O contato com o universo de Elomar Figueira Mello possibilita ao analista experienciar a confluência constante que o autor imprime à comunhão da atividade vivencial à criadora. Enraizado no seio de uma terra fendida pelo sol e umidecida pela crença em sonho reparador, arquiteta casulos – “bolhas” – dentro do sertão sensível que se entretecem como marcas de resistência e remissão. Constituem-se de portais, passagem para outra espécie de realidade espaço-temporal em que a recuperação de valores ancestrais, éticos e morais se tonificam numa entrecortada cadência de sons e vibrações que, embora se façam pertinentes à possível realidade histórica, muito mais repercutem sabedorias de instâncias idealizadas, gozosas, edenificadas, imemoriais:
Sertano e os seus contemporâneos vivem dentro de um sertão fechado, ele tem uma fronteira invisível, uma dimensão que o fecha, e para se entrar nesse sertão, tem um portal a atravessar. (…) tem vários portais para o sertão profundo, eles são bolhas dentro do sertão físico.
O discurso vivencial do artista serve de sustentáculo para a passagem para outro universo – paralelo – onde tudo se possibilita redimir e vitalizar. E mais, em dada medida, os limites reais – se assim se pode, entre um e outro, referir – por vezes se confundem e o indivíduo que há em Elomar se deixa percorrer pelo aspecto convulso da genialidade criadora amalgamada à própria realidade vivencial. O que se infere é o fato de tal embrenhamento se configurar no elemento que pondera e alucina o exercício criador de Elomar, tornando-o, em simultâneo – autor, personagem e receptor – produto da própria obra.
Em verdade, tal instância parece agir sobre o autor como pasto e refrigério, amenizando-lhe da a crueza do sertão sensível:
A Casa dos Carneiros, no início, é a fuga da urbi, do meio urbano, justamente para me distanciar daquilo que conturba a minha criação: a modernidade, o avanço técnico-científico que é sempre contraponteante à minha obra. Eu costumo dizer que saltei numa estação errada. Quando eu puxei a corda, o maquinista do trem falou: “– Ê, rapaz, puxou tarde!” Era outra estação, é lá atrás, ou puxou antes, estava dormindo e saltei na estação errada! Eu não devia ter saltado nessa estação da terra. Mas Deus falou: “– Salta aqui!” Tem cúmplices meus que acham que eu saltei na estação exata. Então eu tento achar que foi, não sei! Se eu tivesse saltado um pouco antes, acho que seria melhor ou, talvez depois, quando o mundo vai estar muito mais conturbado.
Assim, sonha o universo paralelo como outro registro de sertão que transcende e repara o sertão físico que habita na atualidade; este ainda reflexo deformado de vário sertão físico – o que denomina de “clássico” –, perdido no passado. Lá, estando Aqui, comunga da possibilidade de viver a realidade intensa de descrer do que compreende por civilização contemporânea. Entretanto, no invés, faz-se – apesar de discordância irrestrita – criador de obra estreitamente afinada aos liames da modernidade, pela execução prática de exercícios retóricos que consagram – por maceração sagaz dos códigos verbal e musical – a exatidão estranhada de confluência criativa dos dois universos. Desta maneira, Elomar e obra; e ainda, o convívio com Elomar ou receber-lhe a obra, ajustam-se a, praticamente, mesma instância. Isso sugere ocorrer pois, mais do que se posicionar “neste mundo” ou “naquele outro”, o que confere sentido nuclear ao todo é o deixar-se reger, incontinente, por intenso instinto de religiosidade que potencializa – nesta fértil contradição – o sortilégio de uma crença e uma fé no reencontro do homem, em estado de originalidade divina, consigo mesmo:
Alguém já observou que não existe uma estrofe minha, uma canção, um texto, uma oração em que eu pregue a morte, o suicídio, a desesperança, a descrença. O que é meu discurso? Meu discurso consta de cantar uma realidade que me circunstancia, densa, amarga, às vezes trágica, mas com um sonhar, com uma proposta de sonhar, de esperança. No final, vencer a batalha. Todos os meus textos e canções mostram isso, porque minha formação, meu fundamento, o pouco de bagagem que eu adquiri em minha vida, eu tenho embasamento maior no texto Sagrado.
