Fiz um gesto, sentada em um banco de madeira pintado de vermelho. O assento era uma grande e assustadora joaninha que, certamente, lhe acompanhava desde a infância, já que, quando me deu vida em A verdade angustiada de Eva, estava acompanhada do mesmo tamborete em que me apoiava neste exato momento.
Repeti novamente o gesto, abaixando-me para uma bacia que coloquei próximo à cabeceira da cama de solteiro, no seu quarto de dormir, molhando, na água fria, a pequena fralda que achei na gaveta de coisas antigas de sua mãe. Não duvido que ela tenha guardado, por mais de quatro décadas, a sua fralda de bebê – e que agora servia para me ajudar na difícil tarefa de baixar a febre persistente que lhe acometia, de forma grave, há quase uma semana.
Seu corpo quase cadavérico e a ferida que amargava sua vaidade, um sarcoma considerável que nasceu em seu queixo e expandia-se para encontrar o lábio inferior, davam-me um certo temor ao nosso momento, de ter que subir os doze degraus que separavam a sala do seu quarto pequeno, mas com uma singular vista para o jardim. Talvez, essa sim, seja sua grande obra, o jardim que você resolvera plantar, há mais ou menos dois anos, segundo me confessou. Tudo isso se deu no momento que lhe apareceram algumas poucas feridas pelo corpo, numa longa viagem pelo velho continente, e lhe diagnosticaram como portador da AIDS. Eram anos sombrios, recordo. Caía o muro de Berlim, o Brasil elegeu seu primeiro presidente, através do voto direto e popular, depois dos anos de chumbo, para, logo depois, destituí-lo do cargo acusado de corrupção. Tudo no mesmo ano em que teve o anúncio de morte.
Foram tantas as histórias que você me contou durante esse tempo que ainda tento arrumar as ideias de uma forma lógica e sutil, até para que, quando chegar a hora, possa escrever sua história, digna de uma grande tragédia contemporânea. Imaginar que eu fui sua grande personagem, literalmente, depois de anos de reclusão, logo após o período em que foi jogado nos porões do DOPS, ainda que por uma mísera noite. Mas não podemos negar, deram um tom trágico à sua vida, em especial à sua literatura. Espanta-me o fato de você nunca ter sido nomeado para Academia e nem mesmo ter sido cotado para o Nobel de Literatura. Em sua vida pregressa, observo, há todos os ingredientes necessários para uma grande trajetória, conforme os critérios que eles observam comumente.
Talvez seja por sua condição humana, aquela que antecedeu toda sua formação e sofrimento, quando preferia as bonecas aos carrinhos, as meninas dóceis aos meninos hostis, tirando, claro, o desejo recolhido de beijar as bocas viris na hora dos encontros inevitáveis nos quais teria que beijar as meninas. Acho que levaram em consideração tudo isso para que, nesse exato momento, estivesse caído e esquecido em cima dessa cama, nesse quarto pequeno, destituído de sua glória como a que experimentamos nas sucessivas montagens de A verdade no início dos anos oitenta, nas grandes cidades do país. Lembro-me de ter sido “encarnada” por belos homens, mais bonitos que talentosos, reconheço. Havia um ou outro com real talento, mas confesso que não desprezei os outros, gostava de me sentir dentro deles, despertando o feminino em meio à inescrupulosa virilidade que eles fingiam praticar a si mesmos. Claro que havia aqueles em que era inevitável me reconhecerem como seu alter ego e que não faziam muito esforço no rebolado e nos trejeitos. Eram “afetadas” até a alma, como eu. Mas, a mais mórbida e real verdade é que, quando te olho gemendo neste instante sobre a cama, e a luz do sol entra pela janela e lhe envolve num suplício santo, vejo que, apesar de tudo, da distância que havia entre criatura e criador – tirando o surpreendente banquinho-joaninha – nossos medos estavam comungados no mesmo horror e surpresa com que encaramos cada momento da vida.
Seu suor encharcou o travesseiro, a febre começa a ceder. Vou a qualquer outro canto da casa, trago algumas almofadas indianas, subo os doze degraus, coloco-as por trás do travesseiro embebido em suor, para ver se consegue mais conforto. Seus olhos permanecem semicerrados, seu corpo agora tão frágil, comprido e de uma compleição juvenil cede facilmente à minha força. Meus braços fortes, masculinos, serviam a algo além de bater na polícia e forçar minha fuga por entre os becos e ladeiras da cidade antiga como havia tantos outros encenados em A verdade. Meu corpo guardava os mistérios e desígnios de meu criador.
