O corpo, de tão habituado, não precisava de despertador. Não importava se o sol também já tinha acordado ou se o dia amanhecia nublado. Era hora de acordar. Bem verdade, muitas vezes, já se achava acordada antes da hora, enumerando em pensamentos as tarefas do dia. Num só salto, sentou-se, fez sua oração, automática como os ponteiros do relógio. Traçou o sinal da cruz mais de uma vez, porque não tinha certeza se já o tinha feito. Na dúvida, era melhor não arriscar! Levantou-se, colocou a chaleira com água pra ferver, contou quatro colheres de pó de café, colocando-as no coador. Molhou o fubá, pôs pra descansar, pra ficar bem fofinho. Enquanto preparava o cuscuz, riu um sorriso insosso e pensou consigo mesma: “Até o fubá tem seu tempo de descanso”.
A chaleira começou a apitar. Parecia ela própria, gritando por socorro, como se tudo dentro dela pedisse pra evaporar, antes que explodisse. Enquanto isso, já estava noutro cômodo, cuidando de outra tarefa. Fazia muitas coisas ao mesmo tempo. Acordou as crianças. Colocou os uniformes sobre a cama e gritou, apressadamente, enquanto puxava os lençóis que as envolviam: “Vamos, crianças! Vão perder a hora!”
Sua rotina parecia seguir uma receita de bolo. E ainda tinha uma lista enorme de tarefas pra dar conta, até que o dia terminasse, fizesse sol ou chuva! Como os ponteiros do relógio que dava repetidas voltas, em sua rotina, tudo se repetia. Às vezes, um pequeno atraso aqui, outro acolá, nada demais. Tic tac tic tac. Deus, que tanto desejava ouvi-la, ficava a observá-la dar voltas e voltas em torno dos outros, sempre voltando pra o mesmo lugar!
Mais um dia findava. Não era mais um… Aquele não tinha sido um dia como os outros. As palavras da oncologista, explicando-lhe o resultado dos exames, ecoavam em sua mente. Depois de as crianças finalmente dormirem, sentou-se em sua cama e fez suas orações, não mais automáticas como de costume. Dessa vez, traçou o sinal da cruz uma única vez, o suficiente para derramar-se em lágrimas.
Os ponteiros do relógio não batiam como antes. Pareciam desacelerar junto com seus pensamentos. O silêncio da casa adormecida gritava em seus ouvidos. Não mais alto do que as palavras da doutora: “Agora, Jéssica, você precisa se cuidar. Não se preocupe. Vai dar tudo certo!”. Ela não tinha essa certeza. Pensava como viveriam seus filhos se ela morresse, já que o pai mal os via uma vez por ano. Secou o rosto com o lençol que a encobria, respirou e, pela primeira vez, em uma década, pensou nela mesma: “E os meus cabelos?”. Aquela noite parecia não ter fim. Nem mesmo as noites perdidas amamentando os dois filhos tinham sido tão longas.
Amanhecia o dia. Na cozinha, a chaleira, mais uma vez, apitando. Os ponteiros do relógio, em seu famigerado tic tac, as crianças, já à mesa, à espera do café. Numa coincidência assustadora, ouviu, do noticiário da tv ligada na sala, a estatística das mulheres que enfrentavam o mesmo calvário. Descobrindo dentro de si uma força que nem sabia que tinha, decidiu reforçar as estatísticas de cura.
REIS, Ilza Carla. Ponteiros. In: QUEIROZ, Rita (Org.). Confraria em prosa: olhares e vozes femininas. Guaratinguetá, SP: Penalux, 2020.