Livro: Fuxico de candomblé, capitulo 1, EDUEFS, 1998, p. 15-29
FUXICO DE CANDOMBLÉ[1]
Neste sentido o povo-de-santo usa o termo para ironizar um “instituição” com que todo ele se compraz. Os fuxicos funcionam muita vez como outros mecanismos para diminuir ou resolver tensões, apesar de agravos, dando oportunidade a que os atingidos passam, por sua vez, e com o mesmo recurso, responder indiretamente às ofensas sem atritos ostensivos.
Vivaldo da Costa Lima
A família-de-santo nos candomblés jeje-nagôs da Bahia
Um jovem pai de santo da Bahia, frequentador assíduo de festas públicas em vários terreiros de candomblé, onde sempre se atualiza e atualiza os outros com quase tudo que ocorre no misterioso mundo imprevisível da comunidade religiosa afro-brasileira, um dia perguntado sobre que artimanha se prevalecia para saber de tantos fuxicos de candomblé, me disse: “primeiro, candomblé é minha vida e preciso saber de tudo que se passa comigo, depois basta meter o dedo na garganta do ‘indaka de Kafurungonga’ e ele dirá que tudo que sabe e tudo o que não sabe, mas que ele próprio inventou ou reinventou.”
Deixando de lado as possíveis interpretações etnolinguísticas, a expressão, “indaka de kafurungonga”, é conhecida e utilizada, com certa frequência, principalmente por pessoas mais jovens dos candomblés, para falar do “língua-de-trapos”, do que “fala pelos cotovelos”, do fofoqueiro, do mexeriqueiro, do linguarudo, do que “vê e fala do que viu e do que não viu”, do “indaka de afofô”, do “baba ejó” (o pai do fuxixo). Ela está muito próxima da frase elaborada em kikongo, “indaka kalunga kifurungoma”, segundo Tata Raimundo, professor dessa língua no Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA. De acordo com este professor, a expressão é usada para falar daquele “que não tem papo na língua”, que “fala como a nega do leite”. A tradução livre, porém, mais próxima do ponto de vista etimológico, seria: a língua é tão grande que pode furar qualquer atabaque. Devo acrescentar, para que não se perca a precisão necessária do trabalho de campo, que o jovem pai de santo citado é, ele próprio, tido e havido por seus pares como excepcional “indaka de kafurungonga”, quão eficiente é na divulgação das coisas que acontecem na comunidade religiosa, envolvendo pessoas, atitudes e rituais.
E não fosse essa qualidade de “lingua-de-metro”, língua de metralha, do jovem sacerdote, talvez eu não estivesse aqui, usando de sua titulação como subtítulo a um texto que pretende ser uma modesta contribuição ao conhecimento de mecanismos acionados pela comunidade-terreiro para fazer circular notícias que dificilmente poderiam ser transmitidas através de canais normais da aprendizagem sistemática a que estão submetidos os iniciados dos cultos afro-brasileiros. Foi ele quem deu todas as explicações do uso e significado da expressão, inclusive uma, talvez a mais fantasiosa, de que ela faz alusão à “língua grande” de um pai de santo do interior baiano, São Sebastião do Passé, que falava de tudo e de todos da maneira mais indiscreta que se possa imaginar.
Mas este texto, na sua primeira formulação, eu diria, pretende igualmente alimentar a discussão sobre o papel da etnologia quando se confronta com detalhes da realidade que podem passar desapercebidos de uma etnografia sisuda, mas que podem, uma vez identificados, servir como indicadores valiosos para a apreensão e compreensão da realidade maior que se pretende alcançar no discurso etnológico, ou na leitura etnológica, melhor dizendo, sem que para isso o pesquisador se veja forçado a se transmudar em objeto formal de si mesmo, no assanhamento ridículo de se pretender nativo.
François Laplantine ensina, com pertinência pedagógica, que o etnólogo não precisa converter-se em objeto formal dele próprio para realizar uma excelente etnologia. Isso não nega e nem exclui a possibilidade de engajamento político do etnólogo em defesa dos interesses da cultura que estuda. Mas são coisas distintas: a busca da cientificidade do projeto de avaliação e análise e o eventual envolvimento emocional que quase sempre ocorre em decorrência das relações que se constroem entre pesquisador e objeto de investigação. “Auxiliar uma determinada cultura na explicitação para ela mesma de sua própria diferença é uma coisa; organizar política, econômica, e socialmente a evolução dessa diferença é outra coisa” (LAPLATINE, 1987, p. 30).
