A Kombi deu um solavanco ao tentar evitar os buracos que pontilhavam quase toda a pista. Sacudia para um lado e outro do asfalto que corria sinuoso, iluminado pelo farol até se perder lá atrás na escuridão do Km. 17 da Estrada Velha do Aeroporto.
Flávio não gostava da ideia de estar ali, àquela hora da noite: já estava longe o tempo em que aquele era apenas um lugar bucólico, aonde ia com o pai, no velho dekavê azul, comprar leite nas fazendolas; hoje o lugar fora reduzido a algumas dezenas de pontos de desova de cadáveres pelos grupos de extermínio que se espalhavam, silenciosamente, nos últimos 20 anos, na periferia da Grande Salvador. Mas a velha lhe garantira que a fonte era segura.
A Kombi sacolejou mais uma vez e entrou por um desvio, à direita, até uma cancela onde três homens aguardavam.
– Aí estão eles, bem no lugar acertado. A velhinha não falha, nunca! – disse o rapaz, que fora incumbido de levá-lo até o local. A mulher advertira Flávio de que não poderia ir com o carro do jornal, nem acompanhado do motorista, daí a razão dele estar ali, sozinho, na Kombi velha, com o rapaz que ela mesma lhe indicara. Aproximaram-se dos homens, que falavam baixo. Flávio só podia ouvir o murmúrio em meio ao canto das cigarras. Aguardaram um sinal. Colocou as mãos à vista, abriu a porta lentamente. Apresentou-se: Flávio de Souza, repórter policial do jornal A Tarde.
Do jeito que estavam, continuaram: calados, sérios, apenas olhando.
O rapaz sorriu. Disse que Flávio estava muito formal, que não precisava aquela seriedade toda, afinal de contas, estavam entre amigos. Ofereceu duas garrafas de cerveja que retirou de uma caixa de isopor, no fundo da Kombi. Perguntou sobre as mulheres, os meninos. Logo estavam sorrindo enquanto lançavam, de vez em quando, olhares atravessados para Flávio. Ou seria impressão dele? Oh, a velha paranoia! Ele aceitou a bebida, deu uns três goles e foi direto ao assunto. Queria começar logo a entrevista, sair daquele lugar, o mais rapidamente possível.
– Vocês devem saber do que vim tratar aqui. Tenho informações de que existem cultos religiosos, digamos, estranhos, nesta região. Falaram-me de rituais de magia, houve até um negócio de um sacrifício, que a polícia investigou, mas não deu em nada.
Acendeu um cigarro. Olhou em volta. Todos quietos, observando. Percebeu que estava sendo precipitado, mas continuou: Ela disse que podem dar informações valiosas sobre o assunto, para a reportagem que estou escrevendo. Falou com a voz firme, mas não pôde evitar o calafrio que lhe subia pela espinha. Pela primeira vez percebeu como estava vulnerável. Como estava com medo.
– Ela disse que eu devia conversar com Odair. Quem é o Odair?
Diabos. Um milhão de diabos o levaram ali. Tudo por causa de uma conversa inocente na hora do jantar há cerca de um mês. Havia lido uma reportagem na revista Manchete sobre rituais de magia negra, sacrifícios de crianças e outras dessas barbaridades de extremo mau gosto, fruto da miséria, da ignorância, da insanidade. Mas que estavam ocorrendo de forma cada vez mais frequente no País. Comentou alguma coisa sobre isto, com sua mulher, à mesa, quando a empregada interessou-se pela conversa, aproximou sua cara negra reluzente dele e garantiu que havia, sim, muitas daquelas práticas, lá mesmo onde ela morava, no Subúrbio Ferroviário. Havia casos, cochichados aqui e ali, de raptos de crianças, pobrezinhas, para esses sacrifícios, veja só que miséria que essa gente faz, não é seu Flávio? Sim, sim, mas ela sabia de alguma coisa mais concreta? Um fio da meada através do qual pudesse puxar essa história?
Ah, esse maldito repórter que fica o tempo todo agachado, no fundo sombrio da mente, com seus ouvidos alertas, seus olhos atentos e sua imensa curiosidade.
Ela hesitou, o que deu mais veracidade à coisa; olhou pra cima, sorriu, e o encarou.
