Um hábito como outro qualquer, mania como todo mundo tem. Sentar àquele lado da mesa para tudo: comer, conversar, trabalhar. Era o meu cantinho predileto e dele não abria mão.
Ficava de frente para a janela, as cortinas sempre abertas. Pela grade ele me espiava quando passava, o rosto cabendo certinho num dos quadrados: – Ei, tudo bem? Ainda acordada a esta hora? – Às vezes me irritava, porque me desconcentrava do que estava fazendo. Às vezes gostava de vê-lo, me levantava, chegava à janela para dois ou três minutos de prosa.
Nunca fomos muito próximos, havia uma espécie de muro que nos separava. Em qualquer lugar onde estivéssemos, estava a grade da janela entre nós. Chegamos a brigar algumas vezes. Pontos de vista diferentes, pequenas discussões. Contudo, nunca fomos inimigos.
Um dia ele se foi. Nunca mais conversou, ou discutiu, ou perturbou o meu trabalho. Nunca mais seu rosto na janela. Não sei onde está. No céu, inferno ou purgatório (ou como queiram chamar esses estágios), isso é lá entre ele e Deus.
Apesar da dor de cabeça, por ter me excedido no vinho ao jantar, propus-me a colocar minha correspondência em dia, no lugar de costume. Já era bem tarde, a rua deserta e escura. A noite chuvosa, vidraças fechadas. Ouvi um barulhinho e o vidro balançou. Está ventando muito, pensei. Voltei os olhos para os papéis. Senti que alguma coisa se movimentava lá fora. Ah, a danada da gata! Fica farreando até as tantas, depois vem me interromper… Levantei-me para abrir a janela, e lá estava ele.
Ficou mais assustado do que eu. Eu o peguei em flagrante! Estava encostadinho à parede, a mão no peitoril. Para tirar qualquer dúvida, perguntei quem era. Respondeu: — Sou eu – e reconheci também a voz.
Que estava fazendo aqui? Explicou que tinha vindo mais uma vez para matar as saudades. Mais uma vez… então não era a primeira?! Não, não era; estava sempre por perto, observando tudo e todos. Preocupava-se com as pessoas. O tempo decorrido não era suficiente para se acostumar à separação.
Fez-me falar das crianças, principalmente do menino que ele tanto amava. Contei-lhe as travessuras, os progressos. E a pequenininha? Esta não chegou a conhecer. Cara de china, um doce! Pediu-me que lhe mostrasse um retrato. Pensei em convidá-lo a entrar, mas receei que alguém o visse. Não tinha ideia de qual seria a reação; não quis arriscar.
A chuva caía firme. Reparei que ele estava seco. Quase cedi à tentação de comentar o fato, mas achei que seria descabido.
Tentou saber de mim, de algumas coisas que considero íntimas e só revelo a amigos que sei realmente interessados. Acreditando que só perguntava por perguntar, fugi com evasivas. Também não fiz referências à sua vida. Nunca tínhamos sido muito abertos um com o outro, por que sê-lo agora?
Voltamos à família, aos amigos comuns. Rebusquei na memória todos os episódios ocorridos nesse espaço de tempo e, sem pressa, relatei-os. Tecendo um ou outro comentário sobre eles, saboreou minhas palavras. Sorria. Penso ter visto um brilho úmido em seus olhos; não em reação a alguma triste notícia, porque estas evitei. Lembramos o passado comum. Chegamos a dar boas risadas.
Pediu-me que olhasse pelos seus e não lhe prometi muito. Expliquei que já me achava pouco para dar conta de todos os meus. Compreendeu; pelo menos foi o que disse.
Conversamos horas. A bem da verdade, eu falei durante horas. Ele estava ávido de notícias.
O assunto foi se esgotando. De pé o tempo todo, comecei a ficar cansada. A grade da janela que parecia ter sumido, fazendo divisa entre nós. Mas não queria despedir-me. Afinal, ele tinha vindo não sei de onde para essa visita… E há tanto tempo não nos víamos…
Perguntei-lhe, então, se queria entrar e se sentar. – Não, não. Eu vim só matar as saudades – respondeu.
Percebendo que já era hora de ir-se, apressou-se. Foi amável, agradeceu-me a atenção, e desculpou-se por ter demorado tanto. Respondi que tinha gostado muito de vê-lo, de saber que estava bem. Sorriu.
Aflito, suplicou-me que não comentasse com ninguém. Imediatamente dei-lhe a entender que nem era preciso tal observação. Nunca se sabe como iriam interpretar…
Sorriu novamente. Acenou com a mão. Fiquei esperando que se fosse, mas pediu-me que entrasse. Assenti e fechei a janela, compreendendo que ele gostaria de manter encoberto o rumo que tomaria. Cerrei as cortinas.
Acredito que as manterei assim sempre que estiver fazendo alguma coisa de madrugada, sentada a este lado da mesa. Porque desta posição vejo a grade da janela, e trocar de lugar não troco, não. Apesar de só temer a Deus e aos vivos.