Mas essa seria uma discussão secundária, já que o etnólogo se vê confrontando com uma dupla urgência à qual tem a obrigação de responder e que se encaixa perfeitamente, e essa é a nossa perspectiva, na percepção de atualizar o saber no mundo religioso afro-brasileiro.
O primeiro confronto se situa no plano da “urgência de preservação dos patrimônios culturais locais ameaçados”, e o segundo se localiza na “urgência de análise das mutações cultuais impostas pelo desenvolvimento extremamente rápido de todas as sociedades contemporâneas, que não são mais sociedades tradicionais” (LAPLATINE, 1987, p. 30). Essa noção de dupla urgência etnológica deve acompanhar as preocupações interpretativas de quantos se aventuram na tarefa nem sempre fácil de compreensão e análise do mundo religioso afro-brasileiro.
No primeiro caso, encontra-se a dificuldade de registro da tradição, enquanto saber cristalizado e resistente às mudanças, uma vez que os portadores deste saber e do savoir-faire – não basta saber, executar é preciso –, por razões de toda natureza, até mesmo pelos impedimentos legais e legitimados pela nação circunstante do segredo, são quase sempre reticentes, pouco loquazes.
Atenção deve ser dada àqueles que não falam simplesmente porque não sabem ou imaginam saber menos do que o pesquisador imagina. Mas esses, quando se dignam em falar, são fantásticos porque colocam em funcionamento uma excepcional capacidade criativa e, a partir de um pequeno fragmento da tradição, são capazes de elaborar todo um discurso sistemático acerca da religião afro-brasileira, em que a eventual mentira tem sabor e cidadania de verdade irrefutável. Nesse caso, cabe exclusivamente ao etnólogo fazer suas anotações sem nenhum tipo de censura ou contestação. Este será, sem dúvida, material precioso para posterior análise da mentalidade e dos recursos de que se podem valer para não parecer aos outros ignorantes. E, na verdade, não são. São, isso sim, verdadeiros criadores de cultura, pois, eventualmente, os elementos da invenção podem ser posteriormente incorporados ao universo religioso ao qual estão diretamente comprometidos pela participação, ação e poder de mando. Aliás, o poder de mando induz o poder de criar, de recriar, de inventar.
Excluindo aqueles, embora raros, que não falam porque nada tem a dizer, e assim criam o segredo de coisa nenhuma, aqueles informantes pouco loquazes terminam por esconder, assim, excepcional conhecimento dos “fundamentos da seita”, e com essa atitude criam o lastimável risco de não se etnografar, o que poderia ser restituído, através da documentação, às novas gerações. Salvo melhor juízo, esta seria a grande tarefa etnológica para além da satisfação intelectual e vantagens sobretudo acadêmicas de que resultam pesquisas nesse campo, aliás vantagens legítimas dentro da perspectiva de ascensão funcional universitária.
Essa dificuldade é maior quando se trata do registro dos arquivos orais e visuais. No primeiro caso, a oralidade tem peso de ouro no mercado simbólico afro-brasileiro. Dela ou nela se forja a noção de poder e de mando. Deter um conhecimento pela oralidade é uma demonstração inequívoca não somente de habilidade e de capacidade em administrar, com competência, o andamento de rituais, sobretudo os mais episódicos, os que não constam de um calendário litúrgico cíclico e que, portanto, só acontecem em situações especiais. Corre-se, aqui, o risco de praticar uma etnografia indiscreta, com o subterfúgio dos pequenos aparelhos de registro mecânico, escondidos no bolso da camisa ou adredemente colocados dentro de sacolas ao lado de bugigangas diversas a que todo etnólogo se atribui o direito de carregar.
