1. Não tem nome nosso homem
Personagem tão sujeito
A um tempo mal medido
Onde qual seja o defeito
Não existe pior vício
Que lutar por seu direito.
2. Este aqui será refeito
Sem resina, sem rascunho
No romance de cordel
Que começa no meu punho
E prossegue no gogó
Pra o seu nobre testemunho.
3. Não escondo qual meu cunho
Quando digo, sou cantante
Quando canto, sou palavra
Pra servir ao importante:
Nosso homem, que sem nome
Vocês vão ver adiante.
4. Estatura? É tão minguante
Tão curvado de corcunda
Parecendo um velho, o homem
Mas você não se confunda
Pois te dá murro na cara
E depois chute na bunda.
5. A cabeça? É fecunda
A menor semente brota
Basta uma gota de pinga
E se a fonte não se esgota
Este homem solta pérolas
Como bêbado que arrota.
6. E os pés? São de quem trota
Assim, fora do cavalo
Feito bota de soldado
Que no chão ecoa estalo
Comparados, ao contrário,
Com os sinos de badalo.
7. E as mãos? Palmas de calo:
Um terreno muito duro
De onde brotam dedos grossos
Como troncos de pau puro
Tendo as unhas como espinhos
Se preciso, faz-lhe um furo.
8. Para o corpo não há muro
Se orienta no horizonte
De razão, de coisa exata
Arvoredo, lago, monte
Latifúndio, assentamento
Alambique, praça, ponte.
9. Casa grande, engenho, fonte
Varadouro, lamaçal
Cerca, vala, venda, horta
Plantação, canavial
Armazém, berçário, açougue
Roça, açude no quintal.
10. Cada coisa e coisa e tal
Todas vírgulas e aspas
Tem valor pra nosso homem
Do cabelo, até as caspas
E da doce rapadura
Também doce, suas raspas.
11. Do vinhedo, até as graspas
Os bagaços infelizes
Mais azedos que limões
Da cidade, as marquises
Onde tantos corpos dormem
Tão perdidos, sem raízes.
12. Bem no crivo dessas crises
Ele cresce seu negócio:
“Inventário de Utensílios
Necessários para o ócio”
Nosso homem vende tudo
E faz tudo sem ter sócio.
13. Quase vive em sacerdócio
Nesse mundo de muamba
Tem maraca sem chocalho
Pedaço de corda bamba
Lâmpada para o abajur
Lá bem dentro da caçamba.
14. Lucrativo é ir no samba
No de rua, roda ou roça
Sempre tem um bolso cheio
Uma mão que muito coça
Não aguenta compra algo
Mesmo sendo inútil joça.
15. Cada troço gera troça
Nessa troca, compra e venda
Que se faz a vida vã
Aflição pra ter na renda
Um tamanho sem tamanho
De poupança como lenda.
16. Nosso homem paga prenda
Mas não paga pré-datado
Se dividi não faz dívida
Cobre juros, se jurado
Na justiça nunca foi
Nunca viu um delegado.
17. Mas num samba bem melado
Desses bem “café pequeno”
Aparece sozinho bêbado
Esse apático moreno
Que na mão de nosso homem
Quis comprar capim por feno.
18. Todo clima está ameno
Mas, do nada, rola zanga
A garganta pega fogo
Sobe voz e sobe manga
Quase tem pancadaria
Quebra pau e rasga tanga.
19. “– O moreno é um capanga…”
Alguém diz “do tal Hilário”
E completa “FA-ZEN-DEI-RO…”
Nosso homem, como otário
Desta vez, ficou perdido
Em frente ao adversário…
20. O vencido sai do páreo
Pra sair por cima, além
Esperteza é ser sutil
Guardando o poder que tem
Para mostrar no futuro
Pra fartura que ‘inda’ vem.
21. Se vingar é comer bem
Sobremesa brigadeiro
Num banquete de vitória
Se vingar é ser certeiro
Mas mirar no alvo certo
Isto não é costumeiro.
22. “Castigar o fazendeiro
No coreto d’uma praça”
Nosso homem pensa nisso
Caçador conhece a caça
Não reclama com garçom
Pelo preço da cachaça.