Durante esses meses, confesso que sorri quando, numa busca em preencher o tempo que se esvaía, encontrei um desenho meu junto aos seus escritos. Cabelos compridos na altura dos ombros, unhas grandes e vermelhas, saltos altos, corpo esguio e um pênis extraordinariamente grande no meio de minhas pernas. Espantei-me e nunca entendi o significado daquilo, mas tudo bem, criei o meu próprio: haveria de ser a marca da minha naturalidade, de forma tão grande e obstinada, para causar um espanto e constrangimento maior à sociedade do que se fosse puro e simplesmente um homem travestido de mulher dando voz à sua consciência interior.
Você desperta devagar e olha meu rosto, tentando me reconhecer. Eu desejo, insistentemente, que melhores da febre, mas que permaneça algum tempo ainda na cama, por que tenho certeza de que verei, em seu rosto, uma solitária decepção quando, ao mirar da janela, perceber o jardim morto. Juro que tentei, mas existe coisa mais horripilante que sujar minhas unhas de terra? O trabalho que tenho para pintar com esmaltes toda semana, e o esforço para que permaneçam reluzentes e vermelhas – se algum intelectual me perguntar juro que direi que existe uma subversão comunista nesse singelo ato – não é à toa. Ou bem cuido de minha vaidade e isso, sinto muito lhe dizer, foi criação sua, ou das suas plantas e flores, que, no seu exílio voluntário, viraram uma triste e bela obsessão.
Só apareci por aqui e assumi a tarefa de te cuidar quando já não tinha mais forças para levantar. O jardim, nessa época, estava um primor, tão bonito. De verdade. Não era tão grande. Tinha uns seis por seis metros, mas você tinha selecionado espécies e ordenado as suas posições no quadrado como se arruma as peças num tabuleiro de xadrez. Acho o tabuleiro uma linda peça de decoração se os peões estiverem na comissão de frente e torres, cavalos, bispos, rei e rainha em seus respectivos lugares. Existia uma delicada harmonia de plantas, flores e frutos tropicais não comestíveis em seu jardim. Até minha eminente e controversa liberdade sucumbiu à sua grande obra, e me fez, a partir de então, gostar mais dos tabuleiros de xadrez arrumados de que dos desarrumados. Por isso neguei uma vez quando se restabelecia de uma crise viral e me convidou para uma partida. Não contei naquele instante, mas existia uma razão nova e nascida de sua personagem e que você não conhecia até então. Na novela A verdade, há tênues traços desse meu novo sentimento, antes pouco explorado. Você não recorda. Porque, como dizem muitos dos que escrevem, a personagem ganha vida própria à medida que se escreve. Existem traços de minha personalidade que se desenvolverão e você, certamente, não os conhecerá na mesma medida que seus leitores.
O seu rosto de espanto sucumbirá mais ao meu desleixo, com seu jardim-“grande”-obra, do que com a ferida aberta em seu queixo se expandindo para sua boca seca. Seu nariz grande e anguloso, seus olhos ainda fechados, tudo isso já estava se tornando uma inevitável rotina para mim. E você sabe, meu caro, que meu forte não é a rotina, mas algo me diz que sua hora se aproxima e que, em breve, retornarei aos braços de meus admiradores.
Levanto e desço os doze degraus para despejar a bacia de água e álcool que havia levado para cima na tentativa de fazer com que sua febre cedesse. A casa está vazia, e as coisas encontram-se numa certa ordem, não por mim, mas pela diarista que vem três vezes na semana. Eu não arrumo muita coisa, mas também não desarrumo e tento manter sua insensata organização.
Vou para fora da casa e me aproximo do jardim. Não vejo tanta coisa, só o rastro da minha presumível destruição, porque já é noite. As estrelas solitárias no céu de uma amplidão sem nuvens me remontam à adormecida vontade de ser Carmem Miranda, ainda que uma Carmem com “pau e bagos” entre as pernas.