Caso típico aconteceu com o autor, durante uma cerimônia para Exu na cidade de Ondo, no antigo Daomé, na década de 60. Vesti, para comodidade da pesquisa infratora – ali praticava a apropriação indébita do bem alheio –, um velho e surrado paletó que tomara de empréstimo, e acomodei o pequeno gravador no bolso interno, na expectativa de registrar cânticos para Exu com a científica intenção de compará-los, depois, com os que eu havia registrado na Bahia – e aqui pela via legítima da permissão do meu informante. Antes havia solicitado ao grupo religioso um lugar mais próximo aos instrumentos de percussão para que melhor pudesse assistir aquela inesquecível cerimônia. Pierre Verger, um pouco meu cúmplice nessa perigosa invasão de domicílio cultural, estava exultante com a possibilidade de coleta, pois com ele deveria dividir o produto da ação à mão armada com potente gravador fabricado no Japão (não estou certo que era efetivamente japonês, mas serve pelo menos para dar um certo estilo no final da frase). Voltamos apressados para o que chamamos de “gabinete de trabalho” para “sacar” – a expressão era de Fatumbi – o que estava supostamente gravado. Apenas fora registrado a intermitente frase “Ikuinaô, ikuinaô”, com a qual o sacerdote agradecia em público aos que contribuíram financeiramente para o brilhantismo da festa. Fora exatamente o nosso caso. Ainda que se possa atribuir a Exu tão competente façanha em preservar seus cânticos litúrgicos dos ouvidos ou dos gravadores indiscretos daqueles abelhudos – todo bom etnógrafo é um enxerido contumaz –, o melhor será, em todo caso, a via do conhecimento, indicando ao informante as razões da pesquisa e os eventuais benefícios que poderão resultar para sua comunidade em termos de preservação da herança cultural, cada vez mais submetida aos rigores da lei das mudanças que seguem inexoráveis, sem nenhum controle maior dos atores e portadores de saber tradicional.
No segundo caso, a situação se complica pelas dificuldades técnicas audiovisuais, e é quase impossível surrupiar o bem cultural alheio pela via da filmagem não consentida, embora seja relativamente fácil encontrar alguém disposto a conceder o direito de fotografar, assim mesmo com a tácita recomendação de não se alcançar momentos rituais especificados como proibidos. Nesse caso, o melhor é respeitar a ordem expressa e não tentar fotografar às escondidas, pois o inadvertido pesquisador corre o risco de ver sua máquina apreendida para eliminação do filme e, em casos mais sérios, ser gentilmente convidado a deixar o recinto religioso após ter sua aparelhagem destruída.
O segundo confronto, “o da urgência da análise das mutações culturais impostas pelo desenvolvimento rápido de todas as sociedades contemporâneas”, a não se perder de vista, é que o candomblé se integra nessas sociedades, sendo, pois, um desafio epistemológico para a etnologia nos dias atuais, e, de certa maneira, sua tábua de salvação no que tange ao campo de atuação.
As conquistas etnológicas que engendram maior cientificidade aos estudos aí realizados, impuseram, pela via da consequência, a necessidade de reavaliação permanente das razões históricas que ditaram o seu surgimento e suas ações, quase sempre comprometidas com interesses, nem sempre científicos e quase nunca anunciados, das agências financiadoras das investigações contratadas. Com isso, a etnologia renasce, revigorada, para se lançar na avaliação do seu histórico objeto formal – a herança cultural de um povo, agora etnografando e interpretando a dimensão de suas mutações constantes, a partir de situações novas, nas quais se dá crédito aos antes desprezados aspectos irrelevantes da cultura, como meio de se chegar a uma compreensão mais ampla sem o risco do esfacelamento da análise pela fragmentação da realidade estudada.
É nessa dimensão e com esse propósito que se pretende trazer para a discussão um aspecto pouco estudado do candomblé e de que aqui se dá apenas as primeiras notícias de uma pesquisa em andamento. Refiro-me ao papel que certamente desempenha o fuxico como forma de atualização do saber na comunidade religiosa afro-brasileira. Isso só faz sentido porque o candomblé, para além dos seus postulados litúrgicos que lhe dão feição precípua de religião, é uma comunidade onde interagem pessoas que vivem no cotidiano experiências que transcendem os limites da religião, mas que a ela recorrem permanentemente e nela está o alicerce maior de sua satisfação de viver. Daí decorre a afirmativa de que é quase impossível a separação do puramente religioso da totalidade da vida comunitária, e menos possível ainda é imaginar que a religião estaria imunizada contra as ações das pessoas e que essas não agiriam em função de interesses muitas vezes legítimos e consuetudinários.