– Sim, eu sei de um caso verdadeiro que ouvi lá em São Tomé de Paripe, mas, seu Flávio, ninguém pode saber que eu estou falando isso aqui pro senhor… – olhou em volta, como se as paredes ganhassem, de repente, alguns bons pares de olhos e ouvidos. Contou, entre outros detalhes escabrosos, que uma mulher, exorcizada pelo pastor, dissera ter encomendado o serviço a um sujeitinho miserável, que prendeu uma criança num quartinho e, após tê-la esfaqueado, arrancou alguns membros, espargindo sangue nas paredes. Flávio ficou horrorizado. Causava-lhe espanto a ideia de que pudesse existir uma corrente subterrânea de práticas e rituais que só muito raramente chegasse ao conhecimento da sociedade. Recordou-se que, há cerca de quarenta anos, oito crianças foram mortas pelos próprios pais, seguidores de uma seita Pentecostal que as afogaram nas então desertas praias do Flamengo, próximo a Lauro de Freitas. Um crime chocante, mas que não passou de um caso isolado de loucura e ignorância. Eles acreditavam cegamente – e reiteraram isso diversas vezes – que estavam fazendo o “bem” para as crianças, que sairiam de um mundo de miséria e sofrimento para renascerem no Paraíso. Havia, entretanto, uma diferença entre esse acontecimento, monstruoso, mas até compreensível, e um sistemático sacrifício de crianças que seriam raptadas, exclusivamente, para esse fim. Havia referências, segundo informações esparsas, a essa prática em diversos países. Casos explícitos de satanismo, tanto no contexto cristão como de práticas esotéricas e de cultos afro-brasileiros – em todos os casos, caricaturas grotescas das religiões formais. A coisa ficava ainda mais assustadora quando se verificava um crescimento no número de crianças e adolescentes desaparecidos em todo o país. E era estranho o silêncio da sociedade e das autoridades em torno dessa questão.
Um dos homens, um sujeito magro, de cabelos castanhos e de olhos azuis, aproximou-se, pediu um cigarro, esboçou um riso que, em outras circunstâncias, poderia definir como simpático.
– Fique tranquilo, mano. Podemos falar sobre o que você quiser, mas não precisa esse avexamento todo. E você nem deu tempo de eu me apresentar! – Estendeu a mão.
– Odair.
Marilda, a empregada, aceitou, após muita insistência, levá-lo ao culto de uma dessas igrejas evangélicas que vem se multiplicando, como coelhos, nas periferias das grandes cidades, e onde, segundo ela, ouvira a história do sacrifício do “pobre anjinho”. Deixou o carro estacionado próximo a um bar, onde ela lhe garantiu que não seria depenado. Atravessaram ruelas sujas. Chegaram finalmente à igreja onde os fiéis, metidos em paletós e longos vestidos, conversavam em voz baixa. Ainda não havia começado o culto, aquelas pessoas todas gritando e os exorcismos – vejam só, quem diria que uma prática da Idade Média ressurgiria assim, sem mais nem menos, não em casarões sombrios e mal assombrados, mas numa esquina de cada rua de uma grande cidade, em pleno século XXI, e os exorcistas sem mais nenhuma pompa devolvendo o chifrudo lá pros quintos dos infernos.
Cruzaram o salão, entraram numa sala menor, ao fundo. Marilda o apresentou ao pastor, um homenzinho de seus 1,60m, cara redonda, cabelos lisos, brilhantinados. Ela foi dizendo esse é o meu patrão, o jornalista que lhe falei, ele apertou a mão de Flávio com uma mãozinha suada e fria, indicou a cadeira, sentou-se na frente dele. Flávio foi direto ao assunto. Ela me disse que o senhor tratou aqui do caso de uma mulher…
– Sim… A mulher que fazia trabalhos pra Exu Caveira – sorriu sem jeito, como se desculpando por falar naquele assunto.
– Mas ela confessou pro senhor que o assunto era sério. Que envolvia sacrifícios de menores…
– Bem, não foi propriamente uma confissão. Ela falava com um certo… orgulho. Como se estivesse contando um grande feito… entende?
Muitas coisas acontecem por essa área, disse Odair, virando o copo da cerveja entre os dedos. De fato, trata-se de uma extensa área semi-rural, situada entre a estrada do Centro Industrial de Aratu e a Avenida Dorival Caymmi, e por onde se conectavam diversos bairros, como São Cristóvão, Itinga e Jardim das Margaridas. Engraçado que o lugar ainda preservasse o seu jeito bucólico, mas havia uma atmosfera que não permitia ver qualquer coisa de agradável naquelas quebradas.
– Dona Valdinéia disse que você pode me dar informações valiosas para a investigação que estou realizando.