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Passo a mão pela face. Além do suor que escorre e da chaga que cresce em meu queixo, tenho uma medida impressão de que, no lugar de um rosto humano, há uma face de caveira. Além da minha debilidade física, a mente já não responde aos meus estímulos de forma adequada, tanto é que, desde que me encerrei para morrer neste quarto, estou acompanhado de minha grande personagem: Eva.
Se ela tem sido boa ou não, não é possível dizer. Sei sobre as flores mortas. Ela pensa que não, mas sei. Porém é verdade, angustiante verdade por sinal, que ela tem se comportado da forma mais próxima possível aos anjos cristãos que me perseguiam na infância, só que com muito mais batom, sombra e rouge que os anjos escandalizados aos pés de Nossa Senhora Aparecida.
Eva nasceu de verdade na minha juventude, quando tinha frescos e literais vinte anos, e descobria o lado B da vida nos clubes e bares noturnos do centro antigo da cidade, fugindo de meus pais, encontrando meus pares. A juventude passava pela experimentação da liberdade e ali estavam muitas das transposições que almejava alcançar: drogas, bebidas e muitos homens. Não necessariamente nessa ordem, claro. Uma fonte que, por incrível que pareça, era conflituosa à minha veia poética ao som gutural de meus escritos. Enquanto Tomás Antônio Gonzaga, quase dois séculos antes e com a minha idade, descrevia sua romântica Marília de Dirceu, a mim restou o protótipo de “mulher” surgida de minha condição masculina e a quem renomeava de Eva, como havia feito Adão, só que agora na segunda metade do século vinte e sem saber, ao menos, qual o tempo de Adão.
Escrevia a personagem em minha mente, num cotidiano de orgia, contestação ou liberdade ou, pelo menos, novas prisões. Meus primeiros contos receberam elogiosos comentários da crítica do principal jornal escrito da cidade, que me estimulou a transgredir com a proposta de Eva porque logo começava a perseguição da polícia secreta, ao mesmo tempo em que recebia honrosos elogios de outros veículos de comunicação. A minha alma subversiva caíra em desgraça, para, logo depois, ser glorificada inescrupulosamente e redimida pelo próprio e dito “sentido libertário” de minha obra, segundo tais críticos.
O tempo da prisão foi um tempo de expiação, o que não é nenhuma novidade. Sabíamos o que se passava por lá e até por isso tentei, junto à juventude comunista, repetir a passeata dos cem mil ao norte do Rio. Que não fossem os cem, pelo menos cinquenta ou, ao menos vinte, nem assim consegui reunir algo expressivo em que fosse possível e visível a militância. Tudo bem. Uma coisa gera outra e, se não fosse a prisão, não seria redimido. Sem redenção, a novela A verdade angustiada de Eva não teria tido a repercussão que teve pelos palcos de todo o país. Uma pequena revolução, porque havia ali uma protagonista homem-mulher, um travesti em pleno confronto com a ditadura. E depois de Eva, eu conheci mais homens que “frutos proibidos” que a serpente original pudesse ter apresentado à personagem bíblica. Os homens valeram-me mais que o único fruto proibido. E na minha tarefa de experimentação, sucumbi à doença e vi muitos morrerem. A peste se disseminara como um castigo bíblico. Muitos tombaram. Eu também tombarei. Mas nenhuma dessas coisas me convenceu até hoje. Penso que pode ser uma resposta do imperialismo americano ao espírito revolucionário que nós, gays, nos imprimimos ao mundo, sem que eles tivessem meios de controlar.
“É uma questão de instinto”, disse Eva à polícia secreta, quando desarmada de sua consciência política e afetada, definitivamente, por ter-lhe retirado a maquiagem e o livro vermelho, uma espécie de diário de Sabrina. Devolvi a Eva o estupro que sofri na prisão. Embora não tenha sido o estupro o mais marcante, a violência física não foi capaz de tolher de mim o que tinha de mais nobre. Talvez o mais grave tenha sido perder aquelas horas nas mãos de homens sádicos e nem um pouco adônicos. Fui seviciado com um cassetete – e quantos homens e mulheres também não o foram? Machucou, mas não foi determinante. Era uma experiência tenebrosa, e, na adaptação da novela aos palcos, inseri, no seu martírio e na sua “ditadura”, o estupro que, por vergonha, nunca comentei com ninguém.
