Foi entrando pela água a dentro e alcançou a coroa. Sentou-se e esperou morrer. A maré estava baixa. No dia seguinte era março. À noite a maré subiu. Chegou até a coroa e cobriu o corpo da mulher. Os peixes roeram-lhe as pálpebras e os siris entraram-lhe pela boca. Cotam que quando ela atravessou a praia, ainda um filete de sangue escorria pelas suas pernas. E foi deixando um rastro vermelho pela água tranquila.
Não era igual à mãe que nunca aquietava calada, não trocava a camisa para brigar. E quando faltava de que reclamar, falava sozinha. Não era. Comia calada. Assuntava o que se passava em volta, mas calava. A mágoa crescia por dentro que nem maré de março.
A mãe tomou conta da criança. Era um menino quieto que tinha nos olhos a expressão tranquila dos homens que passam a vida no mar. Diziam que era filho de um marinheiro que emprenhara a mulher e se fora. Ninguém sabia ao certo. Pureza era calada. Uma pomba sem fel – dizia a mãe, querendo engrandecer. Uma mosca morta – acrescentava quando queria destratar. Ela não dizia nada. A barriga crescendo e ela calada. Ouvindo tudo sem opinião nem resposta. Ignorando as perguntas como se não fossem com ela.
Mas que o menino tinha aqueles olhos cheios de paz, isso ele tinha. Jerônimo foi crescendo como os outros meninos. Comendo papa de farinha dada na boca pelo dedo da avó, e arrastando a barriga cheia de lombrigas pelo chão batido do casebre. A cara suja de terra. Indo à praia enganchado na anca da avó, à cara de mariscos. Crescia acostumado com a velha que lhe cuidava sem muito carinho mas também sem maus-tratos. Às vezes, já grandinho, saia caminhando pelo cais, ao anoitecer. Algumas coisas por dentro traindo um vazio. Uma necessidade estranha, uma angústia, e ficava sentado nas tábuas do cais, olhando a coroa ali próxima, ou o horizonte distante. E espantando os mosquitos das pernas encardidas. Horas a fio. Recolhido, calado, quieto. Depois a avó o procurava e vinha a bronca.
– Tá de calundu outra vez. É que nem a mãe. Quando embirra de ficar calado ninguém arranca uma palavra.
Outros diziam que era filho do prefeito. Pureza lavava para a família do prefeito e todo fim de semana lá ia levando a trouxa de roupa. Os olhos sempre úmidos e brilhantes. E a boca carnuda, que nem fruto de dendê maduro, sempre calada e sisuda. Quando dona Olga viajava para o sítio, ela entrava pela casa da patroa e recolhia a roupa suja das crianças. Fazia tanto tempo que lavava para eles, que era como se fosse da casa.
Quando botou barriga alguns começaram a falar que bem poderia ser filho do prefeito. De alguma daquelas segundas-feiras em que se demorava na casa, recolhendo caminhava normalmente pelas ruas, o vestido empinando na frente, levando e trazendo as trouxas, ou mariscando siri e papa-fumo da praia sem esconder a gravidez. De ninguém. Nem mesmo da mãe. Nem mesmo de Ernesto.
A mãe brigando. Como brigava por tudo.
– Tá prenhe. E quem é o pai? Não tem vergonha do marido paralitico em cima da cama? Pensando que nem um desvalido há tantos anos?
Pureza calada. E a velha.
– Não tem mesmo é vergonha na cara.
A mulher foi até a porta do quintal. Ergueu o ferro a carvão e soprou forte. As brasas estalaram e as faíscas saíram pela boca do ferro. Voltou à mesa de engomar. A velha continuava na ladainha.
– Não pode viver sem homem é? Ernesto está paralítico mas ainda não morreu, não. Não tem vergonha de passar na cara desse infeliz com a barriga de outro homem?
Pureza esticou na mesa o vestido branco de dona Olga. Desfez uma ruga. Passou o ferro com cuidado.