É nessa trama que aparece o fuxico, o ejó, como se diz nos terreiros jêje-nagôs, que, respondendo por algum interesse qualquer, muitas vezes marcado pela noção humana da inveja, do ciúme, da covardia, ou pela melhor intenção de relatar o que foi notado, termina por emprestar relevantes serviços à religião. O ejó, o fuxico feito, possibilita a circulação de informações, até mesmo das circunstâncias do sagrado, pela via não oficial, através da revelação de boca em boca – o denominado “correio nagô” – do que está acontecendo de novidade em determinado terreiro de candomblé. Pelo ejó se chega às tramas mais complexas do mundo religioso alcançando, pelo detalhamento da ocorrência, aspectos preciosos que nenhuma competente etnografia seria capaz de captar.
Mas o fuxico não se restringe à crônica indiscreta do que acontece em um determinado candomblé. Ele atualiza um conhecimento mais amplo que atinge as relações inter-grupais contidas na totalidade do universo religioso afro-brasileiro. O ejó poderia ser apenas um discurso abjeto com alta carga de prejuízo para a religião, e é possível que algumas vezes isso aconteça, criando transtornos no interior da comunidade religiosa. Entretanto, visto pelo lado positivo, parece colaborar, de maneira subliminar, com a prática de preservação da tradição, na medida em que veicula a crítica, na sua circunstância aparentemente negativa, àqueles acontecimentos que não deveriam ocorrer, posto que ferem ou se chocam com os preceitos da tradição estabelecida. O ejó termina sendo, de alguma forma, a crônica da novidade no espaço comunidade-terreiro, a própria etnografia da dinâmica que assinala as ocorrências que se afastam da tradição “fossilizada”, do que estava cristalizado como herança religiosa imutável e, assim, visualizado como indicador preciso da nova ordem que se estabelece ou que está em via de se estabelecer.
Porém, é preciso assinalar que a comunidade religiosa dispõe de recursos eficientes contra a apropriação indevida do saber religioso ou de partes essenciais e fundamentais das práticas litúrgicas retidas pelos mais velhos do ponto de vista da senhoridade iniciática, como reserva a que se tem acesso somente pela via inicial da iniciação. De certa maneira, o acesso ao saber litúrgico, naquilo que é considerado como “coisa de fundamento”, se faz de maneira gradual, em consonância com os diferentes estágios ascensionais do indivíduo dentro do campo religioso. Transgredir essa pedagogia, isto é, querer antecipar essa aprendizagem atropelando o tempo estabelecido, é ferir os sustentáculos da estrutura religiosa dos candomblés, pondo em risco, dentre outras coisas, a própria noção de poder que parece se apoiar também no controle do saber religioso. Um dos mecanismos mais utilizados para conter a difusão do saber religioso é interromper, de maneira nem sempre cordial, o diálogo ou até mesmo o rito quando aparece no recinto alguém indesejável ou impertinente pretendendo aprender o que se está dizendo ou fazendo. Para isso, usam-se algumas expressões em língua ritual, sendo as mais frequentes em língua iorubá, como mabenu (ma gbe enu: não sustentar a boca) ou daké ou então mussurú nos candomblés de angola, pedindo ao interlocutor para calar-se. Algumas vezes, chega-se a formular uma frase inteira para tal circunstância, como: daké, afojudi, nibi, que poderia ser traduzida, de forma livre, como “cale a boca, aqui está um insolente, um falastrão”. Caso excepcional presenciei durante uma cerimônia de iniciação. O oficiante, percebendo que alguém da plateia estava presente com a intenção de aprender uma sequência do ritual, realizou toda ela de maneira diferente. Em seguida, pediu à pessoa que fosse buscar um copo com água e, na sua ausência, refez o ritual de acordo com a tradição. Conheço um respeitado pai de santo que, ao observar a presença de alguém a quem não deseja transmitir saberes da religião, começa a balbuciar, de maneira absolutamente incompreensível, o que estava dizendo na expectativa de que a inconveniente pessoa se retirasse do local. E, muito frequentemente, quando está comentando sobre a feitura de algum ebó, a coisa se complica. Aqui um exemplo: “ai eu peguei dois acaçás, passei no corpo dele e fiz assim, assim, assim, assim, não sabe, depois mandei ele pegar umas folhas e fazer assim, assim, assim, não sabe e tudo deu certo”. Claro que deu certo…