Mas o que seria de mim se não fosse destituído de minha própria humanidade e vida? A repercussão que minha curta prisão me devolveu foi interessante e maior, certamente. “Todo escritor persegue sua glória”, ouvi uma vez. E seguido ao estupro de meu corpo e alma pelos militares e pela Arena, sem que ao menos tivesse uma filiação partidária, veio a glória e a redenção do escritor mediano e bem acolhido pelo público e crítica. Vou revelar que usei de minha beleza e de meus “instintos” sexuais para deitar com um crítico bem mais velho do que meus anos juvenis, a fim de que ele pudesse ler meu livro. Se foi bom de verdade, não sei. A boa crítica se espalhou, e meu primeiro livro de contos teve sua primeira edição esgotada.
É claro que eram contos comportados, alguns tratavam sutilmente de problemas sociais, como o conto agrário e o conto sobre a favela. E o gozo do reconhecimento, sério ou não, não importa, foi muito melhor do que o gozo que tive com um comissário de bordo de nome shakespeariano em um banheiro do aeroporto internacional que me conduzia , pela primeira vez, a Paris. É a glória, abominável e retumbante glória, que me levava à cidade-luz a convite da Sorbonne para falar sobre a nova literatura latino-americana e que me garantia, acredito, uma “confortável” vida até a morte. Se bem que duvido do sentido de confortável quando se vive os dias que vivo.
Existia até um prenúncio de que a França assistiria à A verdade, embora até hoje não tenha ocorrido uma montagem. Acredito, obstinadamente, que, com o meu desaparecimento num jardim de flores, certamente a montagem chegará a Paris. Mais um passo rumo à eternidade.
Mas Paris trouxe um toque melancólico de dor e desilusão. Meus excessos no Marais trouxeram, junto à debilidade do corpo, uma ferida na altura do nariz. Outras pequenas surgiram logo após. Fui sentenciado de forma mais dura do que quando me sequestraram e, no meio de sua diversão, me penetraram com um longo e negro cassetete. Acredito que, nesse instante de violência institucional, tenha sido contaminado pelo vírus mortífero. Foi a única vez que senti dor e ódio. Das outras vezes em que fui penetrado e penetrei, me dediquei a atos corriqueiros e primitivos de amor. Não poderia, assim, ter sido de alguma dessas vezes. É verdade que se passaram dezessete anos desde a minha curta prisão. E que depois transei e me apaixonei desenfreadamente, muito mais que antes.
Engraçado é que os amigos, os amores e os atores desapareceram com a minha glória e com o estigma de minha praga. O sentimento de fim dos tempos está no ar e ronda as casas, os guetos e as vidas. Ronda os sentimentos secretos dos homens, devasta famílias.
De forma mágica, voltei ao meu país para não mais escrever. Era preciso dar aos livros os contos, as novelas, as cartas e a um único romance a violência de meus dias. O alcance desse pequeno conjunto de obras seria muito maior.
Daí o jardim, a escolha por flores, tudo para enternecer e romancear o clímax dessa história. Restou-me apenas a solidão dos dias em que não pensei vivenciar. E a companhia de Valmir ou Eva, a minha personagem feminina, aprisionada num corpo abstratamente masculino, que se transformou num espetáculo de sucesso por todo o país – e confesso que, em meu afã megalômano, imaginei quiçá ver a novela transformada num daqueles musicais bregas da Broadway.
Viajo agora percorrendo com meu olhar obsceno, já sem a perspicácia de outrora, o teto infiltrado do meu quarto de dormir. Imagino-me rodeado de crianças compassivas num tapete mágico e ter essa imagem eternizada para a posteridade. Tapete e crianças e as imagens oníricas da vida, tudo aquilo, talvez, eu não tenha conseguido transpor para minha escrita. A poesia mágica dos dias e a inspiração de flores sobre as quais poderia descrever em mil noites, mas que jamais seriam descritas como realmente são. Essa inquietante verdade me fazia fenecer de forma irremediavelmente humana.
Meu corpo havia se deteriorado nos últimos meses. Peso no momento tanto quanto uma gazela, e meu cabelo se transformou numa fina penugem a cobrir os restos de ideia que tenho. Já não consigo controlar minhas necessidades fisiológicas, e Eva tem sido resignada nesses momentos: tenho certeza de que, apesar de seu olhar e rosto enojados, ela não se preocupa com as unhas.