– Vai, descarada. Diga ai. É do marinheiro? Bem feito que ele se picou no mundo. Agora, se não é do marinheiro, heim? Se é de seu Abílio… rum… Tá pensando que ele vai lhe dar alguma coisa? Vai dar mesmo é um pontapé na bunda pra tu tomar vergonha. Coitado de Ernesto, esse, sim é um infeliz.
Pureza calada. O ferro indo e vindo em suas mãos, por cima da roupa da mulher do prefeito. Não levantava a vista do trabalho. Em seguida, arrumou as das peças dentro de um lençol bordado e prendeu os lados com presilhas. A barriga grande, os movimentos lentos. O corpo pesado. Entrou no quarto onde Ernesto dormia. Olhou em cima do estrado o que restava do marido. Um corpo insensível, parado, sequer movia os braços, mal conseguia falar.
Amara aquele homem, sim. Tinha-o amado muito. Tinha sido tempo bom, aquele. Moços os dois, cheios de vida. Depois, havia seis anos, ficara morrendo com ele na sua infelicidade. Acompanhando sua morte lenta em cima da enxerga. Ela, porém, estava viva! Viva! Será que a mãe não entendia isso? Por que teria que morrer junto com o homem? Estava viva! Viva! Deus do céu…
O filho estremeceu na barriga. Olhou outra vez para o homem. E chorou. Não sabia bem por quê. Mas chorou naquela noite como nunca.
O homem mais velho que a própria idade, nada tentava perguntar. Encolhido em seu estrado, as pernas mortas, como de resto, quase todo o corpo, enrolado na coberta de chitão lavadinha e remendada por Pureza. Reduzia-se à sua solidão de paralitico. Desde o desastre da Leste, havia seis anos, vivia ali, como um bicho de estimação. Pureza dava-lhe o alimento à boca e o banho no colo como se fosse um bebê. E o homem foi mirrando, murchando, como um maracujá que enruga. E parecia um ancião. As mãos encurvando, as pernas secando.
Nada tentava perguntar à mulher. Para quê? Não tinha de que se queixar. Ninguém sabia se sentia ciúmes do vigor de Pureza nos seus trinta e oito anos plenos de sensualidade. Ninguém o sabia. Ele só olhava para ela longamente, e, quando seus olhos a surpreendiam alguma vez parada à porta dos fundos, os olhos na folhagem agitada do quintal ou no pedaço de mar que podia avistar, seu coração enchia-se de piedade pela mulher. Ainda moça, cheia de fogo, amarrada a ele que nada mais tinha a lhe dar. E sem reclamar, calada como era e sempre fora.
Viu a barriga da mulher crescendo, e ela sem alterar os seus hábitos, sem evitar encará-lo, sem diminuir seus cuidados e sem os aumentar. Como se nada estivesse acontecendo.
O coração do homem enchia-se de angústia e ele fechava os olhos quando ela entrava no quarto e, quieta, como era seu jeito, banhava-o, alimentava-o, perguntava-lhe se precisava de alguma coisa. Solicita como antes, como sempre fora, Ele não tinha coragem de lhe perguntar por nada. De nada lhe cobrar. Seis anos. Era muito tempo.
Quando Jerônimo foi crescendo, Ernesto ficava observando. O cabelo crescia clareando. E a pele morena igual à de Pureza, queimada ao sol e ao salitre, fazendo contraste com o cabelo claro, lisão, que nem cabelo de milho novo. Reparando mais, o cabelo era bem como o cabelo de seu Abílio, o prefeito. O marinheiro ele não conhecera. Diziam só que passara uns dias, poucos, e se fora, só falavam dos olhos calmos do menino, mas ele não tinha como comparar. E a mulher, teimosa do jeito de um burro, nunca dissera nada. Morreu como viveu. Calada, Guardando só para si mesma, seus gostos e seus desgostos.
