i.
é pelos pés de meu avô que entendo a vida.
morto de cima de nove décadas esculpidas
nas rachaduras das solas duras, naquele
mesmo quarto de estreitos e sonhos.
caminho nos cascos a figurar seu povo,
na herança do sangue no olho
que o eco de sua voz ainda vive.
é pelos pés do morto, numa cama de pau,
que vejo a luz do dia chegar.
o choro, a reza, a morrinha de paz que fica
ii.
meu pai chegou à capital menino. de domingo
a domingo perdeu o que hoje não consegue mais lembrar.
veio para tentar a vida e ficou – foram as primeiras frases
que li naquelas solas duras de pés juntos, como os de quem reza.
era o título de um texto que continuava – depois fui eu
a partir para Lisboa em busca da manilha e o libambo que idealizei.
ecos em silêncio vindos de outra existência, idas de 1800, ou não,
ou de um call center, atendendo às ligações e sendo mandando de volta
a cada três minutos, recebendo ecos de outras partidas.
quando meu pai veio para a capital tinha a metade de mim,
a outra descobri quando retornei de Portugal.
há mais ou menos quarenta anos ele chegava,
após quatro eu voltei para o Brasil.
as rachaduras nas solas duras de meu avô
escreveram estas palavras também.
Tiago D. Oliveira
Do livro As solas dos pés de meu avô, Ed. Patuá, 2019