Meus olhos, em contraponto à inércia de meu corpo, percorriam o quarto. Estava quase tudo do mesmo jeito e no mesmo lugar. Uma poeira fina cobria o canto da cama. Meus ossos trincavam de regozijo por tudo que vivia. Luzes e sombras se revezavam na medida em que o sol se recobria de véus – o que eu podia ver de onde estava. O silêncio e o som do vento foram quebrados pela voz a que me recuso chamar de “canto de Eva”. Era uma imitação grosseira de uma canção de Carmem Miranda, sem nenhuma harmonia ou entonação que a fizesse ser lembrada, se não fosse eu o autor daquela afixação desmedida de Eva pela pequena notável. O meu estado mental havia criado aquela situação de torpor com que compreendemos a vida. Poderia Eva, assim como o demônio a acompanhar Adrian Leverkühn no Doutor Fausto, de Thomas Mann, ser fruto da minha debilidade física e mental como o adônico estudante de educação física que deitou comigo algumas vezes, mas de quem sequer guardei qualquer lembrança, como também não guardei de tantos outros? É fato que há uma dúvida: se o “Adônis”, garoto mais jovem a me provocar incessantemente, encostando sua cabeça de cabelos longos e louros em meu rosto, exigindo uma atenção de mim aparentemente desnecessária, realmente existiu. Olhando a estabanada Eva na minha particular peregrinação pessoal, fica fácil entender o porquê. Sobre Eva, escrevi, fiz uma composição multifacetada, e ela emergiu desesperada, sentando no vaso, se recusando a urinar em pé, carregando bolsa com maquiagens exageradas e unhas vermelhas como havia delineado em mente. Sobre meu garoto “adônico,” nunca escrevi.
Até que ela apareceu pela porta, tempos depois, com um arremedo de hibiscos seco e morto em seu cabelo. Quase Gabriela pueril e frágil, não fosse toda a carga de maldade e maus tratos que minha admirável Eva carregava em sua história. Sorriu de forma cansada e atrevida para mim. Era um desabafo pelo fardo que me tornei naqueles últimos dias.
——
Os dois entreolharam-se de forma complacente, numa irremediável tolerância, num significativo cansaço por todos os últimos dias vividos, e pela história que carregavam. Havia, naquele momento, uma brisa leve e profunda a entrar pela janela do quarto.
-Tem alguma coisa para comer? Acho que a febre me deixou com fome.
-A diarista fez uma canja com a galinha gorda e marrom que estava em seu quintal…
-Não, Deus! Alcione?!?!
-Já estava velha, tão “penuda”, tinha penas até nos pés.
-Era minha galinha de raça…
-Você está partindo… Quem cuidaria dela depois? Eu? Outra tortura? Já não bastam as que passei?
– Quanto tempo tenho?
– Infelizmente, não sei. Gostaria de saber para poder planejar o que vou fazer quando sair daqui, mas… vejo que, pelo seu estado, e pela febre que não cessa, não demora muito.
-Tinha tantos planos, Eva… Tantos projetos para realizar. Não pude usufruir nem de minha glória.
-Sua glória resistirá. Está mais na beleza do seu estado, do que no que você realmente realizou.
-E o que acontecerá comigo?
Eva olhou de forma definitiva para o teto – Talvez os anjos saibam.
-Que anjos? Sabes que não acredito em Deus, em anjos… Não sou cristão, nem judeu.
-Nem eu. Mas você faz perguntas muito difíceis – suspirou de forma impaciente, segurando a borda de uma manta de fuxico caída sobre a poltrona no canto do quarto.
Assuou o nariz no lençol, sob o olhar de Eva, que contraiu o rosto numa desaprovação e cansaço visíveis – Estou com fome…
-Vou esquentar sua canja – Eva retirou do cabelo o hibisco semimorto e deixou-o repousado sobre a cômoda. Virou-se em direção à escada.
-Estou com medo.
-Agora? Quando o evidente e o inevitável se aproximam? Você não temeu nem o desconhecido. Agora recua diante do óbvio? Não – acenou com a mão desdenhando do momento – sem dramas e sentimentalismo. Aqui não somos personagens, estamos despidos desse véu trágico.