– É mesmo?
– Podemos falar sobre a garota?
– Você tem certeza que quer meter mesmo a mão nessa cumbuca?
O pastor não adiantara muita coisa inicialmente, puxava o fio de uma conversa fiada que não se desenrolava, e tiveram que retornar lá, algumas vezes, no culto, Flávio achou que tudo aquilo era apenas um artifício para convertê-lo.
– Mas, ô pastor Edilvandro, o senhor poderia ser mais preciso?
– Preciso? Como assim preciso?
Conseguiu, finalmente, convencê-lo a dar o nome da mulher que teria participado do ritual. Morava em algum lugar de Coutos, mas, porra, pastor, desculpe a expressão, Coutos é um bairro grande pra caralho! Marilda interferiu, disse que Flávio era uma boa pessoa, uma pessoa importante, um homem direito, que não iríamos dizer quem nos deu o endereço.
– Está bem – disse o pastor passando um lenço no pescoço.
Dias antes Flávio topara, meio que por acaso, num restaurante de Barra Grande, na Ilha de Itaparica, com um advogado, que atuava, “há quase quarenta anos”, na área penal. Havia, segundo ele mesmo disse, defendido um bandido que frequentou muitos meses as páginas policiais até ser eliminado pela polícia. A certa altura da conversa, arriscou perguntar sobre o sacrifício de crianças. Existia, de fato? A princípio o homem negou ter qualquer informação sobre o assunto, mas logo, sem grande esforço, falou, com estudada indiferença, sobre um fato marcante da crônica policial local: o assassinato brutal de uma jovem de 15 anos numa área isolada da Estrada Velha do Aeroporto. O crime, destacado na época – há cerca de vinte anos – pelos jornais, caíra no rol dos insolúveis e nunca mais se falou sobre o assunto. O que não deixava de ser estranho haja vista os requintes de crueldade a que a vítima, cuja identidade até hoje permanece desconhecida, fora submetida. Ela fora amarrada, nua, nas raízes de uma jaqueira centenária, com as pernas e os braços abertos. Teve a cabeça raspada e o pescoço cortado por uma lâmina fina que praticamente separou a cabeça do corpo.
– E as investigações? Quem as fez? Aonde chegaram?
Elas tinham sido feitas, disse o homem, com um estranho tique que o fazia olhar continuamente para os lados, pela equipe do delegado Osório Sampaio, o mesmo que caíra em desgraça após ter sido envolvido, involuntariamente, em problemas relacionados a roubos de banco e ao assassinato de três agentes da Polícia Federal.
– Isto aconteceu – disse ele –, justamente quando realizavam o cerco final aos assassinos da moça. E todo mundo sabia que ele era inocente, que não tinha nenhum envolvimento com o crime.
A tragédia pessoal do delegado, então preso numa cela especial da Secretaria de Segurança Pública, fora, segundo o advogado, resultado das “forças ocultas” contra as quais estava lutando.
– Forças muito perigosas – disse. E, depois de alguns segundos em silêncio, acrescentou – Mas alguém precisa fazer alguma coisa, não é? É preciso eliminar o Mal. Falou, em seguida, sobre o sofrimento das mães e das crianças que são vítimas desses crimes. – Uma barbaridade, não é?
Bem, a verdade é que Flávio já estava com a mão metida na cumbuca, de forma que sua resposta para o Odair foi simples e direta. Sim, já estava enfronhado mesmo naquele maldito negócio. E precisava de informações. Informações que o levassem a uma daquelas pessoas. Você sabe de tudo o que acontece nessa região. E casos assim não podem passar totalmente despercebidos, não é, Odair?
Flávio chegou ao quinto andar da Secretaria de Segurança Pública na manhã seguinte à conversa com o advogado. Identificou-se como repórter do jornal A Tarde, “o maior do Norte e Nordeste”, e não teve nenhuma dificuldade para chegar à sala onde o ex-delegado estava detido, aguardando julgamento. Era um homem simpático, sóbrio, elegante, cordial, um gentleman, com um toque de dignidade na expressão, nos gestos comedidos. Altivo. Não foi como um homem derrotado que o encontrou. Conversava com uma mulher gorda, de seus 35 anos, e com um homem de meia idade. Ao notarem a presença do repórter, concluíram a conversa e logo Flávio se viu a sós com ele.
