Foi a memória involuntária que, generosa, desatou em mim a Pastelaria Triunfo. No chão da consciência nada consigo localizar, nenhum objeto, para dizer como de súbito a lembrança da pastelaria me apareceu trinta anos depois. Proust, num dia triste e com a perspectiva de mais um dia sombrio, bebeu sem vontade uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madeleine — bolinho de farinha de trigo, ovos e açúcar, semelhante à delícia que chamamos de brevidade —, e com esse gesto prosaico mudou a literatura do mundo.
(Ironicamente logo te esqueceremos, brevidade. Onde a memória de teu gosto, quimicamente corrompido por brometos, conservantes, artifícios, baunilhas indignas? A farinha de trigo deixou de ser farinha de trigo — é uma ignomínia de pó, que moinhos controlados por computadores nos oferecem e aceitamos. Os ovos são de galinhas mecânicas, e como é repugnante, da cor de olhos ictéricos, o amarelo das gemas, pois não existem mais galinhas de quintal, nem quintais, ora, deixemos de tolices, aqui a falar de gemas que eram gemas, coradinhas etc. E quanto ao açúcar, no comments.)
Não resisto e transcrevo, na excelente tradução de Mario Quintana, o que diz Proust em Du côté du chez Swann, o primeiro volume da Recherche: “[…] no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornava indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres […] tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo”.
Foi esse gosto da madeleine, embebida em chá-da-índia ou de tília, sentido muitos anos depois, que ressuscitou em Proust uma emoção antiga, única e instantânea: a lembrança de sua infância em Combray. Os rostos, as casas, as alamedas, o traçado dos jardins… tudo — que ele julgara morto para sempre — voltou em segundos a existir, vívido e cintilante, com seus detalhes, sua atmosfera particular. O que Proust recordasse de Combray lhe seria unicamente fornecido pela memória voluntária, a da inteligência — mas as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste. Todos os esforços da inteligência são inúteis para evocar o nosso passado. “Está ele oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca”. Eis então o mistério da memória involuntária, a que dispensa o intelecto e é capaz de retrouver le temps, de redescobrir o tempo — que dávamos como irremediavelmente perdido.
“[…] quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas — sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis —, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”.
Eu estava na praia com meus filhos. De repente, a Pastelaria Triunfo se desenhou inteira em minha lembrança. Que odor, que sabor, que madeleine, não sei; nada me ocorre que tenha operado esse encantamento, a palpitar no fundo de mim, para me fazer repetir a musicalidade feliz destas duas palavras: Pastelaria Triunfo, perfeitamente casadas, com seu quê de delicadeza e força. Há mais do que tonicidade na sílaba un de triunfo: há plenitude, que incorpora o nome e o faz pulsar para além de sua carga semântica. Triunfo, pastelaria, Triunfo. Em que eu estava pensando? Talvez em algas, ramagens, hipocampos… Ou em nada. E o velho casarão, plantado no alto da Ladeira da Praça, me trouxe de volta um menino de 13 anos, ainda usando calças curtas, o pai a segurar-lhe a mão. Saem do Elevador Lacerda, não têm nenhuma pressa, na brisa gentil do verão e sob a translucidez do céu; à esquerda, o prédio baixo, acinzentado pelo tempo, da Imprensa Oficial da Bahia, vizinho ao prédio maior, de um amarelo pardacento, da Biblioteca Pública; à direita, o Palácio Rio Branco, esquina com o trecho mais elegante da cidade, a Rua Chile, onde a loja Duas Américas dispunha, só ela em Salvador, de uma escada rolante, inaugurada havia pouco mais de um ano, uma coqueluche.
Dezembro de 1959, quatro horas da tarde, e Terezinha Morango — mais uma vez — é capa de O Cruzeiro.
— Que pernas, meu Deus! Aaaah…! — o homem dissera, diante de uma banca de revistas na Praça Cairu, em tom baixo e suspirando, e seu “ah” se prolongara, cavo e sóbrio. O menino, querendo imitá-lo, soltara um “ah” nem um pouquinho rouco, de tão verde, longe daquela bossa, ou molho, que poucos homens conseguem, pondo um tanto de volúpia e solenidade na voz, para que saia um “ah” como convém: nem de mais, que soe a cafajestice, nem de menos, ou desenxabido, que lembre o “ah” idiota dos almofadinhas.
Seguem de mãos dadas, passam pelo abrigo do ponto de ônibus e bondes em cuja cobertura, assim que anoitecer, brilharão os anúncios da cera Parquetina e dos chapéus Ramenzoni; em frente, a Prefeitura e a Câmara Municipal no mesmo edifício que já foi cadeia pública: sua fachada, após tantas deformações e acréscimos, mais parece a de um cabaré mexicano.
Desviam-se dos carros que vêm da Sé pela Rua da Misericórdia, e naquela confluência, bem no topo da ladeira, o que inunda os olhos do menino são os vidros bojudos de azeitonas em cima do balcão. Pretas, verdes, cor-de-damasco…
— Autênticas da Grécia e da Espanha — o homem, um habitué, diz para o menino. — As pretas são magníficas.
Sentam-se a uma mesa redonda com pés de ferro, tampo de mármore. Os olhos do menino passeiam pelo balcão, acima do qual estende-se um cano vermelho descascado pendurando rolos de presunto, salame, caixinhas de figos secos, reclames de sal-de-fruta e de bebidas, tiras e arranjos de papel celofane.
— Pronto — diz o homem, cigarro no canto da boca, a fumaça espiralando em seu rosto. O menino não ouvira o pedido; e num tempo que a recordação hoje tornou matéria de sonho, o garçom surgirá do nada, mas era como se ali estivesse desde o começo do mundo: lépido, magrinho, de anel (topázio?) e sem gravata-borboleta, sorriu, “a família vai bem?”, “vai bem, obrigado”, trouxe os guardanapos de pano (linho?), o cálice de conhaque, chope, guaraná, as rodelas de pão e de salame, azeitonas pretas, “com licença”.
— Um equilibrista improvável — comenta o homem. — Viu como ele segurava a bandeja?
— Vi — diz o menino. — Quase ela cai.
Uma tarde calma e honrada a que têm direito o homem e o menino, em meio a tantos odores convidativos, fortes, discretos, almiscarados ou não, das caixas de bacalhau, das conservas de enchovas e atuns, dos defumados, dos doces em compota, das frutas de clima frio, da profusão de queijos e da variedade de vinhos turvos e leves. E como havia patês, bolachas folhadas, nozes, castanhas, chocolates!
— O que é aquilo?
— Nêspera.
Mas não havia pastel.
— Não é uma pastelaria?
— É.
— E não tem pastel?
— Não.
O menino corre os olhos pelo balcão, prateleiras, envoltórios de vidro, escaninhos, cada compartimento, e vai à forra:
— Uma pastelaria improvável — diz.
Menos de quatro anos depois a Triunfo desapareceu, devorada por um incêndio. Todos temos as nossas madeleines. Se o que narro aqui mal e mal não foi uma madeleine, foi com certeza, feito um alumbramento, a saudade de meu pai. Agora, no fim de janeiro, fez dois anos que ele morreu.