Uma lágrima rolou rápida na face magra do quase cadáver. Eva deu as costas. Voltou novamente. Aproximou-se da cama. Puxou o banquinho-joaninha para perto de si e sentou-se. Deitou sua mão carregada de unhas carmim-cor-de-sangue na face de seu escritor. Afastou a lágrima da pele desidratada.
-Te garanto que desaparecer talvez não seja o pior. Acredito que já passou por dores maiores na vida. Sobre tudo o que conversamos, o que descobri é o que implicitamente me acompanha e é parte de sua experiência de vida.
Olharam-se. Tentaram sorrir. Não conseguiram.
-Vou pegar sua canja…
-Nem pensar – cambaleou e deixou a cabeça pender para o lado – não vou conseguir comer Alcione.
Eva suspirou, desdenhando as dificuldades impostas pelos sentimentos do homem.
-Existe um rapaz que me acompanhou por dois anos quando estava no exílio. Um latino-americano como eu. Talvez minha grande paixão. Gostaria de vê-lo. Mas não gostaria que ele me visse.
-Difícil, não?
-Sinto falta da pele dele. Entre a trama do seu tecido e a derme havia perfume e poesia que nunca mais consegui encontrar em ninguém. Ele tinha tanto medo de ser descoberto pela família. Era oprimido pelo meio. Não tinha a liberdade que conquistamos e impomos, Eva. – pigarreou um pouco, levantando os olhos depois. – Ele nunca disse ter me amado, mas de todos, desde os que disseram e os que derramaram lastimosas lágrimas, ele foi o único que acredito ter me amado.
Divagações complexas.
-Se pudesse fazer um último pedido, gostaria de vê-lo, mas não queria que me visse assim, destruído e destituído de tudo que fui. Queria sentir suas mãos tocando em minhas nádegas, seus dedos percorrendo e encontrando meu íntimo, seu sorriso falho desdenhando de minha paixão embriagada de ciúmes. Seu pênis perfeito, seus pelos aparados, seu corpo magro e lento. O cheiro do seu sêmen, pelo corpo e pelo quarto, pelas horas que se seguiam após sua partida. Mesmo quando o traía e deitava-me com outros, por vezes na mesma cama, buscava reinventar, inescrupulosamente, a atmosfera do nosso amor febril e impoluto, quase sempre sem sucesso. Quase sempre, porque, em minha louca obsessão, sentia uma profunda solidão, de tudo, e ele vagava sem destino pela areia que circundava minha casa. Via-o em todo lugar – começou a tossir de forma vertiginosa. Eva aproximou-se esperando seu derradeiro suspiro.
-Ainda não é hora, Eva.
-Não sei sobre o que fala.
-Sei que seu amor é diferente, Eva. Seu amor conheceu um sentido mais amplo que o meu. Seu amor era libertário. O meu era restrito e apoiado numa libertinagem desenfreada. Era bem diferente.
A luz da tarde foi quebrando. Uma folha seca invadiu o recinto. Caiu sobre a cama. Eva foi e estendeu a mão para retirá-la. Sentiu o falo de seu escritor pulsando. Embora seus olhos agora estivessem fechados, percebia a verdade daquela confissão. A simples lembrança daquele amor do passado fez seu coração e sexo pulsarem de forma diferente, irrigado de sangue e de vida, em meio à febre, à tosse e à debilidade de seu frágil corpo.
Desistiu de retirar a folha. Ele adormeceu. Envolveu-o novamente no lençol branco. Imaginou-se com os olhos voltados para o céu, segurando seu criador-moribundo, envolto no lençol branco, como a Pietá, de Michelangelo. Fechou a janela. Parou em frente ao espelho, amarrou os cabelos para trás com um lenço de seda que trazia em seu bolso. Esticou um pouco os olhos com as unhas vermelhas. Suspirou descontente com o resultado. Escondeu o “pomo de Adão”, puxando a gola da camisa para cima. Saiu pela escada em direção ao jardim, cantarolando a absurda Ave-Maria, de Schubert. Já não havia mais o que fazer.
Sentou-se no beiral da porta olhando o jardim morto. Passou a escrever o próximo capítulo, antes de subir novamente os doze degraus. Eram os diálogos que travariam, os gestos que fariam as lágrimas que, certamente, derramariam. Escreveu, com toda dor e ingratidão, a vida do seu insano criador.