O menino crescendo como os outros meninos, roubando mangas pelos sítios. Pulando do cais, nadando nas águas da bacia, fazendo carreto no porto, vendendo mariscos aos veranistas, em prato de esmalte. Do pai e da mãe não perguntava. Também, o tempo passando, o povo esquecendo. Ninguém se lembrava mais de comentar do prefeito ou do marinheiro. Só as mulheres mais velhas, olhando a coroa, de vez em quando falavam da mulher que procurara sua morada na areia do mar. Falavam em assombração. Ninguém mais mariscou na coroa, por isso. Por mais baixa que estivesse a maré.
Um dia Ernesto morreu. Amanheceu morto. O corpo pequenino que se fora reduzindo pela longa paralisia. A velha fechou-lhe os olhos enquanto dizia:
– Deus te tenha no seio da santa glória.
E, noutro tom:
– Descansou.
Durante o velório, Jerônimo, quieto, de olhos compridos ficou ainda mais calado. Não sabia porque, uma garra lhe apertava o peito. Nunca tinha visto uma pessoa morta. Nunca ligara muito para aquele homem enfurnado em um quarto que exalava cheiro morrinhento. A avó levava-lhe mingau, três vezes ao dia, lembrava-se bem. Mas, agora que morrera é que lhe parecia real. E fazia-o sentir que, um dia, também fora real a mãe que nunca vira. Que lhe fora, até então, como Deus, alguma coisa que sabia existir, mas sem noção exata, e sem se importar muito com isso. Ficou olhando Ernesto, de uma palidez arroxeada, naquele caixão de tábuas. A curiosidade foi despertando, e, pela primeira vez, perguntou à velha:
– Vó, como foi que minha mãe morreu? A velha, numa surpresa, levou ao rosto do menino os olhos miúdos, e demorou-se com o olhar sem brilho, para encontrar a palavra na voz cansada. Depois, segurou a mão do neto e arrastou os chinelos até a porta do casebre. O braço esticado apontou a coroa.
– Tá vendo ali? Onde ninguém quer ir mariscar? Foi ali. Quando ela sentiu a dor, era finzinho de fevereiro. Você demorou muito para nascer. Ali, naquele quarto, Ernesto chorava, coitado! soltando uns gemidos horríveis, de quem quer falar alguma coisa mas não consegue senão grunhir. Ernesto gostava muito de sua mãe. Toda vez que ela gemia, a cara dele ficava que nem a cara de um cão danado. No outro dia, você nasceu… Eu não quis mais nem olhar para a cara dela.
Foi nessa hora que a mulher se levantou da cama onde tinha acabado de parir, e entrou no quarto do homem. Viu a máscara de dor no rosto do marido. Os olhos mais expressivos à medida que ia perdendo o uso da palavra, não tinham mais a mansidão habitual, o ar de agradecimento e de resignação. Havia nos olhos de Ernesto uma mágoa tão funda e tão gritante, contraía-lhe os músculos da face e o tornava terrível de se ver. Com aqueles olhos transtornados ele olhou a mulher no rosto demoradamente. Mas a voz parada não conseguia falar qualquer palavra. Que nem maré morta.
Pureza sentiu a mágoa do marido no seu próprio peito. Dentro dela o coração cresceu, cresceu mais até que estourou. E ela cuspiu sangue. E seus olhos choraram sangue.
Foi ai que Pureza saiu e foi andando até a praia e entrou na água. Era fim de fevereiro. Ficou sentada no alto da coroa até que chegou março e a maré subiu e cobriu tudo. E ninguém viu mais nada.
Jerônimo soltou a mão da avó e correu para a praia. A maré estava alta. O menino parou na fita de espuma onde o mar se encontrava com o pedaço de praia que a maré grande ainda deixava. A água fria lambia os seus pés maltratados, de unhas encardidas. Olhou para a água. Viu à sua frente um rastro de sangue que se mexia com o movimento do mar Como uma estranha estrada que se abria levava à coroa.
Fitou os olhos modorrentos. Resoluto o corpo raquítico jogou-se à água e seus braços magros começaram a nadar seguindo o rastro.
Mais uma vez era março.
E havia peixes e siris habitando a coroa.
Todas as águas. p. 17-24, 2016