Fazia alguns dias que eu parecia estar vivendo numa utopia bastante
interessante, embora completamente inverossímil. Quero dizer, seria mais um dia normal, se eu não notasse – confesso que um pouco assustado – as pessoas, de repente, passando a respirar literatura, de modo que, cada uma delas, pertencia então a alguma legião peculiar, criada em função de determinado escritor de prestígio. Dentro dessas legiões, discutiam as ideias do seu messias, eventualmente se opunham a elas, e tentavam dar às suas linhas novos rumos.
Entrava nos bares, e me deparava com montes de bêbados seguidores do velho safado, brigando e bebendo a sorrir. O tempo inteiro comemoravam a vida, contentes por algo estar acontecendo. Às vezes, até se confundiam com os personagens de Jack London.
Leitores de Hemingway se esmurravam frente às moças que passavam nas calçadas, com o único intuito de provar quem tinha mais culhões, mas, as senhoritas, com certa elegância, apenas aceleravam o passo em direção às suas casas, ansiosas para se empanturrarem com os mistérios de Agatha Christie.
Durante uma manhã de domingo, quando fui à praia, acabei conhecendo uma mulher da legião de Anaïs Nin, que me concedeu o melhor sexo que já tive o prazer de praticar. A sua imagem permaneceu nos meus pensamento durante dias, como se eu fosse um romântico admirador das peças de Shakespeare, entretanto, depois descobri que ela também participava da legião de Simone de Beauvoir, e foi duro quando me chamou e disse que não ficaria presa a homem algum – o que, junto com o pedido para que não chorasse com a sua partida, foi demais para mim.
Passei dias lendo livros de Augusto Cury para me recompor, mas somente na legião de Herman Hesse renasci, quando me contaram: “para nascer, é preciso destruir o mundo”. Foi quando destruí tudo o que vivera até então, e encontrei uma nova forma de seguir o meu caminho em busca da minha própria essência.
Dirigi por estradas vazias e interioranas contemplando a solidão, e senti vontade de morar num daqueles lugares, somente na companhia da natureza, assim como fez Hilda Hilst ou aqueles caras que diziam habitar “clubes individuais” de Thoreau. Porém, me perdi no caminho e fui parar no meio de um bando de gente que, em volta de uma fogueira improvisada, lia textos de Thomas Wolfe com avidez, despertando em mim uma ânsia de buscar adrenalina a todo custo. Sentei-me com eles, e lá acabei passando a
noite. Na manhã seguinte, voltei para a cidade e fui ao shopping, na expectativa de assistir a algum dos novos filmes produzidos pela legião de Philip Roth, e assim espairecer através de momentos de reflexão e indignação.
Na bilheteria, fãs de J.K Rowling lotavam as filas. Nesse tempo, uma mulher
lindíssima (apesar de possuir o quadril um tanto para dentro), puxou conversa comigo e começou a falar sobre literatura fantástica e afins. Mais tarde, descobri que era da legião de Tolkien, quando me disse que eu a lembrava Frodo, “só que mais fofo”.
“Será que já estou me apaixonando de novo?”, questionei a mim mesmo. “Será que essa minha paixão repentina por todas as mulheres que conheço deve ser expurgada através de gritos para que todos saibam?” Não. Não sou Gustavo Flávio, e, até onde eu sei, a minha vida não é tão boa quanto a dos protagonistas das histórias de Rubem Fonseca, embora tenha convicção de que gostaria de forma demasiada se fosse.
Com a bilheteria lotada, não consegui ingresso para acompanhá-la na sessão de J.K, e terminei trazendo para o peito mais uma frustração amorosa. Concluí que Herman Hesse só fazia sentido para quem não sofria por amor.
Sentei-me sozinho num restaurante para jantar e, logo após, um rapaz que se dizia da tribo de Sartre se sentou ao meu lado, questionando o que achava da solidão. Suponho que pensara que eu estava ali sozinho por mera opção, e não por ter recebido dois foras de mulheres lindas. Contei-lhe que me sentia bem, estivesse acompanhado ou não, afinal, já fora da legião de Bukowski, e mantivera em mim a ideia de que você deveria ser, para si próprio, a sua melhor forma de entretenimento.
O rapaz se interessou pelo meu papo e convidou os seus amigos para se juntarem à mesa. “Você não se importaria, não é mesmo?”. “Claro que não”, respondi.
Era um bando de seguidores de Fitzgerald, que, com suas posturas pomposas, bebiam cervejas artesanais e discutiam questões fúteis com ar de crítico blasé.
Meus ouvidos suportaram aquilo durante alguns minutos, todavia, notando que não possuíam a habilidade de Scott para narrar fatos triviais, levantei-me e fui em direção à área dos táxis. Andava do lado de fora enquanto verificava o celular, quando dei de cara com um taxista, que, imediatamente, começou a berrar:
“Ei, garotas, olhem só, vou quebrar esse merdinha todo agora mesmo!”, disse ele às mulheres que passavam, com um semblante de quem acredita exalar charme e virilidade.
Não preciso confirmar que era mais um da tribo de Hemingway, não é mesmo? Para o meu divertimento, foi frustrado na sua tentativa e desistiu da luta quando percebeu que as mulheres faziam parte do grupo de discussão de Virginia Woolf, e estavam pouco se fodendo para nós dois.
Entrei no vagão de um trem que partia, sem sequer saber o seu destino, e me esbarrei em um grupo de adolescentes que declamava poesia beat num sarau improvisado. Ofereceram-me cachaça de graça e me propuseram um almoço nu. “Eu vi as melhores cabeças da minha geração sendo destruídas pela loucura”, recitavam enquanto comiam. Depois, só me lembro de ter acordado com uma ressaca tremenda. Eu era um junkie e não me lembrava. Tinha injetado exageradas doses de Burroughs, e talvez tivesse até misturado com uma essência Nietzschiana.
Agora, estava refutando toda a psiquiatria que não partiu de Dostóievski, à
medida em que tudo parecia escurecer ao tempo em que o super-homem e o homem extraordinário se distanciavam de mim. Durante o despertar, tive a impressão de que tudo havia voltado ao normal, mas a realidade era muito mais triste e angustiante que qualquer drama Kafkiano.
Com os olhos abertos, observei que o mundo das tribos tinha ido embora, porém, ao notar a apatia das pessoas que celebravam a ignorância, até cogitei estar preso numa distopia de George Orwell. Contudo, sabia que estava equivocado. Encontrava-me agora rodeado da legião de Ivan Gontcharóv. Era evidente que estavam todos miseravelmente sedados por puro Oblomovismo. Sim, era tudo puro Oblomovismo!
O vírus da literatura tinha me contaminado, e vacina nenhuma poderia ter me preparado para tal enfermidade, que me corroía como um ácido, e se apossava do meu corpo, dia após dia, como um amor que lhe rouba a liberdade e não te dá alternativas senão amá-lo, e enxergá-lo como aquilo que te lembra que alguma coisa dentro de você ainda vive.