Muito comum, quando se quer dificultar a um afojudi a aprendizagem de uma cantiga qualquer, é usar o artifício de “embolar a língua”, isto é, pronunciar o texto litúrgico de maneira quase impossível de ser memorizada. Mas o afojudi usará de todos os expedientes para alcançar seu objetivo. Ora pedindo abertamente para que alguém traduza o que foi cantado, ora tomando nota imediata para comparar depois com outras variantes; assim consegue burlar a vigilância e quase sempre se torna excelente conhecedor dos fundamentos do candomblé. Caso notório é o de um filho-de-santo que tomava notas com lápis crayon de tudo que observava e ouvia. Após as etapas dos rituais, corria para casa, anotava com o objetivo de recuperar aqueles preciosos textos. Hoje é um conhecido e respeitável pai de santo na Bahia. É evidente que tais atitudes merecem a reprovação dos “mais velhos”, que gostariam que se respeitasse o tempo iniciático para que os filhos de santo tivessem acesso ao corpus litúrgico do candomblé. Mas eles, temendo que este tempo nunca chegue, pela intransigência ou pouca disposição sacerdotal para ensiná-los, recorrem a todos os expedientes que os levem mais rapidamente ao conhecimento mais amplo dos “fundamentos da seita”. De certa maneira, o afojudi, o insolente, que quer aprender as coisas fora dos limites estabelecidos na tradição religiosa, termina por se inteirar completamente dos rituais, e suas ações, eticamente reprováveis na visão interna do candomblé, resultam na superação da dificuldade que têm os líderes religiosos de transmitirem aos seus acólitos o que sabem temendo inconscientemente dividir uma fatia do poder. No candomblé, insisto, saber é poder. Não raro, afojudis de ontem transformam-se em líderes religiosos e, assim, transgredindo as normas, passam para a elogiável categoria de responsáveis pela preservação e continuidade da herança religiosa afro-brasileira. E quando o líder espiritual se recusa a ensinar a liturgia de sua tradição, seus filhos de santo se deslocam para outros candomblés em busca de conhecimento, assistem com frequência às festas públicas e se inteiram sobretudo das diferenças em relação à casa de origem. Aqueles que frequentam com assiduidade várias festas públicas em candomblés diferentes são chamados de “fura roncó”, “sete roncos”, “sete atabaques”, “14 rumpami”[2] ou então de “akirijebó”[3]. Estas expressões, com relativa carga pejorativa, servem todas para designar aqueles que frequentam com assiduidade as festas públicas dos candomblés e têm papel relevante na uniformização paulatina da liturgia. Na hipótese de se tornarem sacerdotes, dificilmente deixariam de organizar a estrutura de seus terreiros sem levar em consideração o que viram e anotaram durante suas andanças. Evidentemente que, na estrutura da base, farão apelo à tradição das casas de onde foram iniciados. Mas serão tentados a acrescentar detalhes ou novidades oriundas de outros terreiros, provocando certo distanciamento de suas origens e, por via de consequência, colaborando na uniformização cada vez mais presente dos novos candomblés que surgem na Bahia.
Mas, essa circulação do saber litúrgico só é possível através do estatuto do ejó, que realiza a crônica indiscreta do que ocorre criando um elo paralelo de ligação entre várias tradições de muitos terreiros. Nesse sentido, o afojudi é um “fura roncó” que, por vias indiretas e insolentemente, se apropria do saber, das coisas de fundamento.