Uma vez inferido o percurso do caminhar; parece ser este o ponto que permite volver atenção à reflexão da passagem vivencial do trágico ao fantástico no discurso lítero-musical de Elomar Figueira Mello, atributos retóricos diretamente ligados à memória e à religiosidade do artista. Professa o autor: “desde criança eu tenho uma atração pelo dramático, pelo trágico, pelo épico. Se dentro desse meu pronunciar tiverem cores líricas, isso é uma consequência”. É nesse sentido que o universo elomariano parece se solidificar: na manifestação da ocorrência poética professada por intervenções que repercutem estágios trágicos do homem. A isso associa o desenrolar de um espírito épico que compõe o cenário onde a poesia – tida para o autor como a “essência do belo” – reside: “eu vejo o épico com uma certa tragicidade; são os feitos grandiosos do homem”. Para Elomar, trágico “são os desencontros na vida, os desacertos, os feitos que não deram certo, as grandes frustrações do homem, da humanidade, sempre redundando em morte”. Assim, tal pensamento encontra sentido no fato mesmo de que o trágico é um fenômeno conflituoso – latente na condição humana – estabelecido por sucessão continuada de acontecimentos, em que se evidencia uma rede tensiva entre a consciência grave do limite humano e a tentativa desesperada de redimi-lo.
No tocante ao pensamento grego, a sucessão de eventos que o compõe, expressa um roteiro invariável e atende ao princípio da desmedida, ou seja, fuga dos limites impostos pela boa convivência em sociedade (“hybris”); seguida pelo erro trágico (“harmatia”) e finalizado pela “queda” – por um lado, irreparável: a “morte”; e por outro: uma perda que propicia, pelo avesso, possibilidade de recomeço, liberdade e salvação. Assim sendo, acaba por repercutir, concomitante, valor de existência real. Por isso, permite o pensamento de que o trágico não se limita como manifestação somente ao conhecimento artístico, uma vez que persiste na própria existência.
Já se disse que não há ação trágica sem a presença ameaçadora da morte. Talvez aí resida justificativa provável para o discurso de Elomar, há pouco referido – “Alguém já observou que não existe uma estrofe minha, uma canção, um texto, uma oração em que eu pregue a morte (…). Meu discurso consta de cantar uma realidade (…), mas com um sonhar, com uma proposta de sonhar, de esperança” –, apesar da constância em que a presença da morte se materializa nos desdobramentos tensivos e climáticos dos discursos lítero-musicais do artista. O cotejamento sugere evidenciar, no mínimo, instância contraditória entre o presente discurso confessional do autor e a frequência em que ocorre, metaforizada ou não, a presença da morte no procedimento retórico discursivo que embasa o universo vivêncio-estético de Elomar – ao acaso, em Auto da Catingueira: “havéra de vive pur esse mundo e morrê inda em flô”; “a véa da foice”; “o trincá dos ferro” – justificado pelo prazer em ambientar cenas a partir de sucesso trágico. Entretanto, com poder amenizador, a “presença ameaçadora da morte” não implica, necessariamente, em morte ou ausência dela, vindo ao encontro do aspecto disposto quanto às consequencialidades passíveis da “queda”. Assim, a constância trágica da morte, embora presente, vê-se suavizada por ação de condicionante que atua como elemento apaziguador, conferindo remissão aos sucessos empreendidos na confluência dos mundos sensível e intangível: qual seja, o instinto de religiosidade que impera tanto no indivíduo quanto nas vozes poéticas por ele instauradas:
Eu aprendi a fazer versos com Davi, Salomão. Aprendi que em tudo o que se diz, em tudo que se escreve (…) deve-se buscar a forma, a grandeza da forma, a eloqüência, uma estética maior. (…) Agora, o grande mestre para mim foi Cristo. Aquela linguagem parabólica, as metáforas e a precisão de pensamento. Ele está acima de um Dante, de um Sócrates, de um Anaxágoras, quer dizer, é perfeito, é uma espada. A palavra do Mestre é uma espada que penetra e corta.