23. Caem folhas, e o tempo passa
Segue a vida o viajante
Vendedor profissional
Sem um sócio ou ajudante
E sem ser ou parecer
De mulher, amor, amante.
24. Mata o tempo num mirante
Junto a lua cor de mel
E faz contas entre estrelas
Do que vende a granel
Cada estrela um trocado
Por dinheiro de papel.
25. Quando vê um carrossel
Que não é constelação
Cintilante, saltitante
Vindo em sua direção
Mas distante vai cair
A causar uma explosão.
26. Nessa imensa solidão
É somente ele quem vê
O estranho carrossel
Que seria pra TV
A notícia mais notória
“Invasão de raça E.T”.
27. Nosso homem não quer crer
Que do céu tenha caído
Um cabrunco monstruoso
Ou parente parecido
E com pressa vai no rastro
Desse rasgo colorido.
28. Bem calado, sem ruído
E a ruína se revela
O revés do desprezível
Uma obra muito bela
Uma colcha de retalhos
E também uma aquarela.
29. Prata, bronze, amarela
Maravilha do espaço
Que no chão se esparrama
Um pedaço por pedaço
Nosso homem vai pegando
Com a força de seu braço.
30. Sendo assim, fica ricaço
Pois repassa cada peça
Pelo preço da vaidade
A balança que não cessa
De pesar a mais pra um lado
Que pareça belo a beça.
Mas não tem nada que meça
Quanto vale o que é belo
Ele vende como quer
A qualquer senhor branquelo
Um a um, cada pedaço
Seja prata ou amarelo.
31. Guarda só um como elo
De lembrança, talismã
De tamanho avantajado
Com formato de maçã
Amarrado na cintura
Num cinto de grossa lã.
32. Uma graça de galã
Agiganta o vendedor
Já não anda mais curvado
Já não dorme em pisador
Já não pisa mais no chão
Feito santo no andor.
33. Uma dose de licor
Algo comemorativo
Começa a ficar banal
No beber repetitivo
Toda dose cresce um dedo
O brinde perde o motivo.
34. Assim alto como altivo
Nosso homem, vendedor
Vira “Barão das Muambas”
Muito mal vai como ator
Com estilo de estábulo
Mas com pompa de doutor.
35. Bem pior é o seguidor
Tipo comum de menino
Da manada dos perdidos
Sem pai nem mãe, sem destino
Um dia se fez presente
Debaixo do sol a pino.
36. “– Se-senhor, grã-grã-grã-fino”
O menino é muito gago
“– Ba-barão das Mu-muambas”
Se corrige num afago
E completa elogioso
“Sua fama é de um mago”.
37. O barão toma um trago
No seu licor de banana
Interrompe o tal menino
Meio de forma tirana
Intimida com sarcasmo
“– Oh, que fama mais bacana.
38. Mas não sou gente cigana
Não sei nada de magia
Não leio mão nem futuro
E mais até te diria
Se não fosse esse calor
Esse sol de meio-dia…”
39. Mas até a noite fria
Se foi indo aquela prosa
O gago caiu no gosto
Do Barão que tanto goza
Da gagueira do menino
De conversa preguiçosa.
40. Já são unha e mucosa
Tanta coisa em comum
E caminham pelos bares
O Barão como bebum
O Gaguinho como copo
Esses dois parecem um.
41. Na ressaca, no futum
Feito morto na gaveta
Agora está o Barão
E o Gaguinho de muleta
Quando surge de repente
Uma tal Mulher-Cometa.
42. “– Eu não sou desse planeta
Vivo além dos hemisférios
Todos os trópicos e tribos
Vilarejos e impérios
Desconheço todos nomes
Dos próprios aos impropérios.”
43. Nessa hora, os dois sérios
Só olhavam quem entrava
Nessa hora um calafrio
A garganta deles trava
Sem a tal Mulher-Cometa
Falasse de forma brava.
44. Dente com dente se crava
Se soltam num grito grave
Se abraçam estabanados
Um beijo bate na trave
Deles tão boquiabertos
Olhos na espaçonave.