Mas o ejó é também código ético, através do qual se implanta o discurso crítico e reprovador daquilo que se afasta da tradição enquanto prática de inovação e estabelece uma certa censura, muitas vezes mordaz, em relação aos avanços da comunidade religiosa na direção da introdução de novos códigos, e, nessa axiologia da preservação da herança, termina por anunciar mais amplamente os novos tempos. A crítica às mudanças já é a constatação de sua existência.
O portador do ejó, o baba ejó, o linguarudo, o fofoqueiro, o língua de afôfô, “o que fala demais”, o indaka kalunga Kufurongoma, isto é, aquele que tem a língua tão grande que pode furar qualquer atabaque, o baba ejó, é figura severamente criticada pela sua proverbial indiscrição que assume ao anunciar alguma notícia, primando pelo relato, muitas vezes gracioso, do inusitado, do que não deveria ser dito, ao relatar um fato qualquer.
O candomblé, dentro de sua liturgia, dispõe de recurso para exorcizar a fofoca, o fofoqueiro. Existe, por exemplo, uma cantiga para Exu que, na sua versão afro-brasileira, revela a aversão que têm as pessoas ao ejó ou aos que delem fazem uso:
Xoxô obé, xoxô obé
Apaxô Ioriejó, Laroiê
Xoxô, obé.[4]
A tradução livre seria: a ponta da faca que serve para a circuncisão, corte a fofoca ou o fofoqueiro. Enfim, uma súplica a Exu para que ele intervenha expulsando do convívio religioso aquele que tem a cabeça de fofoca, o fofoqueiro. Em outras sequências rituais, ainda podem ser identificadas mais súplicas desta natureza. Mas, em todos os casos, parece que a indisposição se volta na direção daqueles que podem trazer prejuízos ou estabelecer a discórdia entre os membros da comunidade religiosa. Alude-se às pessoas realmente de má índole que não fazem outra coisa a não ser semear a mentira entre seus pares em busca de algum proveito pessoal.
Mas Exu Abô toma conta dessa gente. Durante o sacrifício de animais quadrúpedes ou “bicho de penas”, como se diz, há sempre um momento em que se clama pela ajuda dos orixás para que eles possam, com sua divina providência, afastar os elejós, os fofoqueiros, aqueles que semeiam, com suas línguas, a discórdia dentro do grupo religioso. Mas, para esse tipo de pedido, não é preciso lugar especial na estrutura religiosa. A mãe de santo pode, a qualquer momento, reclamar uma ação mais enérgica das divindades contra essas pessoas e, às vezes, essas solicitações são feitas na presença daqueles assim considerados. Entretanto, essas coisas são sempre ditas em tom jocoso, quase pilheriando, o que minimiza em muito os possíveis atritos interpessoais, preservando-se, assim, a boa convivência dentro da comunidade.
Contudo, não há de se esquecer que essa é um tipo de pedagogia usual em que se procura dizer ou falar de coisas sérias em tom de brincadeira na expectativa de cordial receptividade do que se deseja anunciar. Outras vezes, embora mais raramente, canta-se uma “cantiga de sotaque”, e isso pode acontecer dentro ou fora do ritual, com o propósito de criticar aquele que não “tem papo na língua e fala como a nega do leite”. A cantiga de sotaque é sempre composta de versos que fazem alusão direta à coisa indesejada, podendo ser a presença de alguém que não deveria estar no ambiente, mas pode se referir também a alguma atitude, gesto ou comportamento que se distanciam da expectativa do grupo religioso. Nada mais detestado do que a presença de alguém que não guarda segredo, que ‘tem a língua solta”, sobretudo quando está se realizando uma cerimônia mais fechada, limitada a um pequeno grupo de iniciados. Numa linguagem mais popular, cantar sotaque e cantar cantigas com segundas intenções, sempre dirigidas a uma pessoa bem definida, é dizer uma indireta a alguém. E, como me disse um informante, a cantiga de sotaque xinga alguém por meio da cantiga.[5]
Mas a figura do “baba ejó” não é de todo execrada, pois presta, algumas vezes, relevantes serviços à comunidade. É, em certas circunstâncias, acolhida com simpatia e apreciada na sua aparente dicotomia de trazer e levar notícias, mesmo quando acrescenta alguma coisa a mais, produto de sua engenhosa imaginação. Muitos deles se servem para veicular rapidamente alguma novidade que se deseja anunciada rapidamente dentro da comunidade, e os que criticam quando são vitimas de sua maledicência, aplaudem-no quando se beneficiam do seu invulgar ofício de pombo-correio, “de leva e traz”. Deve ser ressaltado a profunda habilidade do “baba ejó” em contornar situações e versões do fato relatado, acomodando o discurso de maneira a não lhe trazer complicações maiores, acrescentando algumas desculpas, do tipo “estou vendendo o peixe pelo preço que comprei”, quando se trata da passagem de uma notícia, ou “juro pelo dono do meu eledá” (o santo protetor, o santo de cabeça) ou simplesmente “por Deus do céu” que vi com “estes olhos que a terra há de comer”, quando relata um acontecimento e precisa enfatizar a veracidade do seu relato.
