros inteiros eram agora alvo da especulação imobiliária e rapidamente moradias, casas, casebres, cortiços, mas também matas, florestas, rios e lagoas, davam espaço a grandes empreendimentos imobiliários. Varandas gourmet, suítes, garagens por andar, piscinas e outras comodidades eram batizadas de Palazzios, Mansiones, e Vivendas, Moradas, etc. Abrigavam em suas unidades elites econômicas e políticas, quando não as duas. Eram miragens para uma população empobrecida e sonho de consumo para outra parte melhorada. Dividia no começo, a cidade em ilhas de poder econômico, bolsões de riqueza e ostentação, margeados pela imensa miséria por todo o lado. A carência de serviços, água e moradia, trabalho e a falta constante de dinheiro fazia parte daqueles que ficavam à margem. Aquela comunidade estava prestes a vivenciar a sua própria destruição. O padre Miguelito levantou lentamente após a entrada dos empresários. “Se vem para a paz, sejam benvindos! Não precisamos de ninguém para anunciar nossa morte, apenas o senhor, o criador”. Todos olharam atônitos para um padre que durante todo o seu sacerdócio nunca se envolvera nos assuntos comunitários. As carolas mais velhas se olhavam sem arte. S. roque sorriu no canto da boca. O presidente amarelou. Em seguida levantou Professora Glória, arrumou as cadeiras e disse apontando para os convidados. “Cheguem-se, queremos ouvi-los”.
O projeto era simples. Construiriam no lugar da antiga fábrica um empreendimento de ponta, atraindo empreendimentos menores, serviços e novos moradores para a região. O empreendimento seria de alto padrão, então piscina, varanda gourmet, sala vip, cinema, e tudo o mais. Abririam uma rua por detrás do dique, permitindo o acesso de carro. Ali seria o fundo do prédio, que encontraria com o final de linha e as linhas de ônibus. A frente ficaria para a Baía. Vista linda. Haviam encaminhado, via os edis do partido da maioria, um projeto de lei tornando toda aquela área patrimônio da cidade. A ser aprovado após a conclusão do empreendimento. Estavam previstos serviços de infraestrutura hídrica, asfáltica, iluminação e até a chegada de um posto de saúde novo. Seria um sucesso! Ao final da apresentação multimídia, com direito a um filme promocional, em que os empresários apresentaram possibilidade de emprego para os moradores, o presidente, D. Marinalva e Maristela aplaudiram. Alguns tentaram seguir. Foram repreendidos com o olhar reprovador de Seu Roque. “À merda com suas migalhas!”, gritou, do jeito que veio à boca. “Vá se fuder!”, completou, provocando risos em todos. Muitos pediram a palavra, teriam que fazer inscrição. “Os senhores não terão o dia inteiro, nem ficarão caso sejam agredidos”, adiantou o presidente. “Quero lembrar a todos que quando colocaram o ponto de ônibus aqui foi um furdunço. Disseram que seríamos invadidos pelos traficantes, que tomariam nossas casas”. “Foi a mesma coisa quando construíram a escola, né pró Glória?”, lembrou d. Marinalva. O episodio da escola fora traumático. Derrubaram três casas, inclusive a de seu Pitu. O bêbado que vendeu sua casa à prefeitura a preço de banana, e torrou todo o pouco em cachaça, sua doença. Ele estava meio em pé, meio acordado, mas ouvindo a conversa do lado de fora da associação. Construíram um salão, cozinha e chamaram de escola. Mas o primário funcionava ali. De manhã para os menores de tarde os maiores. O presidente continuava com sua preleção, antes de abrir a fala para os demais. “Vocês lembram? Depois ficou tudo bem. Nossos moleques estudando aqui no bairro, tá vendo?”.
E as falas foram seguindo, com discussões e debates intensos. Lá fora os panfletos continuavam a ser distribuídos, para a alegria das crianças, que adoram papéis. Três brincavam de jogar para cima. E o do meio fazia festa. “Vamos impor condições! Devemos conversar firmemente com o prefeito”., sentenciou um morador lá da frente. Aos sons de “nada, vão construir mesmo!”, “deixa pra lá”, “Brasil..”, “hospício chamado Brasil…”, alguns moradores foram dispersando para a rua, uns para fumar, outros ganhando o caminho de casa. Mas um urro vindo de dentro os devolveu ao salão. “Parem!!!!”
