A urna. Abriu-a junto ao lago do parque. Lágrimas suspenderam um pó fino dentro da caixa. Olhava e não via aquele instante, o passado frio na memória acesa. Os restos dele desfaziam-se no vento antes de tocar a água. Quarenta e oito horas, meses, anos. O velório do marido enfartado. O coração saturou de sebosas emoções, explodiu, ela dizia. Por baixo das cinzas, brasa.
Menina, dezesseis anos, o quarto cor de rosa, a foto do noivo na penteadeira. Recato e castidade. Filha minha é moça direita, namorado tem que respeitar. Ele respeitava, se encolhia no desejo espaçoso de rapaz homem feito. Se espalhava nos flertes e namoros sem obrigação de casar. Ela, doce, delicadeza em voz de pêssego, no chamar de meu amor. Ele, troante voz em carinhos e presentes declarados como amor. Ela preparando o enxoval, era moça pra casar. Ele reconhecia e se esmerava em preparar o lar. Casamento é coisa séria, se Deus uniu o homem não tem que desmanchar. Marcha nupcial, vestido branco, aliança, beijo, arroz.
Um teto, duas cabeças. Similitudes, dessemelhanças, convergências para o mesmo morar. Delicadezas e carinhos e afagos. Meu amor. Meu amor. Onde está o meu pijama? Você esqueceu a toalha molhada na cama. Você sabe que eu não gosto de cebola. Não deixe os sapatos na sala. O cor de rosa escorria pela toalha. Ela exímia no perfume e no corpo fresco do banho. Ele chegava, beijava, não comentava. Não repare, meu amor, eu sou mesmo assim. Ela reparava. O cotidiano imprimia novos tons, para longe o rosa adolescente.
O choro exigia colo e o peito na manhã antes da aurora. Resoluta, dividida entre a cama e o berço, entre o sonho, o sono e a vigília. O sonho. O primeiro filho, encanto na maternidade desejada. O primeiro peito rachado, sangrando rosa na boca do menino. Ele trazia as fraldas, as mamadeiras. Ela amamentava, ninava, balançava o berço, cantava e deitava na cama na hora de levantar. Cólicas, choro. Dentes, choro. Quedas, choro. Mamãe. O peito caído, a barriga caída. Ela afundada no corpo que não era mais. Corpo de desejos. Ele e o urro de trovão no desejo convergindo para o desejo dela. Ela e o arfar de pétala no gozo sobre o gozo dele. O corpo não mais o corpo. O corpo ainda um corpo.
O choro acendia a madrugada. Fraldas, mamadeiras, berço, cantigas. O segundo filho. O mesmo ficar acordada. Diferente acalentar, amamentar. O bico do peito resistente. Uma flor láctea molhada no peito cheio. As madrugadas acesas no quarto do bebê. Ele dormia sonhos de salários altos e o carro novo e o futebol no fim de semana. Ela cochilava desejos de filhos saudáveis, casa arrumada e uma noite inteira para dormir. O choro, o sobressalto no refluxo cheio de medo. Medo de engasgar. Medo de não respirar. Medo de perder o filho. Cólicas, dentes, quedas. Consistência e segurança em cuidar. Outra vez o peito mais que caído. A barriga murcha. Estrias, flacidez. O corpo já era. Ele ampliando as rugas dela. Ele exaltando o atlético dele. Ela se desfalecendo na pele sobressalente, se diminuindo no aumentado peso. Ele se exercendo na voz de trovão sobre a voz de pêssego. Ele e ela no rosa derretido que manchava as paredes da família. Cinzas espalhavam-se sobre os bibelôs.
O velório do marido enfartado. O coração saturou de sebosas emoções, explodiu, ela dizia. Por baixo das cinzas, brasa. Os filhos doíam em faces molhadas ao lado da mãe. O coração dela descontraía de pesados anos.
A casa era uma casa para quatro. O pai, a mãe, o filho, outro filho. Os quartos eram pra dois: dois pequenos, dois maiores. Carros, bolas, bonecos, heróis. Infância no quarto dos meninos. Cama, almofadas, toalha molhada, cortina embolorada. Enfado no quarto dos pais. Fado? Se Deus uniu o homem não tem que desmanchar. Ele chegando tarde. Os meninos dormindo cedo. Ela acordada no esperar. Ele cheirando a bebida, a perfume de mulher. Ela dizia, ele reagia. O que você queria, sua gorda? Ela se encolhia nas dobras do corpo. Emagrecimento. Casamento. Dietas. Recompôs as refeições em light. Refez os lanches em diet. Elevador? Escadas. Esmerava-se por deixar os quilos longe. Ela diminuía. Busto, cintura, quadril. Ela falava das roupas folgadas. Ele não ouvia, não via, não comentava. Ele não reparava, ele era mesmo assim. Ela notava, aceitava. Mais se exigia no emagrecer. Um dia ele notaria? Aguardava.