Desse modo, o caráter trágico provém do sertão-de- fora, que comunga os desdobramentos do mundo sensível, qual sejam: o sertão clássico e o contemporâneo; e dali vê-se remetido ao “outro” lado por intermédio de portais – “bolhas” – idealizados no encontro de uma geografia física e, ao mesmo tempo, lúdica; a exemplo da lagoa das Águas Perdidas, da Pedra Itaúna, no sertão do Rio do Gavião. Assim, se adentra ao mundo intangível/idealizado/ao sertão-de- dentro, melhor denominado por sertão profundo que, em verdade, se constitui no mesmo sertão, apenas provido de total capacidade de remissividade e benignidade sacralizadas pela imposição determinante do instinto de religiosidade que invade o espírito criador de Elomar Figueira Mello. É no interior mais profundo dele que se processa o jogo de transmutação de valores. Antes: os passageiros, impermanentes. Depois: os permanentes, ousadamente perfeitos; tudo revitalizado pelos desvãos da memória. Por isso mesmo, o não-lugar onde se translada da vivência do trágico para a superação deste, culminando em caracterizar topicamente o sertão que transcende o sertão, que se refaz: profundo e vital. Nele, as paixões cedem lugar à solidariedade plena e uma afinidade – a tudo e todos – irmana-se ao cumprimento dos ideais divinos da criação: o homem redivivo; a ordem harmônica da fraternidade perene. O homem pertinho de Deus:
no sertão de Sertano – esse personagem, esse anti-herói que criei, vaqueiro culto –, o portal é uma pedra chamada Itaúna. É uma pedra preta, é por ela que se penetra no sertão de Sertano, é por ela que se sai. Ao sair, cai-se dentro do espaço físico, com governo, com poder de polícia, com tudo… Entrou no sertão profundo de Sertano, onde esses personagens meus transitam, ali não tem lei. Quando Sertano encontra com o Senhor dos Cavalos, na primeira vez, ele contando ao Senhor dos Cavalos sobre os irmãos, que eram mercenários, valentes e lutavam com arma branca, o Senhor dos Cavalos pergunta: “– E cuma é qui seus irirmão acerta cum a lei?” Sertano responde: “– Em nosso mundo, em nossa terra, a nossa lei são os Dez Mandamentos do Senhor. E o nosso juiz supremo é o Senhor dos Exércitos.” Ou seja, não tem ninguém que manda, somos nós. Vivemos sob a lei de Deus. Não chega a ser uma anarquia plena, um mundo anárquico pleno, mas um mundo teocrático. Eles vivem sob uma espécie de teocracia ideal, imaginária, é o reino do sertão profundo. (…) Sertano não tem empregados, mas na sua fazenda tem centenas de pessoas que ali convivem. Ele é muito rico, tem muito gado, muito bode, muito cavalo, mas todos que estão ali trabalham cada um para si, tem uma convivência social, ideal, sem ninguém explorar ninguém, todos trabalhando. Também, sem nenhum princípio comunista, deixo bem claro, patenteado e pré-claro, sem nenhum princípio fundamentado nas loucuras, nos sonhos, nas utopias marxistas! É no sertão profundo que estão as canções Naninha, Gabriela, porque, dentro desse sertão nosso aqui, é impossível que elas existissem.
Observamos a obrigatoriedade a que o autor se impõe ao mencionar relação oposta ao ideal de respeito e sociabilidade apregoado – e, no entanto, fracassado – pelo modelo comunista. O interesse recai sobre a consciência do autor em situar o que denomina de sertão-profundo como topos de dupla natureza: primeiro a origem, da ordem da criação lúdico-inventiva; segundo, a crença interior de possibilidade real de experienciação como substância, de fato, regeneradora da condição essencial do homem. Assim, o fator religioso aliado ao mecanismo de transfiguração do espaço sertanejo em não-lugar conferem consistência ao plano de materializar a certeza de que, para falar com Riobaldo, o sertão é – em si – dentro de cada um de nós.