(Do livro “Sobre Pessoas”, Editora Leitura, B.H., 2007).
O primeiro era apenas um Zé, ou Zê Preto, O Zé do velho Loló, chamava de “Papai Lolô”, embora não fosse seu filho. Nunca se soube quem foram os seus pais, nem se chegou a conhecê-los. Corria a lenda de que aquele Zê havia sido encontrado numa porteira, dentro de um cesto. Outro mistério envolvia o seu achamento: largado nu e solitário, ele no entanto sorria. Como se fosse a criança mais feliz deste mundo.
A bem da verdade, eu ainda não havia nascido quando isso aconteceu, se é que essa história não foi pura imaginação de um povo que vivia inventando histórias para espantar o medo da noite — ou para não perder o juízo. O certo é que, quando me dei por gente, Zê Preto já era um meninão grande, forte e risão.
Nós, os garotos menores — meus primos e eu — vivíamos brincando com ele. Aquelas coisas da roça: bater perna pelos pastos, caçar passarinhos, pegar canário, armar arapuca para codorna, pescar no riacho, subir em pé de urubuzeiro, espetar tanajura. E foi assim que o conheci: já o Zê de Papai Lolô e Mamãe Adelaide, que vinham a ser os meus avós paternos. Logo, ele era como se fosse meu tio. Meu tio preto.
E assim ele cresceu: trabalhando a terra na enxada e no arado, cuidando do gado, fazendo os mandados. Até tornar-se o carreiro de bois, a transportar sacos de feijão e de milho, carradas de areia e de madeira (e gente também) pra todo lado. E como aquele carro de bois cantava nas estradas! A meninada adorava pegar uma carona nele. Não, Zê Preto não era apenas um agregado do meu avô. Era um amigo.
Um dia fez-se a desgraça. Alguém das vizinhas deu falta de uma galinha e cismou que o Zé a havia roubado. Alvoroço no povoado. Soldados no seu encalço. Zé foi apanhado na roça em que sempre esteve e levado aos empurrões e pontapés para a delegacia, onde um sargentão truculento o aguardava com uma palmatória que devia pesar um bom meio quilo.
“Confessa negro” — o interrogatório do sargento era feito ao som das palmadas, que se alternavam de uma mão à outra. E as mãos do Zê iam engordando, inchando, estourando. E ele, os olhos se esbugalhando, jurava por tudo quanto era santo que não havia roubado galinha nenhuma. E quanto mais negava, mais apanhava. Tome soco, chute, bordoada. Quando meu avô chegou para tentar libertá-lo, encontrou-o desmaiado. Zé morreu um ano depois. Jamais se soube se dar pancadas ou de desgosto. Ou das duas.
O outro era ladrão mesmo. Roubava gado. Chamava-se Dominguinhos, filho do velho Domingos, um fazendeiro endinheirado. Nunca foi apanhado. Quando as denúncias começaram, ele caiu no mundo — o maravilhoso mundo da impunidade. E esta é apenas mais uma história de ladrões cuja moral já se tornou clássica.