– Delegado, quero expressar, antes de mais nada, a minha admiração. As referências que tenho do senhor sempre foram as melhores possíveis. Mesmo depois desse fato lamentável – ao dizer isso, apontou, não soube por que, para o fundo da sala onde, a contragosto seu, havia uma barata morta, com as pernas para cima.
Conversaram sobre a triste situação da nossa outrora bela Salvador, hoje cercada por invasões. E da violência que parecia, cada dia mais, sem controle. Pensar que há pouco mais de dez anos caminhávamos pelas ruas, a qualquer hora do dia ou da noite, sem a mínima preocupação quanto à nossa segurança. Houve um inchaço na cidade, fruto de uma política de desenvolvimento caótica e perversa. Um abandono terrível das populações das periferias. Pessoas desassistidas, comunidades inteiras vivendo ao léu, sem infraestrutura de água e esgoto, sem áreas de lazer, sem escolas, sem teatros, sem bibliotecas. Pessoas, em sua grande maioria, honestas. O ex-delegado enfatizou a última palavra. Após uma pausa, acrescentou: Eu sempre fiz questão de dizer isso aos policiais sob o meu comando: não os tratem como marginais. 98% dessas pessoas são honestos pais de família, mulheres trabalhadoras, jovens que aspiram por uma vida decente. Uma vida que, entretanto, poucos, muito poucos, encontram…
Seguiu-se um silêncio, após o qual, como se acordasse de repente de um devaneio, voltou os olhos para Flávio, e perguntou: “Mas o que você quer saber de mim?”
Falou sobre a investigação que estava realizando. Ao fazer a referência ao crime da Estrada Velha do Aeroporto, notou uma expressão de contrariedade no rosto do delegado.
– Não quero mais falar sobre esse assunto – disse ele, acrescentando que não sabia mais nada dos rumos que a investigação havia tomado após a sua prisão. Admitiu, entretanto, após alguma insistência, a possibilidade de ter sido vítima de uma energia muito ruim cuja origem pode estar relacionada àquele caso.
– Na época, as investigações ficaram confusas, não chegavam a lugar nenhum. O agente que estava à frente do caso teve problemas de saúde e na vida pessoal, e eu fui envolvido sem mais nem menos nesta situação da qual tenho a minha consciência limpa. Eu não matei ninguém. Não fui cúmplice de crime algum. Apenas hesitei em tomar uma atitude, em prender pessoas que eu não sabia que eram criminosas.
– A questão – continuou após uma pausa. – A questão é que, enquanto um ator tem dez chances para fazer uma cena, o policial só tem uma.
E acrescentou, com uma expressão melancólica.
– Em nossa profissão, não existem ensaios.
Flávio saiu da SSP com um sentimento de tristeza pela má-sorte daquele homem, que seria absolvido num julgamento anos depois. Quanto à investigação, não avançou nada. Ou quase nada, à exceção do nome do delegado, em cuja circunscrição estava a área onde ocorrera o crime e que, segundo Sampaio, tinha a posse dos documentos referentes à sua investigação.
Odair sorriu. Havia alguma coisa estranhamente agradável no seu sorriso. Flávio estranhou a ideia de que simpatizava com o filho da puta. Estranho isto, simpatizar com aquele sujeito esquisito, quem sabe um bandido que poderia, com a maior tranquilidade do mundo, meter-lhe uma bala na cara. Mas sentia uma familiaridade estranha com o homem que continuava fumando e bebendo a cerveja em goles pequenos. Perguntou como havia chegado até ele, “que coisa estranha, não é? Afinal, o que eu tenho a ver com este assunto?”.
Flávio explicou que havia ido à Delegacia, que havia consultado os arquivos, falado com o delegado, um sujeitinho cínico, que ficava o tempo todo olhando para sua cara, como se não acreditasse que ele estivesse ali, que remexeu numas pastas velhas, que havia conversado com um ou dois policiais, que havia feito isto e aquilo, e que estava saindo de mãos vazias, quando uma mulher de cabelos avermelhados e pele branca e enrugada, magra, miúda, que fazia o serviço de faxina na Delegacia correu atrás dele, quando já quase virava a esquina. Disse-lhe, num tom de voz baixo, próximo ao seu ouvido esquerdo, que ouvira a conversa com o delegado, que a investigação ali não ia dar em nada, mas que podia me dar uma pista… um nome.
– E daí?
– Ela me deu o seu nome.
Fez uma pausa, e acrescentou:
– Disse que você não recusaria o pedido de uma velha tia que já lhe exigiu tantos sacrifícios… que você entenderia a importância desta mensagem.
