Mexendo-se na cama dura, despertando de mais uma noite de sonhos, pegou uma lata velha com que o pai fez um caneco e saiu no pequeno quintal para escovar os dentes. Junior achava seu quintal o maior barato! Bastava enganchar-se no muro que podia ver boa parte da metrópole.Pegou dois biscoitos e saiu comendo rua afora, ainda era cedo para ir à escola, mas, já estava um pouco atrasado para começar seu serviço.
Aquele seria um dia farto. Na noite anterior, havia acontecido o ensaio de uma famosa banda de pagode. Teria material suficiente para vender e conseguir as tão sonhadas três refeições. O pai àquela altura certamente já estava no batente. Saiu de casa antes de o sol nascer, pegou três conduções e andou alguns metros. Serviço nunca lhe faltava. Era dado a tudo: servente, ajudante de servente. Nas épocas boas, arrumava bico até de segurança de festas. Caso fosse festa infantil, e a patroa fosse generosa, voltava para casa com sacolas cheias de guloseimas. Caso a patroa fosse cascuda, enchia os bolsos do paletó, em casa, fazia a alegria do filho.
Junior voltou para casa com o saco cheio de latinha. Precisava amassá-las antes de vendê-las. Achou melhor deixar isso para outra hora. Precisava do dinheiro para poder almoçar, mas tinha dois pães velhos e um pacote de biscoitos. Isso já era um banquete. Pensou um pouco, lembrou-se da promessa feita à professora Maria, prometeu que não faltaria mais à aula naquele ano. Entendeu que o estudo era importante, era sua única esperança de um dia ter uma vida melhor. Não que sua vida fosse ruim, só estava com saudade de comer feijão.
Na escola, a professora Maria o recebeu com um beijo na testa e foi logo
perguntando pelo seu amigo:
— Tem cuidado bem dele?
— Sim, professora.
A professora Maria acompanhava de perto a vida de cada um de seus alunos.
Por Junior foi paixão à primeira vista. Ao fazer a chamada, foi percebendo a sua ausência constante. Foi até à diretoria e buscou informações a seu respeito. Foi até o endereço indicado, bateu na porta do barraco várias vezes, nada. Decidiu voltar outro dia. Um menino se aproximou:
— Tá querendo o que aí, tia?
Logo ela soube que aquele menino era quem ela procurava. Disse que estava com sede, cansada, pediu para entrar e sentar um pouco. O menino de olhos negros como jabuticaba, mandou que ela entrasse. Por um tempo, a encarou com um olhar desconfiado, mas logo deixou escapar um tímido sorriso. E foi com esse mesmo sorriso que lhe falou da sua vida sofrida. No entanto, ao falar da sua mãe, as lágrimas transbordaram de seus olhos. Aí desabafou. Disse-lhe que a vida não seria tão dura se mãe estivesse viva.
A professora Maria tirou do bolso um lápis e lhe deu de presente. Com sua voz doce, lhe disse:
— Este é um lápis mágico. Ele transforma tudo em magia. Basta você
acreditar! Com ele, você conhecerá outros mundos. Mesmo quando tudo estiver difícil, se você crer, tudo irá melhorar. Mas para que isso seja possível você não poderá deixá- lo jamais!
As aulas se tornaram suaves como uma pluma. A escola se tornou seu refúgio.
O bicho papão e o boi da cara preta na capital vivem nas esquinas e nas ruas. Desde muito cedo, a droga persegue o menino que vive no subúrbio. A fome muitas vezes o faz roubar. A má condição de vida o entrega ao descaso sem nenhum remorso. Por sorte, Junior não se deixara amargurar com o fel do sofrimento.
Em seu caminho, a cada passo, Junior ia olhando tudo a sua volta. A falta de saneamento básico da sua rua, do seu bairro, um problema que se estendia por quase toda a capital. Evitou olhar as baratas que passavam por seus pés. Desviou seu olhar para as faces dos soteropolitanos, sorridentes, sempre embalados pelo suingue baiano, cheio de gingado. Em sua dança, alegres, driblavam a dura realidade.
Foi amassando lata por lata, pensando na escola, nos colegas, na professora Maria, que um doce sorriso invadiu seu rosto. A admiração pela amada professora encheu seu peito de esperança. O seu pai entrou de porta adentro quando ele terminou de amassar as latas. Contabilizaram tudo.
— Hoje vamos poder jantar. — disse o pai radiante.
— Mas eu ainda nem vendi as latinhas, painho.
— Guarde esse dinheiro, pegue uma parte para você e deixe a outra pra hora da precisão. Eu recebi o dinheiro lá da obra. Vamos logo que estou com fome!
Bateram a porta do barraco, subiram a ladeira do Tancredo Neves, sentaram na pracinha saboreando aquele jantar improvisado. Antes de dormir, pegou o caderninho que escondia embaixo do colchão ralo, uma espécie de diário secreto, secretíssimo. Só ele sabia da sua existência. Pegou o presente que a professora Maria lhe dera: o lápis mágico. Naquela noite não desenhou um prato de comida como fizera na noite passada.
Por sorte naquela noite, a fome o deixara. Dessa vez, desenhou sua mãe. A saudade sempre o acompanhava. Mas, o incrível lápis mágico tinha o poder de amenizar aquele aperto no seu coração.