O táxi a deixou na porta do hospital. Bom dia, tenho cirurgia marcada com Drª Joana. Ela disse que eu precisava me internar antes. Dê-me os seus documentos, senhora. Vou verificar. Está tudo certo. A senhora pode assinar aqui e aguardar. Vou chamar uma funcionária para lhe acompanhar.
Ela olhava para todo aquele ambiente. Televisor, cadeiras, jornais e revistas, pessoas. Ali qualquer um podia estar dizendo adeus, como ela estava. Qual seria a enfermidade delas? Teriam cura? Iam precisar mutilar uma parte de seus corpos? A televisão não a entretinha. A apresentadora estampava uma felicidade opaca que se desprendia das rugas esticadas e do pescoço flácido.
Bom dia, senhora, tudo bem? Por favor, me acompanhe. Anham. Tudo bem? Sei não. Andava pelos corredores assépticos do hospital. Não, não estava tudo bem. Mas quem realmente queria saber se estava ou não tudo bem? As paredes brancas confirmavam aquele interesse insípido pelo bem estar dela. Começava a achar que o branco era a cor da morte, uma corzinha que não despertava qualquer impulso. Os hospitais e a mania de pintar tudo de branco, não podiam colocar um verde, um azul, um amarelo? Assim a gente ia pra faca colhendo um ar de esperança pelos corredores. Mas não, tudo era branco alvíssimo.
Essa é a enfermaria. Seu leito será o 222. A senhora poderá deixar os seus pertences nesse armário aqui. Deve tomar um banho e vestir essa roupa. Está usando esmaltes? Sim, estou. Vou trazer um removedor, é necessário tirar todo o esmalte das unhas. Peço também que guarde todos os acessórios que estiver usando, brincos, anéis, relógio, tudo. A partir de agora a senhora começa a preparação para a cirurgia, sua alimentação estará sob controle e depois do meio-dia até a hora da operação tomará apenas líquido.
Ela escutava todas as instruções. Lembrava-se da infância quando os vaqueiros tocavam os bois da fazendo do avô para o abate. Certa feita, de fora do curral, olhou nos olhos de um que fora escolhido para deixar o grupo. Os olhos úmidos e negros do boi sabiam que era o fim. Sentia-se aquele boi. Seus olhos negros e marejados anunciavam o fim de algo.
Desde o resultado dos exames até o dia da cirurgia sua cabeça entrou em parafuso. Rodava e rodava no sem sentido de anos e anos de vida. Viu-se estilhaçada com o diagnóstico da ginecologista. Não tem outro jeito, vamos precisar retirar o seu útero. As altas doses de hormônio do seu anticoncepcional alimentaram o mioma e os quatro anos sem os exames de rotina permitiram que ele crescesse livremente. Infelizmente não temos outra solução. Ele tomou completamente o seu útero, gerando inclusive as dores que você sente. Toda uma vida cortada pela voz suave da médica. Desde aquele dia até ali pedaços de sua vida vinham à tona com as mais corriqueiras situações. O beijo de um casal no metrô dizia-lhe que perdera as oportunidades de ter um filho com os namorados que teve. Uma grávida na rua ou uma mulher com criança de colo sangravam a ferida que seria no dia da cirurgia. A mãe dramatizava a preocupação com ela e com as irmãs cortando-lhe o ventre: quando vocês forem mães vão saber o que eu passo de sofrimento. Ela nunca ia poder gerar filhos.
Tomou banho e deitou-se na cama de ferro. Outras mulheres também dividiam a enfermaria. Trocou umas poucas palavras com as companheiras de hospital. Sim, ia fazer uma histerectomia. Retirar o útero. Retirar-se de dentro. A cirurgia não podia esperar uma esperança. Fez todos os exames em dez dias. Dez dias pelo avesso dela mesma. Aprendeu com a mãe a não deixar para amanhã o que podia ser feito hoje. Mas você ficou quatro anos sem ir à ginecologista! É, não apliquei a tudo o que minha mãe ensinou. Fechou os olhos e virou-se de lado saindo da conversa. As mulheres continuavam a dizer o que fizeram ou o que iam fazer dentro daquele mundo em branco.
Mas por quê? Por que cargas d’água não aprendi direito o que minha mãe ensinou? As mães sempre têm razão. Nunca ia ouvir isso de um filho seu. Nunca ia passar o ensinamento da mãe pra um filho seu. A mãe sempre dizia: primeiro a obrigação, depois a diversão. Ela aprendeu direitinho. Era uma excelente profissional. Profissionalíssima! Tão boa funcionária que sempre cobria as folgas e férias dos colegas. Quando tirou férias? Uma semana a cada ano, três anos de férias vencidas.
As vozes cruzam-se na enfermaria. Algumas retiraram miomas e preservaram o útero, outras retiraram o útero, uma retirou mioma, útero, trompas e ovários, outra fez laqueadura, não queria mais filhos. Algumas já eram mães, outras ainda não. Ela nunca seria. As auxiliares entram e saem de tempos em tempos. Deixam ao lado de cada cama o que é necessário.
Ela vira-se no colchão, entre a cama do hospital e além. A mãe, as irmãs, a mulher que ela foi até ali. Um silêncio letárgico. As paredes e o teto são de um branco gritante. Instrumentos metálicos tilintam próximo à mesa de cirurgia. Alguém fala os batimentos cardíacos e a pressão sanguínea. Uma voz afirma: vamos começar. Um risco fino e gelado atravessa-lhe o ventre. As adiposidades cedem, camada a camada, à lâmina. O tecido desfalece pros lados revelando películas e membranas. O sangue irrompe. Uma mão enxuga em branco o vermelho escorrido. O bisturi persegue, determinado, o alvo. Dedos enluvados desobstruem caminhos. A barriga vira e revira aos movimentos dos dedos e mãos. Um líquido quente molha a pele. A mão invade a cavidade e procura. A cabeça em curvatura aparece. Gancho e concha, a mão segura e puxa. Segura e puxa e desprende. Um choro vermelho atravessa o instante com placenta e cordão. Senhora, acorde. Está na hora da cirurgia.
Olha a brancura implacável da enfermaria. Uma lágrima pendura-se na borda do olho. Engoliu a seco a impossibilidade vermelha que rasgava garganta e ventre.
Lílian Almeida (publicado na Revista Cartografias, 4ª edição, 2016, disponível em: http://mapadapalavra.ba.gov.br/wp-content/uploads/2016/10/Revista_cartoGRAFIAS_Inverno.pdf)