De qualquer maneira, mesmo que eventualmente possa trazer embaraço, com seus relatos, às boas relações internas da comunidade, o elejó (o dono da fofoca, o fofoqueiro) exerce papel fundamental de contemporizador na introdução de novos códigos comportamentais, através de um discurso cheio de graças ou pelo menos com ar de que se trata apenas de gracejo, amenizando, assim, os efeitos da invenção ou da reinvenção da tradição. No que tange à invenção ou reinvenção de elementos secundários, mas decorativos, digamos, da tradição religiosa, tal como uma parafernália mais sofisticada, uma coroa artisticamente coroada na cabeça de Xangô, um abebé para Oxum trabalhado em ouro, o elejó (o dono do fuxico) não sofrerá quase nenhuma censura, posto que mudanças em tal nível são aceitas sem maiores problemas. Entretanto, quando o “pai do fuxico” relata inovações que alcançam elementos constitutivos do que se chama, na Bahia, de “fundamento da seita”, as coisas se complicam e ele pode ser duramente criticado e passa a ser mais indesejado do que o objetivo do seu relato. Geralmente, aquele que inova não aceita que sua inovação possa ser considerada uma quebra da norma religiosa. A rigor, existe quase uma tradição de se quebrar a tradição para incluir elementos novos no contexto ritual, e o binômio tradição e mudança encontra, no próprio grupo religioso, leva a crer que a mudança engendra a continuidade da tradição mesmo que nisto seja identificado algum tipo de contradição formal. E a contradição maior parece estar situada na ambivalência com que se aceita a presença do “baba ejó” dentro do grupo religioso. E, como me disse um velho pai de santo, “essa gente é um mal necessário, e você não pode expulsá-los, senão a casa fica vazia”, como a querer generalizar a função de fofoqueiro para todos do grupo, embora há de ser entender a expressão nos limites da intenção de afirmar que são muitos os indaka de kafurungonga dentro do terreiro. Essa visão serve também aos propósitos de se redobrar os cuidados para que os “fundamentos da seita” não sejam do conhecimento de, ou então para justificar a má vontade de muitos em não querer transmitir os ensinamentos litúrgicos aos mais novos.
E aí se estabelece uma contenda sem fim.
Os líderes religiosos encontram ou formulam todos os argumentos possíveis para justificar seu desinteresse em passar para os mais jovens os saberes. Na maioria das vezes, utilizam-se do mais elementar e falso argumento de que ninguém se interessa em aprender e assim não encontram ninguém para ensinar. Mas, desde que apareça um interessado, logo se tornam reticentes, garantindo ao pretendente que a vez dele chegará, quando não assinalam, de pronto, no discurso, a impertinência de querer saber fora do tempo. De todo modo, as barreiras de acesso ao saber religioso são permanentemente quebradas pelos mais expertos, que buscam por todos os meios chegar até às fontes de onde podem aprender alguma coisa. O “baba ejó”, na sua dimensão de “fura runcó”, vence as dificuldades, dialogando com outros sobre o que notaram ou anotaram e, na troca de informações, acabam aprendendo muita coisa que dificilmente seria transmitida pelos líderes religiosos de seus candomblés de origem.