Os filhos. Ela se alegrava com a saúde dos meninos, com a alegria deles, as brincadeiras. Felicidade única, era mãe de seus filhos. Preparava festinhas de aniversário, ía ao pediatra, levava para a escola, ensinava a lição. Educação, crenças, valores. Respeito, meu filho, pelas pessoas. Que brinquedo é esse? Onde você pegou? Devolva! Não se pega no alheio. Por que você agrediu a coleguinha? Em mulher não se bate nem com flor. O pai, voz de trovão e medo. Medo de o pai brigar. Medo de apanhar. Medo de ficar de castigo. O pai trazendo brinquedos. O pai trazendo livros. O pai trazendo camisinha. Filho meu é macho desde cedo. Cadê as meninas da sua escola? E as do prédio? Amizade da infância? Homem não tem amizade com mulher. Ela se retorcia. Ele dizia como era e como seria. Os filhos, as garotas, a virilidade rija. Ela semidizia. Respeito, meu filho, tudo com respeito.
Ele chegando tarde com rosto de riso. Ela esperando com rosto de raiva. A comida fria na mesa. O corpo frio na cama. Ele para um lado, ela para outro. A vizinha inquietava. Como podia? Ele é bonito, você também. Ele não quer? Dê pra outro. Como fazia? Impelia-se em aprender os truques da amiga. Tome banho, perfume-se e deite nua. Só o lençol. Nua? Não conseguia. Ela na cama, calcinha e lençol. A pele e a pele no virar-se dele. O frescor de banho e o calor de brasa. Ele lembrando do corpo dela, do cheiro dela. Ele retornando para ela? Ela indo para ele. Ela espanava as cinzas grudadas na pele, na vida. Um dia, dois, alguns. Manhãs em riso e café quente. Ela penteava-se, perfumava-se e vestia-se para o marido recém chegado. Beijos e jantas e apalpadelas na bunda sob o vestido. O sucesso da receita impulsionava combinações. Camisola, perfume, velas e aromas para o quarto de prazeres. Ela derramava-se em gozo sobre o gozo dele em urro de trovão. A vizinha indicava caminhos. Faça isso, faça aquilo, faça assim. Ela conseguiria? Filha minha é moça direita. Ele gostava e gozava e dizia como queria. Ela tentava. O desejo dela caminhava ao encontro da virilidade em correnteza dele. Descompasso. Ela se recolhia. Ele se exercia em riste. Eles em dessintonia. Ele reclamava, acusava, ameaçava. Ela chorava. Fui moça pra casar, não aprendi a trepar.
Outra vez as noites à espera. Os filhos chegando tarde das festas. O marido chegando tarde da vida. Outra vez o perfume de mulher, o álcool na boca. Ela dizia, ele desdizia. A marca de batom, o telefone no bolso da calça. Comprovações. A cama, ninho de raiva. Ela para um lado. Ele para outro. Ela se revolvia. Com outro homem como seria? Conseguiria? Repetência no recolher-se? Quem ensinaria? Ela até queria. Filha minha é moça direita. Se Deus uniu o homem não tem que desmanchar. Meses, anos.
O velório do marido enfartado. O coração saturou de sebosas emoções, explodiu, ela dizia. Por baixo das cinzas, brasa. Os filhos doíam em faces molhadas ao lado da mãe. O coração dela descontraía de pesados anos. Saudações e cumprimentos dos amigos dele, da vizinha dela. Em quarenta e oito horas as cinzas estariam disponíveis para a família depositá-las onde desejasse. Um dia. Ela cuidando de doar tudo o que era dele. Outro dia. Ela com o olhar vivo, mudando os móveis de lugar. A urna. Abriu-a junto ao lago do parque. Lágrimas suspenderam um pó fino dentro da caixa. Último encontro. Girou a mão, deixou que os restos se desfizessem no vento. Peixes testemunhavam o instante. Alguma poeira sobrou na caixa. Ela soprou, definitivamente, as últimas cinzas.
Lílian Almeida (Publicado na Revista Raimundo, Edição Raimunda – Inverno/Primavera 2016 – http://www.revistaraimundo.com.br/7/la_c.php)