– A senhora tinha parentesco com a vítima?
– Mãe.
– Quantos anos a vítima tinha?
– Trinta e seis.
– A senhora tem outros filhos?
– Oito e mais três netos que vivem comigo.
– A vítima morava com a senhora?
– Desde que nasceu e por último quando conseguiu fugir do sanatório.
– A vítima ocupou as funções de guarda-noturno durante alguns anos. Recebia algum provento? Era auxiliado por alguém?
– Era eu quem sustentava ele.
– Qual a sua profissão?
– Sei fazer cesto e esteira. Vendo aos sábados na feira, junto com umas coisas miúdas, pente, carretel, agulha, alfinete, botão, fita, espelhinho e perfume.
– A vítima bebia muito?
– Só não fazia isso quando estava com o apito na boca, aquele maldito apito que tinha vez que ele ficava a noite toda soprando. Era aquela aflição dentro de casa que aumentava ainda mais com os gritos dos vizinhos. Parecia que aquele inferno todo nunca ia terminar.
– Quem dava dinheiro à vítima para beber?
– O povo da rua e uns conhecidos lá do bairro.
– Quando foi que a senhora resolveu dar formicida à vítima?
– O remédio?
– Remédio! A senhora não sabia que era veneno?
– Eu comprei o pacote no armazém pela manhã. Tinha ido comprar café e um pouco de açúcar.
A mulher parou um pouco e continuou.
– Eu disse a ele que aquilo era um remédio pra abreviar seus sofrimentos, que ele bebesse logo pra ter um sono tranquilo.
Parou novamente, fez um esforço e continuou.
– Ele estava muito bêbado, com barba e cabelo grande, o rosto todo ferido. Ele tinha aparecido na sala com uma corda de cebola na cabeça e um ramo de flores murchas no bolso do paletó velho. Ele andava muito sujo, maltrapilho.
Com certo tremor:
– Parecia um bicho.
– A senhora não tinha outro jeito de abreviar o sofrimento de seu filho?
– Não tinha. Não suportava mais vendo ele todo dia dormir na sarjeta e chegar bêbado em casa.
Correram murmúrios entre as pessoas que se comprimiam na sala.
– A senhora comprou o formicida para matá-lo?
– Não. Pra matar formiga e barata.
– Como a senhora conseguiu que a vítima bebesse o formicida?
– Ele tomou o remédio com guaraná.
– A vítima relutou em tomar o veneno?
– No princípio.
– E depois?
Uma careta desenhou-se no rosto da mulher, rompeu a crosta e se formou de uma maneira sofrida.
E,. num tom baixo, ela prosseguiu.
– Depois eu abri a boca dele pra que o remédio fosse bebido, pra descer depressa na garganta e acabar de vez com o sofrimento dele.
O juiz recuou um pouco na cadeira.
Uma sensação de mal-estar percorreu os cantos da sala..
O juiz passou o lenço no rosto.
– Qual a quantidade de veneno que a senhora deu à vítima?
– A garrafa toda.
– Ele morreu logo?
– Instante depois.
– A senhora não se arrependeu do que fez?
– Sim.
– A senhora não sabia que estava dando veneno a seu filho?
– Eu já estava desesperada. Sofria muito vendo ele viver como um bicho… pior que um bicho…
Com a cabeça caída para frente.
– Ele era meu filho… mas na hora, doutor, eu só pedia a Deus que levasse ele.
Depois a sala permaneceu vazia, mergulhada naquele silêncio somente cortado pelo zumbido das moscas,
Raios de uma manhã abafada sobrevieram e fundiram os elos de uma corrente que se rompera numa estrutura sólida, feita no duro clamor de uma voz que se tornara impotente ante os dias neutros.
Houvera sempre uma condição de abandono, queda, cimento frio, que atingira o ponto máximo no amálgama de seus angustiantes tecidos.
A sala no absoluto silêncio.
A mulher foi recolhida ao cubículo que servia como cela nos fundos do prédio onde funcionava o fórum da cidadezinha.
Ela transpirou tremores misturados com cinzas. Minutos passaram num ritmo que feria quando começavam a lembrar-lhe o que tinha de ser.
Existiram suspiros fundos dentro do cubículo quase sem luz. Até que chegou uma brisa para envolvê-la com ondas ligeiras, trazendo certo alívio no peito que não parava de gemer. A brisa permanecia no rosto sob a pele enrugada, em carícia de lenço. Soprava nos olhinhos de sagüi, que piscavam nervosos.
Vermelhos e úmidos.