Finalmente, aqui se pretendeu apresentar algumas achegas para entender, para além do corriqueiro, o papel do ejó, do fuxico e do fuxiqueiro nas relações intra-grupais e suas função de estabelecer certa dinâmica operacional extremamente eficaz que, por antinomia, termina por ser um veículo nada desprezível na avaliação da trama entre a necessidade da preservação da herança religiosa e as pressões interna e externa que atualizam o saber, para responder aos novos desafios a que estão submetidos os candomblés na sociedade hodierna.
No plano interno dos terreiros, o ejó, o fuxico e o língua de afofô são categorias que atuam com certa independência, perpassando as relações de poder e interferindo, de alguma maneira, na dinâmica da organização sociorreligiosa e no cotidiano da comunidade.
Uma expressão, para muitos considerada chula, afirma que “sem ejó e sem adé, não há candomblé”. Adé: uma das muitas expressões recorrentes para referir-se a “homossexual” dentro da comunidade religiosa afro-brasileira. Na frase está assinalada a importância que têm os homossexuais dentro do grupo religioso. Recebidos com baixo índice de discriminação, são personagens importantes na organização das festas públicas, excelentes no cuidar das coisas internas e sociais durante as cerimônias, além de desenvolverem várias atividades indispensáveis à vida da comunidade. Enquanto esses últimos cuidam dos preparativos das festas, o ejó realiza sua missão civilizadora de atualização do saber dentro os grupos religiosos afro-brasileiros.
Ao etnólogo, se livrando de suas amarras conceituais e se despojando dos seus esquemas teóricos rígidos, dicotômicos e cartesianos, cabe a tarefa de anotar, relatar e interpretar o fato religioso sem perder de vista que ele próprio, num outro nível de linguagem, numa outra comunidade, não passa também de um indaka de kafurungonga da ciência etnológica.
[1] Este texto, na sua versão original e com o título: “Etnologia e saber religioso afro-brasileiro: batendo com a indaka de kafurungonga”, foi apresentado no V Congresso Afro-brasileiro, realizado em Salvador, em agosto de 1997. Na verdade, ele é quase uma proposta de pesquisa sobre temas que normalmente passam à margem das análises socioantropológicas sobre o candomblé no Brasil.
[2] Agradeço a colaboração do pai de santo José Carlos, que gentilmente lembrou a expressão “14 rumpami”, usada entre os da nação jeje da Bahia, para falar dos que “fazem as sete igrejas”. A palavra rumpami significa terreiro de candomblé, sobretudo quando a área é grande. No jeje existem outras palavras para terreiro que são usadas de acordo as categorias de espaço e ocupação do espaço.
[3] A expressão é utilizada, na sua dimensão sagrada, para designar aquele que leva o ebó (a oferenda) para ser entregue a Exu, o orixá das encruzilhadas. Geralmente esta é uma tarefa de um ogã mais velho e, na sua ausência, recorre-se a uma pessoa que já tenha algum tempo de iniciada. A expressão, no caso referido, perdeu completamente seu significado primeiro para adquirir outro, profano, para denominar aqueles que frequentam com assiduidade os terreiros de candomblés da Bahia. Nesse caso, o assim qualificado pode reagir com pouca simpatia ao apelido.
[4] Pierre Verger (1957) registrou a seguinte versão: Exu sonso obé/Odara kolori eru/Exu sonso obé/Laroiê sonso obé. E remete o leitor para o cântico registrado em IIodo que guarda alguma semelhança com a coletada no Brasil. É possível que se tenha utilizado de um texto original para criar um outro com finalidade bem precisa.
[5] Cantar sotaque. “Cantar nas cerimônias religiosas, versos alusivos a alguém que se encontra no ambiente e não é aí desejado” (CACCIATORE, 1997, p. 83). A cantiga de sotaque serve também, em outras ocasiões, para incitar os cantadores a lembrarem de velhas cantigas, dando um brilho muito especial às cerimônias públicas dos candomblés. Essas contendas são sempre realizadas de maneira mais gentil e, assim, ao invés de menosprezar o adversário, termina por permitir aos envolvidos revelarem para o grande público o conhecimento que têm dos cânticos litúrgicos, sobretudo daqueles que são menos lembrados.