– Me diz uma coisa: você tem outra mulher, não tem? – ela estava beirando o desespero.
Ele baixou os olhos. Sujeito descarado. Nem precisava falar.
– Mas por que você não me disse, Ernesto? Por quê?!… Eu lhe perguntei tantas vezes, lhe dei tantas chances de ser honesto… por que você tinha que mentir?
Ele procurou apoio na parede:
– Olha, eu… Eu passei esses dias todos pensando nisso, e prometi pra mim mesmo que não vou mais mentir. Não vou mais. Eu juro.
Ela suspirou e apoiou as mãos na cintura:
– Você não entende, né? Assim que eu lhe conheci, fiz um monte de perguntas, lembra? Se você era casado, se tinha namorada, se morava com alguém, se tinha filhos… Eu lhe dei todas as chances de ser sincero, e você me enganou. Você me traiu, Ernesto! Você traiu a minha confiança.
– Eu tive medo de que você fugisse – a voz dele era quase um sussurro.
– Você não entende, Ernesto? Não entende que cabia a mim decidir? O seu papel era dizer a verdade: vivo com uma mulher, é meu terceiro, quarto, quinto, décimo casamento…
– Não sou casado com ela…
– Ah, tenha paciência! Agora mais essa… – inspirou profundamente e soltou o ar de uma vez. Lançou o olhar à volta para se dar mais tempo, depois o encarou: – Você tinha que me dizer. Cabia a mim decidir se queria ficar com você assim mesmo, ou não.
Os olhos marejavam. Que merda! Estava tudo errado, tudo novamente errado.
– Bem que me disseram: você gostou dele? Então use. Era isso que eu devia ter feito, em vez de me iludir com você.
Suspirou. Olhou à volta. Que merda! Que trouxa! Que imbecil, que idiota! Quando é que eu vou aprender? Bem que me disseram: aproveite. Mas eu queria ser a namorada, a garotinha que arranjou um namorado e se apaixonou por ele porque ele se apaixonou por ela.
– Tá bom, Ernesto. Boa sorte, seja feliz, muitos anos de vida – e deu-lhe as costas.
Posso ligar pra você?
Por aquela ela não esperava. Quanta cara de pau!
– Pra quê? – ia completar: – pra gente dar umazinha? – mas se conteve.
– Pra gente sair, dançar.
Pode – respondeu automaticamente, atravessou a rua e foi andando sem se voltar.
*****
– Eu não consigo entender por que isso acontece comigo.
– Não é só com você, não. Vejo isso acontecer com todas as mulheres, de qualquer classe, lugar, idade. Todas se queixam da mesma coisa. Quando pensam que está tudo bem, descobrem que o cara tem outra namorada.
– Faz parte da nossa cultura, com a desculpa de que é “natural” no homem, eles vão se espalhando.
– Eu não quero perder a fé no homem. Não quero me convencer de que todo homem é igual. Não me conformo quando ouço mulheres dizendo que todo homem não presta, que nenhum homem presta. Eu tenho que acreditar que existem homens bons, decentes, honestos, senão não faz sentido. Se eu sou boa, decente, honesta em meus relacionamentos, só posso crer que existam pessoas iguais a mim, que tenham vontade, intenção de levar um relacionamento a sério. Não posso, não quero me convencer de que todos os homens são canalhas.
Parou. Olhou pra cara das duas. Estavam sorrindo? Havia um vestígio de ironia nos seus silêncios?
– Sabe, às vezes fico pensando, quando passo por uma situação como essa, de decepção, de desencanto, que preciso descobrir onde estou errando, pra não quebrar a cara de novo. Estou cansada de me decepcionar, preciso aprender a lidar com os homens sem sair ferida. Será que ainda dá tempo de aprender?
– Seu problema é que você é crédula, ingênua.
– É que seu referencial de homem é positivo. Então, você olha um homem e vê uma coisa positiva. Os homens da sua vida deixaram um referencial bom. Seu pai foi um bom marido, seu marido… bem, você guarda uma boa imagem dele. Então, pra você é possível que esse homem que você acaba de ver à sua frente seja uma pessoa boa.
