TRÊS horas ou mais de ônibus. Servílio segue presa da angústia doentia que ultimamente o tomara. O ônibus sacoleja no asfalto esburacado. A noite na janela é como a noite que ocupa os pensamentos de Servílio: entrecortada, sobressaltada, negrume riscado por pontos de luz, imagens tênues, opacas. Servílio quer chegar logo a Salvador, ou que Salvador chegue logo, um pensamento sendo o outro em sua mente agitada. Quer chegar logo a uma resposta. E a resposta está em Salvador, acredita. Depois da reportagem que vira na tevê, não tem mais dúvidas.
Céu, inferno, sofrimento, água fresca, sorriso de Diná, graça, fartura, cansaço, um bom banho, castigo divino, demora. Servílio se ajeita na poltrona, sono perdido, também ele perdido, guiando inquietações tremendas. Não adianta querer dormir, me conheço, fico mais nervoso. Cerca, poste, capinzal, oficina, posto, cerca, alguém no acostamento… bicicleta?
Diná vai entender, eu sei, vai entender. Seu Adão, não. Seu Adão vai ficar puto, chutar lata, esbravejar. Que será que vai dizer desta vez de mim? Eu sei, eu sei. Vai dizer que é mais uma besteira que boto na cachola, que perco meu tempo, o pouco dinheiro que ganho e tal e coisa, que pareço menino abestalhado catando minhoca em terreno alheio, um homem daquele tamanho e idade devia se reparar, vive a olhar para os lados, para outros mundos e não cuida do seu… É, é isso que vai dizer. E vai mandar alguém lá em casa. Aí, então, Diná vai ficar sabendo, mas vai entender, ela vai entender.
Servílio perscruta a noite recortada na janela do ônibus. Franze a testa quando lembra de Diná. Tenta imaginar a expressão dela no momento em que ficou sabendo – pois já deu tempo demais para isso – que ele, Servílio, o marido dela, não estava no trabalho, como deveria estar. Que ninguém sabia onde estava, nem ela mesma sabia. Diná deve ter abaixado a cabeça reparando nas unhas, assim, meio absorta, mas não triste, tem certeza. Triste nunca, pensativa. E nada disse, que não é mulher de ficar de prosa com menino de recado. Diná vai entender, segue pensando.
O problema de Servílio são as coisas da vida, como ele sempre diz. As coisas da vida é que têm atrapalhado seu progresso. É no que acredita e proclama sempre a quem se interessa em ouvi-lo. Principalmente as coisas que não acontecem na vida dele. Acontecem na vida de todo mundo, menos na dele, Servílio. A casa que mora ainda é a que o pai deixou em Bom Jardim. Não pôde fazer nem um puxadinho, um banheiro novo, só arranjos, vê lá uma casa nova, maior. A profissão é a mesma que o pai lhe ensinou de pequeno, carregando tijolo e telha, preparando argamassa até aprender a assentar as peças, alinhar, dar prumo, levantar paredes, virar pedreiro, o que é até hoje. Osório também amassou barro, cal e cimento como ele e virou comerciante em Barreiras, atacadista, de mais de duas lojas de material de construção, que é coisa que sempre dá dinheiro. Hermínio carregou massa em carrinho de mão, tijolo e telha nos braços como ele e virou motorista de táxi em São Paulo, tem outro carro de passeio e até se separou de Joana pra se casar com uma tal de Jaqueline, que nem trouxe pros amigos conhecer. Suzano, este nem criou calo nas mãos. Num instante foi trabalhar em fazenda de companhia estrangeira, virou capataz, administrador, dono de terra com bois, vacas e plantações diversas, anda é de trator.
Ele, Servílio, nada. Nada não, a mesma merda, isso sim, resmunga. Sente um nó na garganta. Não é justo um homem trabalhar de sol a sol e mal juntar o de-comer. Não é justo. Não matei, não furtei, não fiz o mal, só tenho trabalhado um dia enfiado no outro, sem descanso. Mereço uma paga melhor. Se existe Deus nesse mundo, isso tem que mudar. Posto de gasolina, luzes ao longe, cheiro de suor, suor no corpo, ronco do motor, roncos. E Servílio segue averiguando os detalhes da noite, ensimesmado, sem reparar na mulher ao seu lado com um bebê no colo.
A mulher está inquieta. Ajeita o bebê nos braços a todo instante. Vira-se para Servílio quando este resmunga, não é justo, não é justo…
– O senhor falou comigo, moço?
– Hein?! – só então vê que tem alguém na poltrona ao lado.
– Perguntei se o senhor falou comigo.
– Não, senhora. Foi cá comigo… besteira… me desculpe, dona.
Servílio repara então na trouxinha que é o bebê enrolado em panos brancos no colo da mulher. Quieto, quietinho, parece dormir o sono dos anjos. Devem ter entrado na última parada. Admira-se de como isso pode ter acontecido. Se fosse um ladrão teria dele levado tudo, até suas ideias, e ele não teria reparado.
– A senhora está precisando de alguma coisa, dona?
– Não, moço, talvez só chegar logo. Isso sim, seria bom.