45. Um assovio suave
Se ouve e faz remexer
Uma mancha de luz púrpura
De ultra-raios UV
Vendo isso o Barão berra
“– Eu vou parar de beber.”
46. Já o Gaguinho sem dizer
Uma sílaba ou um fonema
Se emudece como doido
Diante de um dilema
Sem ter dica nem ideia
Da solução do problema
47. “ – Eu sou do meio da gema
Desse universo que é ovo
Eu vim aqui reaver
Uma parte do meu povo
Mas aqui não vejo nada
E por tudo me comovo.”
48. Começa o pavor de novo
Se é que se tinha ido
No Barão tem um bolor
Na cara de pão dormido
Miúda, murcha e molenga
Como massa sem amido.
49. E segue o texto temido
“ – Tudo aqui se contradiz
Água falta na cacimba
Mas sobra no chafariz
A farsa vive na farra
A verdade é infeliz”.
50. Ela parece uma atriz
Aos olhos daqueles dois
Tão abertos ao abate
São olhos como de bois
Bem colados, bem juntinhos
Feito feijão com arroz.
51. Ela até diz mais depois!
“ – A miséria é espetáculo
Em cartaz todos os dias
Humildade é obstáculo
E cobiça é força viva
Que faz de braço, tentáculo.
52. Proclamando como oráculo
“ – Tudo aqui tende à baderna”
Da borda de sua nave
De onde sai um tanto terna
A mulher inteiramente
Um museu de arte moderna.
53. Cada olho de lanterna
Tem na íris azul gelo
Gelatina tem nas pálpebras
Bem nos cílios um novelo
E nos nervos das pupilas
O cinza do cerebelo.
54. Cada fio de seu cabelo
Da grossura de um taco
Do tamanho de uma pá
Dessas de cavar buraco
Cabelo é o que não falta
Tem até pelo sovaco.
55. Cada um contorno fraco
Faz parte da sua medida
Parece que foi talhado
Com arte desconhecida
Num pedaço de madeira
Ou numa terra batida.
56. Ela toda bem vestida
Com panos descomunais
De cores de muitos tons
Em traçados diagonais
Que se vistos à distância
Parecem com castiçais.
57. Pra tal corpo não há cais
Se orienta pelo vento
Que sempre sopra respostas
Na porta do pensamento
E leve leva o ouvinte
Para o alto firmamento.
58. Amanhece em um momento
No movimento do sol
Que forte como um leão
Lento como um caracol
Nos acaricia a cara
Com sua luz de farol.
59. Forca vira cachecol
Cachimbo vira enxada
Enxame vira casal
Solteira vira casada
Pois tudo muda de forma
No chegar da alvorada.
60. Uma fera vira fada
Um boi manso, garanhão
O Gaguinho solta o verbo
Largo como palavrão
“ – Pro-pro-prove que é real
Que não é obra do cão.”
61. Ao que completa o Barão:
“– Qual seu nome? Se apresente
Se tem pai, mãe ou madrasta
Se é gente igual a gente
Me diga olhando no olho
Senão é dente por dente.”
62. Diante deles, sorridente
Ela diz sem vacilar
“ – Vocês tem medo de mim
Mas vêm me ameaçar
E por que? Pergunto e digo
Só porque cheguei do ar!”
63. “– O que veio aqui buscar?
Diga logo, criatura
Não tenho medo nenhum
De seu ar e sua altura
Mas é tanto o teu mistério
Mais ninguém aqui te atura.
64. “– Isso na sua cintura”
Ela diz e se aproxima
Quase ao pé de seu ouvido
“– Isso veio lá de cima
É a peça de um satélite
Não é uma obra-prima.”
65. Nosso Barão se lastima
Pensa ser uma mentira
O que diz a tal mulher
“–Melhor era ver safira
Onde havia só vidraça…”
Enfrenta o fato, respira…
66. “Repare seu caipira
Cada um dos coronéis
Que apertou sua mão
Vamos puxar os seus pés
Pois preciso ter de volta
Todo o Satélite-10…”
67. Vão-se os dedos e os anéis
Os cabelos e as coroas
As carroças e os bois
Os barcos e suas proas
Os pobres comem bagaços
Os ricos ainda broas.
