Ela mordeu a carne da manga rosa com desejo. Do canto da boca o sumo amarelo grosso escorria. Sugava a polpa com vagar recobrando a imagem de Rodrigo. Ela lhe ensinou que comer manga com mãos e boca era mais gostoso. Ele usava a faca e cortava toda a sensualidade que o ato podia ter. Aprendeu com ela a chupar manga e a valorizar todo tipo de suculência. Às vezes, na cozinha do apartamento, começavam com o que estivesse na fruteira, pêssego, ameixa, pera. Ele só não gostava de brincar com bananas, dizia que além da forma pouco atrativa a fruta era seca, não se derramava em maciez. Exploravam os sabores, a carnadura, as texturas, os líquidos, os movimentos da boca e da língua. Procuravam equivalências com o corpo humano, o aveludado do peito e do pêssego, os fios do caroço da manga e os pelos dos testículos. Quando se davam conta já misturavam as bocas e os sabores em beijos e carícias pelo corpo todo, sobre a mesa ou no chão mesmo.
Fazia tempo que não via Rodrigo. A última vez foi num buffet de sopas, ocasionalmente. A noite era de tempestade. Raios, relâmpagos e uma chuva intensa conferiam uma atmosfera peculiar. O reencontro foi incerto e suave. Ele contou que deixou o surf para os fins de semana e batia ponto num escritório de arquitetura. A vida agora está pelos dias no calendário e pelas horas do relógio. E Eu? Estou ensaiando uma nova peça, uma nova companhia. Continuo guiada pelas noites e luas. Lembraram da infância e das coisas que as mães obrigavam a comer, brócolis, espinafre, beterraba. Quem imaginaria você tomando um creme de aspargo? As coisas mudam, a gente aprende coisas novas, você aprendeu a chupar manga, lembra? A porta do relacionamento foi aberta. O término foi por incompatibilidade de gênios. Ela queria um homem que fosse o único. Ele não se queria exclusivo dela. Ela era da noite, da chuva e das tempestades. Ele era do dia e do mar. Ainda fica de pau duro quando vê alguém chupar manga? Isso só acontece com você. As outras mulheres chupam manga sem tesão. Nem chupam, cortam. Ela deixou uma sobra do caldo branco escorrer pelo canto da boca. Olhando fixo para ele limpou com o indicador e concluiu com o dedo firmemente pressionado entre os lábios. Era o bastante. Ele apertou-lhe a coxa debaixo da mesa e encontrou a vulva recoberta pelo jeans. Olhavam-se em labaredas, fogo nas mãos e nos sexos. Resolveram que a concretude do fim não os consumiria. Estavam ali e queriam se amar. O tempo de uma noite e de todos os dias incertos era o bastante para viver o que desejavam. Viver é um risco, não há garantias.
Um motelzinho barato era o necessário para o momento de entregas. Cada um dava a sua parcela de desejo e de medo. Medo de viver. Ela sofreu com o término, com a falta. Outra vez, seria? Ele ficou sem a mente liberta e o sabor de maresia do corpo dela. Prazer e abstinência, se repetia? Combinaram deixar o medo fora dos lençóis. O desejo era intenso e havia a vaga possibilidade de olharem para o mesmo horizonte.
Todos os carinhos eram intensos, cheios da ausência de muitos dias. O toque da mão no corpo dela provocava arrepios e risos. Os pelos dele comprimiam-se sob os pelos e o corpo dela. O cavanhaque e o bigode percorriam seu pescoço em frisson. Sua perna ia e vinha sobre a perna cabeluda dele. O peito de ambos encontrava-se no exato momento em que as bocas desejavam-se. Ela era epiderme. Ele era retinas. Os corpos compassavam reentrâncias e saliências. A dança gozosa alterava-se no desejo de mais sentir.
Depois do amor, a chuva. Era fina quando tudo era começo. Fez-se forte com a intensidade do ato. Na hora em que pousou a cabeça sobre o braço dele notou que uma tempestade tomava conta daquela noite não prevista. Ele abriu a cortina para atender-lhe o pedido. Ela era noturna, noctívaga, amante das tempestades.
Nus, sobre a cama, eles olhavam a noite. Pela vidraça, ela contemplava os clarões dos raios, os finos traços da chuva e a indesejável parede do prédio em frente. Da cama, ele não enxergava. Via, miopemente, o escuro e, vez por outra, a diminuição do escuro. Acreditava não estar perdendo nada, para ele o grande espetáculo acontecia nos extremos do dia, o nascer e o pôr do sol só podia ser obra de algo divino. A ventania uivante era música que a excitava. A cada trovão ela projetava-se mais sobre o corpo dele. Murmurou, roçando a língua na orelha dele, adoro chupar manga. Ele a puxou com força e alcançou-lhe os seios, demonstrando que aprendera bem o ensinado. Ela deslizou pelo abdome dele repetindo, adoro chupar manga, até sugar-lhe os testículos. Ele estremeceu e apertou o travesseiro. Outra vez estava pronto para servi-la. Pronto para ser servido pela fera que uivava a cada estrondo. Animado, ele foi até o sumo de maresia que ela trazia na curvatura do V. Como consegue trazer o mar dentro de você? Essa ostra que me oferta em águas me queima inteiro, dizia e exercia as suculências do ato. O espetáculo de luz e som compunha a cenografia perfeita para aquela noite de amor tempestuoso, com memórias de frutas e mar. Diurno convicto, ele tirava proveito do efeito que a noite provocava na loba em que ela se transformara. Sempre desconfiou que no escuro ela se acendia mais, naquela noite confirmou que ela era mesmo noturna.
Os corpos eram cansaço quando a chuva fez-se fina outra vez. Os ventos curvaram-se ao silêncio dos trovões. A luz que invadia o quarto era a dos postes. Cada um estava voltado para um lado da cama.
Nossa, assim você vai comer até o caroço! A irmã entrou pela cozinha e assustou-a. Aquela foi a última noite.
Lílian Almeida (publicado em Além dos quartos: coletânea erótica negra Louva Deusas, – publicação independente do coletivo de mulheres Louva Deusas; São Paulo, 2015)