– Eu também quero chegar logo, dona. E o menino, que é que tem?
– Não sei, moço. Começou com uma febre, vomitou, não pega nem água. Agora tá assim, molinho. Tô levando ele pra Salvador. Meu marido tá me esperando lá, na rodoviária.
Servílio se cala. A mulher ajeita o bebê, tenta dar a mamadeira com água, talvez água com açúcar, não sabe.
– Olhaí, moço, não tem jeito de pegar o bico…
– Posso ajudar, dona?
– Não tem como, moço. Acho que só Deus.
Servílio lembra-se novamente de Diná. Espia discretamente o rosto da mulher. Quase da mesma idade, a mesma simplicidade no vestir e no falar. Nota que a inquietação dela não está nos gestos, está na respiração, no ritmo um pouco alterado, ponteado aqui e ali por suspiros longos, quase gemidos. Sente que a mulher faz um grande esforço para não demonstrar, mas está desesperada. A situação do garoto deve ser grave. Parece Diná quando a gente fica sem dinheiro em casa, quando eu me dano nos repentes. Um jeito de quem não tem jeito a dar na situação. Que Deus ajude essa mulher.
A mulher curva a cabeça e fica olhando o menino em seu colo. Com a ponta dos dedos afasta o pano do rosto do bebê. Encosta o rosto no dele e fica assim por alguns instantes. Servílio acompanha a cena em silêncio. A lembrança de Diná fica mais forte. Por que não tiveram uma criança, até hoje? Diná e ele, por quê? Lá se vão dez anos de casados e Servílio se espanta: nunca pensou em criança dentro de casa. As tais coisas da vida não deixaram pensar nisso, argumenta consigo mesmo. Talvez tenha pensado, é mais provável. Sente um arrepio longo quando conclui que não só pensou como não desejou ter filhos. Ter criança é só aumentar o atraso da gente, Diná!. E Diná triste, lembra, contaminado pela distante tristeza agora percebida.
Servílio tenta fixar sua atenção nos pontos de luz refletidos no vidro da janela. O ruído do motor, só agora percebe, arranha o silêncio dentro do ônibus feito um motosserra insaciável na mata.
– Segura ele pra mim, um pouquinho, moço? – a mulher interrompe seu devaneio.
– Pois não, dona – estica os braços e recebe o bebê.
A mulher dirige-se bamboleante ao sanitário no fundo do ônibus. Servílio acomoda o bebê em seus braços e espera. Não transcorre um minuto e Servílio sente um aperto no coração. A quietude do bebê o assusta. Algo terrível passa por sua mente. Firma os olhos no pequeno volume em suas mãos. Na penumbra, tenta vislumbrar o rosto da criança, a boca, o nariz, um movimento, um ruído qualquer que denuncie vida naquele corpo.
De repente não tem mais coragem de continuar investigando o molhe de panos e carne que carrega. Servílio sente frio, um frio inexplicável, ocupando a noite represada e úmida dentro do ônibus. Um frio que zune e trava a garganta dificulta a respiração. Servílio tenta não pensar até que a mulher retorne do banheiro. E se ela não voltar? O pensamento irrompe surpreendentemente verdadeiro e inquestionável. A mulher o deixou ali com o menino doente e sumiu! Não foi ao banheiro. Deve ter descido do ônibus. Mas, como?! Um suor gelado empapa a camisa de Servílio, molha seu rosto, enquanto suspende a cabeça procurando por ela em todas as direções.
Traz o bebê próximo ao rosto. Procura sentir a respiração. Não tem coragem de tocá-lo. Treme. Teme pelo desdobramento da situação. Ele, ali, com aquele menino desconhecido, quase morto ou morto, como explicar?
– Me dá ele aqui, moço.
Servílio assusta-se com a voz da mulher ao seu lado. Passa o embrulho aos braços da desconhecida, que o ajeita com cuidado e se acomoda novamente na poltrona. Arrancado assim de suas cismas e temores, Servílio experimenta uma ligeira tontura. O pensamento que o conduzia no carreiro do desamparo teve sua rota alterada pelo alívio de se livrar da encomenda.
Não por muito tempo.
O gemido da mulher eclode e mistura-se aos ruídos do motor, dos pneus no asfalto e do ar deslocado pelo ônibus em seu mergulho na noite. Um gemido que prenuncia tragédia, não dor passageira, pontada qualquer. E se faz choro espremido, nasalado, numa contenção que só a discrição da mulher sertaneja pode engendrar. Servílio apruma-se na poltrona e repara nas palavras que a mulher deixa escapar por entre lágrimas. Nem precisava. Compreende de imediato que o bebê morrera, estava morto, talvez, desde quando estivera em seus próprios braços.
Os roncos e ressonares dos passageiros são substituídos por pigarros, tosses e cicios. A mulher se agarra ao corpo do filho e agora chora, desalentada. As perguntas começam a chegar baixinho aos ouvidos de Servílio, que se vira para um lado e para outro a informar que, sim, o menino daquela mulher morrera, estava doentinho, não, não era o marido dela, seguia para Salvador em busca de cura mas não resistira, não, não sabia a doença, o quê?!, não, não sabia se era contagiosa, não havia por que pensar uma coisa dessas, coitada da mulher! – que seguia a chorar, agora mansamente.
