Assista a este poema recitado: https://www.youtube.com/watch?v=Z-gpKwUQc50
Ei, eu vi uma luz na sua raiz
E é tão raro para mim
Querer regar.
Ei, eu sei da sua cicatriz
E meu pulso também
Não consegue
Enxaguar.
Ei, tem algo no jeito
Em que o poste faz brilho
Na rua molhada.
São detalhes assim
Como sua mão no meu cabelo
Que me fazem, vivida,
Tão achada.
É que ando meio perdida
Sempre,
Mesmo quando sei de mim.
Vivo driblando piscinas vazias
Querendo alma na pornografia
Sentada no trampolim.
Ei, eu vejo uma poesia
No jeito como seus olhos
Viram lágrimas ao rir.
Sinto aqui anestesia
No meu medo e nessa biografia
Que só fala de partir.
Ei,
Cê não sabe metade
Das metades que eu vivi
E do quanto estou cansada
No décimo degrau da escada
Não querendo recair
Mas eu também não sei
De todos os seus hematomas
Só sei que quero descobrir.
Eu vejo um tesouro no fundo
Do seu receio fecundo
De ser dois e
Sub
trair.
Ei,
Cê ainda não sabe
O quanto é difícil pra mim
Querer ser tão fácil.
Mas quando começo
Não vejo outra forma
De inici-ar.
Eu vivo dentro de uma caixa
Com trinta cadeados
Até que apareça
Quem me faça ficar.
E aí eu mergulho
Não sei ir aos pouquinhos
Mas aprendi a ter cautela
A ter uma cota de espinhos.
Cê disse que não entende
E que tudo isso é exagero
Mas um dia sua luz
Vai te esclarecer.
Perto ou longe de mim
Vem algum desespero
Pra mostrar que só ele
Pode nos merecer.
Ei, deita aqui por enquanto
Trago quase tudo
o que posso oferecer…
Cafuné, verdade e, quem sabe,
Um tanto
Do meu poetar
E do meu descaber
— Pra cê levar depois que formos
Pra gente fazer alguma marca
Que não precise sangrar…
Eu pedi desculpa
Porque eu vi uma luz
E tenho essa mania
De intensificar.
Então, ei,
Encosta aqui por enquanto
Enquanto ainda tenho coragem
De correr o risco.
Enquanto sua luz é mais forte
E ainda vejo meu norte
Enquanto a chuva
É chuvisco.
Eu vi uma luz aí dentro
E não sei se vou demorar
Mas enquanto estiver
Espero arrombar
Alguma porta fechada
Alguma tranca enferrujada
Algum medo escondido.
Espero que faça alecrim
Com o que temos aqui
E que não armemos
Regalos bandidos.
Ei,
Eu quero dançar com você
No meio do estacionamento
No meio de uma loja
Com sorvetes nas mãos.
Quero devolver
A sua crença e cimento
Deixar um pouco de soja
Pra sua oração.
E, quem sabe, cê me conheça um pouco
E valorize meu jeito torto
De não ser paciente
E de querer ir com cuidado
Mas com tudo de uma vez.
Eu vejo um tom na sua essência
Que talvez cê tenha dado
Como morto
Vejo cores gradientes
Vejo na guerra, um soldado
Que salvaria lucidez.
E, ei,
Eu quero um poste enorme
Cobrindo uma rua esburacada
E eu quero nossas mãos entrelaçadas
Até que tudo escureça.
Eu quero seu nariz no meu
Sua sequência de beijos
E o que temeu
— Até onde a dor
Não prevaleça.
E eu prometo fazer mil cartas
Mil poemas que cê nem vai ler
Porque eu vi uma luz e eu preciso
Escrever
— Até quando ainda valer a pena
Até quando não apequenar.
Deixa eu ver quem é você no escuro
Deixa eu te dar um nome para lembrar.
Só não me tranque do lado de fora
Não apague a força da sua aurora
Não vire mais uma foto que eu preciso queimar.
Mostre seu braço tatuado
Não caia nessas ruas de enjaulados
Que juram que liberdade
É cortar.
Ei, eu vi uma luz na sua raiz
Estou testando a minha fé.
Eu sei
Da sua cicatriz
E tenho uma mancha
Onde dei ré.
Ei, ei, ei!
Eu vejo um poema
Sempre que cê para
E abre a greta um pouco mais.
Só não se iguale aos pequenos
Veja o poder dos acenos
Só tire a minha roupa
E não tire a minha paz.
É que, ei!
Não sei ficar onde não é fácil
Onde a minha entrega
Não tem valor
Onde buscam pelo ás.
Eu vejo um brilho na sua sala
A verdade no que cê cala
E uma catraca sem crachás.
Marcados demais para a ingenuidade
Sozinhos demais para o acolhimento
Apunhalados demais para a confiança.
Esquecido que só vale o que causa
Ansiedade
Enrugada demais para ser de momento.
Que dure até enquanto
pudermos ser
crianças.
Vanessa Brunt | @vanessabrunt)
Poema do livro Não Precisa Ser Assim (2020)