68. Podem todas as pessoas
Sentir dor e alegria
Alagados e ressecos
Estão perto de algum dia
Bem cedinho ou muito tarde
Ver fato ser profecia.
69. Agora a coruja pia
Quando os três rebolam planos
Pra lá de mirabolantes
Pra tirar todos tiranos
Pra puxar os seus tapetes
Derrubar todos os panos.
70. Assim vão passando os anos
Indo de ponta a ponta
Mas esse Satélite-10
Finalmente se remonta
Peça a peça se refaz
Na esperteza que desponta.
71. No final de toda a conta
Foi o conto do vigário
A real prova dos nove
Cada latifundiário
Enganado, duas vezes
Fez um monte de otário.
72. O Barão lembra Hilário
Coronel que há verões
Venerado por capanga
Que lhe causou contusões
Se encontra ainda impune
Gozando de seus colhões.
73. “– Mas por que desses vilões
Eu me lembro só agora?”
Ele estranha, ela explica
“Eu preciso ir embora
E você não quer que eu vá
Quer ajuda nessa hora.”
74. A lua a noite decora
Quando eles se encaram
“– ‘A Rainha das Muambas’
Assim todos me declaram
O que você acha disso?”
De se beijar não mais param…
75. No Gaguinho nem reparam
Entupido por espanto
Apartado do casal
Cauteloso no seu canto
Gaguejando bem baixinho
“Me-me-me-meu san-san-santo.”
76. O amor é feito um manto
Que bem feito, em boa renda
Não se rasga, é resistente
É terra que não tem fenda
Esse manto que é o amor
Desconhece o que é emenda
77. Mas amor não é fazenda
Não dá fruta nem espiga
Nem aspargo nem maçã
Talvez dê dor de barriga
Às vezes dor de cabeça
Com certeza amor dá liga.
78. É cigarra com formiga
Carretel com toda linha
Aleijado com atleta
É vizinho com a vizinha
Sendo assim parece bom
O Barão com a Rainha.
79. “ – Você vem de além da linha…
Vai voltar quando preciso
Sem ter pressa, eu te peço
Pelo bem do meu juízo
Senão, juro, vou beber
Para o bolso ficar liso…
80. E por isso deixe um guizo
Eu grudar no seu pescoço
Peço permissão, Rainha
O ‘Barão’ agora é moço
Que só quer que sua volta
Tenha força de alvoroço.
81. Quero ouvir num fundo poço
O anúncio de uma festa
Que será sua chegada
Seja na hora da cesta
No silêncio anoitecido
Ou num dia de seresta.”
82. Esta ideia ela detesta
Não aceita como afeto
A feiura descabida
De prender um objeto
Barulhento no pescoço
E dá logo um papo reto.
83. “ – Não se pense o predileto
O mais belo dessa raça
Meu rapaz, não seja tolo
Que beleza logo passa
É papel que se amarela
Que se rasga ou se amassa.
84. Farei sinal de fumaça
Na melhor das opções
Posso até fazer barulhos
Mas serão feito canções
E se caso não regresse
Restarão recordações”
85. Cada qual a ter missões
Mesmo em rumos diferentes
No destino que é comum
Os caminhos são as correntes
Que não correm com a pressa
Não tem prazos insolentes.
86. Neste instante, em suas frentes
Veja o que reaparece
Saltitante, cintilante
O carrossel que carece
Desse tal Satélite-10
Vai girar como merece.
87. Vai pintar o que perece
Deixar cor onde se meta
Melar a tudo e mudar
Levando a Mulher-Cometa
Como se fosse ela toda
Um sabugo de gameta.
88. “– Meu Barão, não se acometa
Me tenha já na lembrança
A ‘Rainha das Muambas’
E não perca a esperança
De um dia me rever
Pela sua vizinhança.
89. Esqueça toda vingança
Ganhe o mundo com AMOR”
Montada no carrossel
Que sai sem fazer furor
Porém faz um furo fundo
No peito do sofredor.
90. É frondosa toda dor
Que não dosa a covardia
Corajoso é quem aguenta
Angústia e não arredia
Arranca o mal pelo toco
E toca a vida sadia.