Sentiu, por alguns segundos, após ter dito essas palavras, que o clima ficou um pouco esquisito. Lembrou que ela acrescentara outras palavras, mas que ele não entendera bem. Algo a ver com um anagrama. Com um segredo que lhe seria revelado.
Odair ficou, alguns segundos, em silêncio, mas logo recuperou o sorriso, pegou mais uma lata de cerveja e disse em voz alta.
– Este aqui não tem medo mesmo de botar a mão na cumbuca!
Aproximou o rosto do dele, e, com um sorriso mais largo, disse: Eu gosto muito de ver pessoas assim, corajosas.
– E então? – Flávio perguntou, esforçando-se para manter a voz firme.
Odair olhou para ele, e sorriu.
– Você quer saber por que esse tipo de coisas acontece, não é? E porque quase sempre assim… nesses espaços vazios das periferias, dos subúrbios, dos arrabaldes. Talvez seja porque não queiram que as pessoas possam ouvir os gritos. Você sabe, mano: essas coisas doem… muito.
Odair irritava Flávio com seu jeito vago de falar sobre o assunto. Mas suas palavras mantinham vivo o seu interesse.
– Daí a razão de ter acontecido um caso aqui nesta região?
– Um?
– Você sabe de outros?
Odair não respondeu. Continuava sorrindo.
– Por quê? – Flávio insistiu. A chance era agora, e ele tinha que saber.
Odair parou de sorrir, pensou um pouco e, finalmente, falou.
– As distâncias, mano. As distâncias e o isolamento são importantes desde que se trata de sacrifícios que os não iniciados poderiam chamar de… cruéis. Cruéis no sentido de sanguinários, cruentos, nos quais se usam, quase sempre, armas brancas, que cortam, retalham, que sangram, que provocam expectativa, medo… horror. É preciso haver um ritual, o que exige preparo e uma certa organização. Que exige, pelo menos, três pessoas: aquela que oferece o sacrifício, o sacrificador e a vítima sacrificial. Não é tão simples quanto parece.
Flávio esperava que, a qualquer momento, ele revelasse o segredo. Odair voltou seus olhos azuis para ele. Flávio sentiu como se lesse seu pensamento, como se lhe desse, ainda, uma última chance de escolha. Pensou mesmo em voltar atrás, mas era impossível: ele já havia sim metido a mão na cumbuca. Ele queria saber o segredo. Oh! O Mal! O Mal…
– Vou abrir o meu arquivo para você – disse Odair, agora sério. E, encostando a boca em seu ouvido esquerdo, disse-lhe as palavras.
Flávio, por alguns segundos, jactou-se da sua sorte, vibrou com a possibilidade de escrever a sua reportagem, de revelar algo mais do que uma mera exposição de fatos, de ir até a essência do fenômeno, do Mal, até perceber, no rosto sério dos homens que o cercavam, que ele, agora, irremediavelmente, sabia demais.
O recado da velha… a senha! O anagrama: Odair. Odair…
– Odiar!
Tentou ainda dizer alguma coisa, quando sentiu a lâmina rasgando sua barriga. Rasgando!… rasgando?… Não, não podia acreditar que aquilo estava acontecendo! Não terminaria sua vida de repórter sabendo um furo de reportagem que não poderia revelar. Um segredo inútil, pensou. No último segundo, pôde entender o que era um sacrifício. E lembrou-se das palavras de Odair: a crueldade… carnes dilaceradas, sangue, sangue… sangue.
Enquanto caía, lentamente, para trás, ainda pôde vislumbrar o sorriso de Odair. Um sorriso… simpático. E foi este o seu último pensamento.
– Ainda bem que a velha conseguiu identificar este sacana a tempo – disse o rapaz, que dirigia a Kombi, olhando o homem, que agonizava, aos seus pés. – Ele não era do tipo que desiste fácil. Agora, temos que desovar logo. Você sabe: cadáver de jornalista fede como quê. Até mortos os filhos da puta são perigosos.
Odair olhou, por alguns segundos, o corpo estendido no barro, com as vísceras expostas.
– Engraçado, havia alguma coisa familiar nele. Como se eu já o tivesse visto, aqui mesmo, quando era menino. Meu pai costumava vender leite nesta região. Você pode não acreditar, mas este era um lugar muito tranquilo.
Publicado na antologia Contos cruéis – As narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea, organizada por Rinaldo de Fernandes. São Paulo: Geração Editorial, 2006.