– Pra mim, em princípio, não todos, é claro, mas aqueles que me tocam a alma são bons. Não entendo porque eu teria que me predispor à desconfiança. Mas agora, depois de tudo isso que passei, todas essas desilusões com os homens, fico até pensando que devo ter sido corneada muitas vezes pelo Beto, e nem percebi.
O silêncio delas agora era mais claro. Dizia horrores.
– Bom, já que você está falando, vou lhe revelar um segredo, que talvez ajude você a lidar melhor com a vida. Quando eu conheci você, e lá pelas tantas você disse que era casada com o Beto, e disse Beto Alencar, com todas as letras, e eu perguntei, pra me certificar: o jornalista? Você disse: é, e eu falei: adoro as crônicas que ele escreve, falei pra disfarçar, porque eu estava entalada com a notícia. O Beto era namorado de uma amiga minha.
Ela ficou olhando a amiga, um clarão na mente. Alguma coisa sinalizava que a mensagem era lancinante, mas um mecanismo de defesa a tornava incapaz de raciocinar ou de apresentar alguma emoção. Um branco.
A amiga que havia acabado de falar ficou também paralisada. Quem sabe esperava alguma reação mais calorosa, uma cara de espanto, de dor; uma lágrima caindo no canto do olho, senão um choro em cachoeira; um grito, bem alto ou quase sufocado; um levantar-se da cadeira abruptamente, ou afundar-se nela; um tremor de corpo, ligeiro ou violento… quem sabe a amiga se decepcionava porque a reação que esperava dela era qualquer uma, menos aquela calmaria?
Resmungou um monossílabo, um som não identificável, assim como um ehr acrescido de um anh, talvez mais próximo do ungh. Depois pareceu se recuperar e perguntou quem era a sua rival.
Ah, isso não posso dizer! – retrucou a amiga, explodindo em ética.
Mas ele ia buscá-la no trabalho e tudo – completou a outra, talvez menos preocupada com a ética.
Não insistiu. Se o caráter delas ou algum sentimento de solidariedade as impedia de dizer o nome da outra, paciência! Se o compromisso de lealdade com a outra era assim tão forte, que se há de fazer? Embora tivesse curiosidade, não iria implorar às amigas que revelassem o nome da namorada que seu marido tivera dez anos atrás – sim, porque é preciso acrescentar, o marido havia morrido há mais de dez anos!
Ela mesma fez cara de morta e, naquele momento, não conseguiu pensar. Como queriam – ou não -, mudou de assunto. Esperou mais algum tempo e se despediu.
Não aceitou carona. Queria andar, levar o vento da noite pela cara, permitir que as coisas se ajeitassem por si mesmas. No ritmo dos passos, veio a constatação: então, as amigas traziam a questão à cena e tiravam seu próprio corpo de cena… o que desejavam com isso? Não importava saber quem tinha sido a mulher, importava constatar que, fosse a rival quem fosse, era alguém que merecia mais a consideração das amigas. Tinham feito questão de preservar a outra, mas não haviam se preocupado com suas emoções, ao desenterrarem o defunto – e mal desenterrado – depois de dez anos.
O vento da noite foi cuidando de transformar sua perplexidade em aceitação. Não queriam dizer, paciência! O exercício físico foi lhe proporcionando uma sensação de prazer. Incrível, mas, apesar de tudo, chegou em casa feliz. Tomou um longo banho, deitou-se e dormiu sem preocupações.
Mas no meio da noite acordou.
*****
De você eu tenho medo. Seus dedos não me tocam, nem lembro do contorno de seu rosto – um borrão, mancha de sombras. No entanto, após tanto tempo, você ainda interfere em mim. Quem, diabos, você pensa que é? Que dívida eu tinha com você, e a quantas encarnações, que permitisse esse carimbo, tatuagem, cicatriz? De um nada, sou impotente diante dos fatos. O passado se inscreve no cotidiano e você emergindo das águas escuras: é a festa do salão de cabeleireiros, é a conversa íntima diante de um xícara de capuccino na cozinha da amiga, é a prima abrindo a boca e a alma na cozinha da filha – ah, sempre a cozinha, cenário das mais intrincadas tramas familiares, onde as mulheres tecem as redes em que apanham homens desprevenidos!