91. Passa noite, passa dia
O Barão só quer licores
Agora que ela se foi
Vive o vício dos sabores
Sem dosagem decisiva
Se transborda pelas dores.
92. O gaguinho nos horrores
De honrar o seu lugar
De escudeiro do Barão
Beira ser um arruar
Pra o patrão sempre bêbado
Que não pode nem andar.
93. Alambique vira lar!
Aluguel se lhe cobrasse
Não seria indevido
Ou imposto, até passe
Pois passou de ser freguês
O Barão de baixa classe.
94. Na clausura de um impasse
Encontra-se nosso enredo
Nosso homem empobrece
Porém não demonstra medo
É maduro ou mesmo podre?
Quando pobre será ledo?
95. No luar mais brando e cedo
De manhã, mas bem cedinho
Na surdina da alvorada
Vai se embora o Gaguinho
A seu modo demorado
Devagar, no miudinho.
96. A ressaca hoje é de vinho
Bem pior pra se estar só
Sobre o solo onde desperta
Sem coberta nem filó
Fornicado por mosquitos
De maneira que dá dó.
97. Inda assim toma goró
Pra curar sua ressaca
Logo mais fica sem teto
Vai viver numa barraca
Na espera da Rainha
O Barão é um babaca.
98. Lhe espera uma maca
Meio cova, meio vala
Vem a ele um coronel
Lhe encara, depois fala
“– É você que foi Barão?
Parabéns, que bela sala!”
99. “– Saia já, ou meto bala”
No balanço que faz, cai
E começa a gritar “– Gago,
Pega ele, pega, vai…”
Mas se vê como o Gaguinho
Sem ninguém, sem mãe, sem pai.
100. A ressaca lhe recai
No juízo, nos joelhos
E nas pernas bambas-bambas
Também nos olhos vermelhos
Mal se movendo, pesados
De pesadelos pentelhos.
101. “– Onde estão teus aparelhos?
As muambas tão famosas
Dizem que você agora
Notícias capciosas
Coisas das piores línguas
Vende as ervas perigosas”.
102. “Não sei de ervas nem rosas
Essas coisas que insinua
E se você não sair
Será jogado na rua”
Rudemente, o Barão
Diz ao coronel na sua.
103. Um avança, outro recua
O coronel tranquiliza
O Barão que cospe fogo
Mas gente assim não se alisa
É linha fora do esquadro
Quilo fora da baliza.
104. O Barão radicaliza
Dá-lhe uma cusparada
Na cara do coronel
Caricatura corada
Redonda e sorridente
Agora se vê irada.
105. Nessa hora ensolarada
Alaridos de trovão
Invadem a vizinhança
Na forma de um palavrão
Sai voando revoada
Do ninho de cada vão.
106. “Você cutucou carvão
Que já não estava em brasa
Você, bicho que rasteja
É presa do que tem asa”
O coronel ameaça
“Se afoga em água rasa.”
107. “Saia já da minha casa
Ameaça não me afronta”
Diz o Barão das Muambas
Com uma peixeira pronta
Praticamente sem corte
Contudo ainda amedronta.
108. “Por que você me confronta?
Eu queria te ajudar
Juízes juraram juntos
Numa jaula te jogar
Por joias de uma jazida
Dizem, interestelar”.
109. Então começa a falar
Limpando o cuspe com asco
Mesclado a rancor e mágoa
“Mas seu couro ainda lasco
Jegue, jumento, cavalo
Que não vale nem o casco”.
110. “Coronel, palha que masco
É sem custo, e vale mais
Do que você, seus irmãos
Suas irmãs e seus pais”
Responde rapidamente
Como coices animais.
111. Nasce a raiva dos rivais
O Barão sem nem saber
Que o Coronel era Hilário
Não pode o reconhecer
Uma vez que seus sentidos
Estão fracos de beber.
112. Depois, sem nem perceber
Depõe em um tribunal
Banido pela justiça
Estrebaria na qual
O direito de um humano
Não vale o de um animal.