No mar das vezes seu Pitu era só um bêbado. Bebia, carregava compras, dormia no ponto. Bebia de novo. Alguém dava um prato de comida. Era um doente. Um viciado em álcool, um alcoólatra. Não tinham muita noção de onde ele veio, só alguns lembravam que ele era o proprietário de uma das casas que deu lugar a escola. “Parem!!”, insistiu na porta da associação. “Burros! Vocês vão desistir do bairro?! Da nossa rua? Se eles podem acabar com a fábrica, depois destruir a fábrica, depois destruir a mata e a floresta, depois construir…. depois construir esse negócio. Porque então não construíram a escola lá? Destruíram minha casa, minha vida para abrigar a escola. Me pagaram duzentos cruzeiros para nada?!” Todos estavam em silêncio. Atônitos. Seu roque emocionado. Pediu a palavra.
O fundo da fábrica dava para a mata. Trezentos metros depois uma prainha, que poucos conheciam. Só os enamorados mais valentes e mais aventureiros tinham desfrutado de uma noite de amor na prainha, com direito a um banho ao luar. Muitas crianças daquele bairro tinham saído daquela prainha de águas paradas e de areia fina, limpa. Também tinha sido o final para Marcão, conhecido namorador da região. Dizem que um dia ele paquerou e transou com uma mulher casada. Não se sabe certo como, mas sabe-se que o marido descobriu, deu nele tanto com uma barra de ferro e depois aproveitou um pedaço de vidro esquecido e rasgou a barriga dele. Depois jogou na prainha. Lugar lindo e escondido para o bem e para o mal. Uma maravilha escondida e guardada, mas prestes a acabar. Iriam privatizar a prainha, a baía, a vista e derrubar a mata. Ponto. Os empresários já se levantavam quando Seu Roque, ainda emocionado, levantou novamente. E inqueriu os donos do capital. “O que farão com a fábrica?” “Será derrubada”. “E com a mata?” “também”, respondeu o mais grisalho. “Certo…”
Seu Roque tinha fama de homem sério e valente. Não se misturava onde não tinha razão. Se tivesse, podia sair de baixo. “Realmente Padre Miguelito, é preciso pedir paz… mas paz só não basta!”, seu roque olhou para o presidente, que suava como um porco e já encharcava a terceira toalha. “Presidente, você pode até ganhar um apartamento nesse novo condomínio para não dar trabalho para os empresários. Pode até ficar rico. Mas meu apoio não terá”, sentenciou então Seu Roque. De imediato o clima ficou azedo, com ares de enterro. Sabia que não seria fácil, e sem o apoio dele, mais difícil. Um silêncio tomou conta do salão. Os empresários saíram, em silêncio também. O som das vozes, dos múrmuros e das mugangas dos mais jovens, não se ouvia mais, quando o presidente fechou a associação. Passou altaneiro pelo fim de linha e olhou sorridente a velha fachada da antiga fábrica e seguiu, firme que seria o melhor para a comunidade. Não ganharia nada. Mas pensou que o condomínio atrairia dinheiro, investimentos e comércio para a comunidade. “Trabalho, para esses jovens”, pensou antes de seguir para casa.
Naquele mesmo ano, em finais de julho, as máquinas começaram a derrubar a fachada da antiga fábrica. Poeira, entulho e um movimento infinito de máquinas e homens. Aos poucos aparecia a mata, e mais derrubada. Os engenheiros planejavam chegar a prainha até o final de semana. Do ponto os motoristas viam a movimentação, de longe a professora Glória, se emocionava. A máquina já iniciava a última etapa da derrubada da mata, tudo com a autorização das autoridades ambientais, quando o mestre mandou que parassem. O silencio inicial deu lugar a um murmurinho candente, aos poucos os moradores se precipitaram para junto das obras. As crianças, sempre alvissareiras, começaram o furdunço. Os aplausos também se seguiam. Com a autorização do padre, Seu Roque e alguns poucos moradores, passaram pela igreja e, usando a área do pátio, o que dava para a baía, chegaram até a mata e construíram uma área murada. Era um grande quiosque com banheiro, cozinha, dispensa, área de lazer. Tudo na surdina Pitu ajudou na capina e na colocação da cerca. Já tinha duas semanas sem beber nada. Seguia de ponta a ponta do terreno da fábrica, uma parte ainda sem murar, só cercada. Outra área com mata virgem, chegava até a ponta do terreiro. Aproveitando o apoio da mãe de santo, eles preservaram uma área enorme de culto afro. Com a ajuda da professora Glória fizeram placas informando os nomes das árvores, da mata. Um lugar sem nome. Mas que eles chamaram de Chifre do Cabrito. As máquinas chegaram até o muro, não podiam ir adiante. Pararam perplexos e admirados. O terreno contíguo da igreja. Área de culto afrodescendente. Área de preservação. O presidente desceu as pressas de chinelo e com as mãos na cabeça. Não sabia o que dizer. Ao chegar abraçou Seu Roque. Tinham reinventado a resiliência, reinventado a luta. Vencido o capital.
Conto parte do livro Lugares da Cidade, Editora Arte Graf: Salvador, 2016