*****
A idéia de que algo andava errado passou a acompanhá-la. E, sem que quisesse, começou a descobrir outras histórias do marido. Assim, sem mais nem menos, alguém vinha e comentava, como se fosse tido e sabido por todos, a coisa mais natural do mundo: aquela namorada do seu marido… Então, todos sabiam menos ela.
A constatação não lhe trazia dor, nem ciúme. O marido, com o tempo, se tornara um amigo dos velhos tempos que se perdera no tempo, como aquele da infância, da adolescência, desses que a gente guarda numa lembrança carinhosa, e mais nada. Fizera questão de apagar da memória as desavenças, as mágoas, grandes mágoas que a maioria dos casamentos guarda, e praticamente não sobrara nada, porque o amor se esvai no tempo, o amor carnal não sobrevive à distância – e que distância! –, só os insanos ficariam alimentando um sentimento de amor, um compromisso de fidelidade após a morte: isso seria morrer também.
Era apenas a constatação de que alguma coisa havia acontecido à sua revelia, mas bem na sua cara, e ela simplesmente não enxergara. Mas de repente tudo se expôs, e foi tomada por uma raiva imensa: como aquele marido, mesmo perdido no tempo e no espaço, havia sido cruel! Sua presença, como erva daninha, havia se estendido por mais dez anos. Enquanto pensava que estava longe, que nada mais significava, que não podia mais chateá-la, nem oprimi-la, nem prejudicá-la, ele estava presente o tempo todo, por todos esses dez anos, interferindo em seus relacionamentos, em sua vida, em sua existência feminina. Uma presença que não lhe permitia lidar com a vida – e com os homens – como ela realmente é. A visão distorcida da realidade que ele lhe impusera prejudicara todos os seus relacionamentos, abortara todas as tentativas de ser feliz com um outro homem. Se ele não a tivesse enganado, fazendo crer que era possível existir um homem honesto e fiel, ela não teria esperado – e exigido – isso dos outros. Se ele, quando vivo, lhe tivesse mostrado que os homens – e não apenas os homens do sexo masculino – traem porque trai-se, porque assim é, porque o corpo é o primeiro que trai, porque não se toma a fidelidade como importante, ou seja lá por que for… se ele não a tivesse enganado, fazendo-a crer que a fidelidade era possível, ela teria sido muito mais feliz, teria conseguido lidar com seus relacionamentos de outra forma, menos romântica e mais realista. Se ela não tivesse tido um marido perfeito, não teria perdido tanto tempo procurando um outro homem perfeito. As amigas tinham razão: o seu referencial de homem era positivo, e ela buscava repetir esse modelo, mas sem saber que era falso. Aí, sim, a traição: ao fazer crer que era um homem diferente, interferiu em sua vida amorosa mesmo durante dez anos após sua morte, prejudicando-a. Este homem, que ela pensava morto e enterrado, tinha cometido seu pior pecado depois de morto. Isso, sim, era imperdoável.
*****
A big band tocava “New York, New York” quando ela chegou ao salão de baile. Aproximou-se do palco e subiu no primeiro degrau da escadinha de acesso para ver melhor os dançantes. Lá estava ele, o Ernesto, arrastando feliz a sua dama. Ela atravessou o salão calmamente, desviando-se dos pares, alguns em complexas evoluções. Com uma segurança que não sabia onde tinha encontrado, tocou no ombro da moça, que já notara a sua aproximação.
– Me desculpe, mas você deixa eu dançar com o Ernesto? É um assunto muito sério, coisa de família.
A moça quis se afastar logo, mas ele fez sinal que esperasse. Seguiram os três juntos até a beira da pista, quando ele lhe agradeceu a dança.
*****
Então, nesse momento foi inaugurada uma nova era. O Ernesto segurou no meu braço, abriu aquele sorriso demolidor e me abraçou por um tempo mais longo que os comuns abraços entre amigos:
– Mas que surpresa! Que saudade!… Depois daquele dia, eu pensei que você nunca mais ia falar comigo, olhar pra mim…
Coloquei o dedo sobre sua boca, ele se calou. (Acho que até hoje ele está sem entender o que me fez mudar de idéia.) Depois, descaradamente, me pendurei em seu pescoço e beijei sua boca, sem me importar com o que dissessem ou pensassem. E faz mais de três anos que não parei de beijá-la.