113. Nosso Barão, um banal
Cabra sem valor equestre
Solta um berro pra falar
“ELA ERA EXTRATERRESTRE”
Respira; segue depondo
“Não era comum pedestre.
114. Posso jurar pelo Mestre”
Mas não tem quem o socorra
Da raiva dos coronéis
“ELA ERA UMA CACHORRA”
Xinga o Coronel Hilário
“… Eu quero mais que ela morra”.
115. Segue como uma gangorra
A gritaria de insultos
Intoleráveis a ele
“Duvido serem adultos
De dois em dois, vêm na mão”
E aumentam os tumultos.
116. Nosso Barrão sem indultos
É condenado à prisão
Sem brisa ou luz do sol
Sofre sua reclusão
Que dura até que se pague
Enorme indenização.
117. “Pago tostão por tostão
Sem gastar minha energia”
Assim chega o Gaguinho
O Barão sai sem vigia
Espantado e curioso
“Como foi isso, magia?”
118. “Foi só fonoaudiologia
Uma coisa da cidade
Que me curou da gagueira”
O Barão ri de verdade
“O que foi? Eu gaguejei?
Diga, com sinceridade.”
119. “Era pela liberdade
Que perguntava, Gaguinho”
Se explica e depois replica
“Gago nem mais um tiquinho
Fique bem tranquilo, amigo”
E seguem num só caminho.
120. Amigo não é mesquinho
O chiclete que ele masca
É capaz de repartir
Até mais que uma lasca
Pois com ele não tem dessa
De comigo ninguém tasca.
121. Amigo é como uma casca
Que nos cobre da nudez
Uma nuvem que faz sombra
Pra tirar a sisudez
Uma pedra lapidada
Que aconselha na agudez.
122. Amigo até na mudez
Nos diz palavra de ordem
Diante de um só comando
Pode ser que não concordem
Contudo segue a amizade
Até na maior desordem.
123. Pra que seus braços engordem
Um bom banquete ao Barão
Seu amigo lhe oferece
“FEIJOADA COM PIRÃO
Compense o tempo perdido
Maus dias não mais virão”.
124. Em breve eles voltarão
Para a vida muambeira
O Barão junto ao Gaguinho
Da conversa mais ligeira
Vão gerar novos negócios
Mais frutíferos para a feira.
125. O Barão está na beira
Do abismo de uma vida
Inerte, na queda livre
Ou na lágrima dissolvida
De si próprio deprecia
E de tudo mais duvida.
126. “Alguma estrela atrevida
Deve trazê-la de volta”
Fala sozinho, o Barão
“A saudade não me solta
Uma sombra da Rainha
Me arrodeia, me escolta”.
127. Seu amigo se revolta
“Você tem que trabalhar,
Barão… Barão,” E repete
Como fosse gaguejar
Mas engasga tão-somente
Sem ter mais o que falar.
128. Todo santo quer altar
Todo mar quer tá pra peixe
Nem todo facho se aquieta
Nem todo lume tem feixe
Troque a parte pelo todo
Contudo não se desleixe.
129. “Quero que você me deixe
Só, deitado, como em coma
Numa cama de hospital
Eu sinto que estou em Roma
Depois dessa última chama
No vazio que tudo toma”.
130. “Não sabe mais fazer soma?
Meu Barão, eu lhe pergunto.”
“Não me chame assim de ‘Meu’…
Me lembro dela de junto
De mim quando eu era um vivo
Agora eu sou um defunto”.
131. Não se fala nesse assunto
Não existe mais trabalho
Ao Barão desnorteado
Em um rumo sem atalho
Rumo a seu final de linha
Na corda de um duro galho.
132. O Barão se foi paspalho
Para uns, vaga em um vale
Meio vivo meio morto
Pra outros, chega de xale
E fala fantasmagórico
“Por amor não morra, fale.
133. Por amor cante, não cale”
Uma lenda ele virou
“VELHO DO XALE DE CORDA”
O ex-gago então pirou
Sem amparo, na loucura
Num hospício expirou.
134. Num lugar do céu mirou
Reclamou com a Rainha
Suas últimas palavras
Foram em tom de ladainha
Com altura de buzina
“Me tira daqui, mainha.”
FIM