– Não viajo com defunto dentro do ônibus! – a voz esganiçada vem da traseira.
– Que é isso, dona?! É um bebezinho, um anjo, que coisa!
– Mas é defunto. Eu tenho pavor! Manda parar o ônibus! Seo motorista!
– Pelo amor de Deus! Tenha dó! A senhora não tem filhos, não?
Um princípio de confusão agita os passageiros. Alguém abre a porta divisória e conversa com o motorista. Luzes acesas, o ônibus desacelera seu mergulho, despida a tragédia que carrega. Um minuto de silêncio, talvez, aumenta o constrangimento no interior do ônibus. A decisão de aguardar pelo motorista, senhor do passageiro destino de todos, entre eles se instala. E o choro da mãe adquire um ritmo ancestral, quase um cântico de labor ou uma cantiga de ninar desamparada em meio a mais turva e inesperada tempestade.
O ônibus busca o acostamento e para, emitindo um guincho desacorçoado, próximo a um posto de combustível. Servílio acompanha a trôpega movimentação, esquecido de seus propósitos – das respostas que tenciona obter em Salvador, de Diná, do trabalho contínuo que mais parece castigo, da possível demissão que o aguarda no retorno – observando a mulher, a trouxa em seus braços, os desconhecidos rostos que os miram entre estranhamento e horror, ele a compor necessariamente a cena: pai, mãe e filho, e a ausência dolorosa do sopro divino no encontro imprevisto dessas criaturas.
O motorista vem, enfim, até a mulher. Pigarreia, hesita. Isso é muito triste, meus pêsames, mas a senhora precisa entender que Salvador é cidade grande, capital do estado, enterrar gente por lá é coisa muito complicada, ainda mais assim, de morte pública, fora de hospital, vai dar polícia, vão levar o corpinho dele pro i-eme- ele, fazer coisas com ele que a senhora não queira nem saber, então eu acho melhor a senhora ficar por aqui, voltar para sua terra, onde?… Então, não é muito longe daqui, é só pegar carona com um caminhoneiro, ninguém precisa saber que o menino está morto, não é mesmo?, aí a senhora dá um jeito de avisar seu marido, e ele vem pro enterro, é a vontade de Deus, do alcance de Sua mão ninguém tá livre, a senhora pense um pouco e resolva por voltar, que é melhor pra senhora e pra todo mundo, os direitos dos outros, a senhora entende? E se afasta, pois vontade de vomitar pode não ser sua exclusividade.
O ônibus está praticamente vazio, os passageiros discutem enquanto chutam pedregulhos na borda da estrada. Servílio está preso à sua poltrona. Não que lhe falte coragem de pedir licença e saltar literalmente por cima da mulher e buscar o ar fresco da noite. Não, não sabe explicar a si mesmo a companhia silenciosa que oferece à desconhecida.
O tempo… vários automóveis cruzam a estrada, as luzes dos faróis relampejando dentro do ônibus… o tempo… ninguém mais discute o assunto lá fora, cabisbaixos, esperançosos por um deslinde que desatravanque a viagem… o tempo é suor suspenso e frio, conclui Servílio.
A mulher então se levanta, repuxa a saia, ajeita o corpo do filho nos braços. Servílio também se levanta a tempo de ajudá-la a recolher a pequena sacola no bagageiro acima de suas cabeças. Não trocam palavras. A mulher sequer o encara. Mas Servílio não perde um dos seus movimentos em direção à saída do ônibus, até vê-la descer os degraus, a sacola pendurada em um braço, o corpo do filho aninhado no outro. Fica ali, em pé no corredor vazio, sentindo nas mãos uma ardência crescente, como aquela que resultava, em sua infância, de dúzias de bolos de palmatória vibrados pela rija mão paterna.
Os passageiros invadem o corredor, retornando a seus lugares. Servílio cede passagem, senta-se, a mão direita latejante repousada na poltrona vazia a seu lado. Um misto de urgência, impaciência e incompreensão se expõe nos comentários e frases soltas à sua volta. Não bastasse a buraqueira da estrada, um atraso desses, isso dá azar, tomara que a gente chegue em paz, que Deus dê conforto àquela mulher, como é que se atira no mundo assim, com uma criança naquele estado?, quando fico agoniado me ataca uma fome dos diabos, vira essa boca pra lá, não basta o que já aconteceu? E o motor ruge novamente, a marcha de partida é engatada com um estalo, e um solavanco marca o reinício da viagem.
O silêncio volta a assenhorear-se do interior do ônibus, as vozes se calam. Um pensamento parece ocupar a mente de todos: lá fora, uma mulher carrega o produto da morte nos braços, abandonada ao azar que a trouxe até ali.
O ônibus retorna ao leito macio do asfalto e arranca rumo a seu destino. Não chega a sumir na noite. Adiante, para no acostamento, novamente, e dele salta, mochila nas costas, um homem.