Eu não matei o cachorro do meu irmão. Foi apenas um acidente. Era um cãozinho pequeno, do tamanho de um gato pequeno, e tinha mania de se enfiar debaixo dos travesseiros. Deitei sobre o travesseiro e esmaguei o coitado, que não teve tempo de esboçar um grunhido sequer. Acontece que pouco antes eu tinha brigado com o meu irmão, ele me enfiara a mão na cara, fui correndo para a barra da saia da minha mãe, que meteu a mão na cara dele. Só isto. Aí o filho da mãe começou a dizer que por vingança eu matara o cachorrinho, que era muito bonitinho e tinha o nome de Tupi.
Eu até gostava dele.
Quando eu estava na escola, a professora tinha mania de implicar comigo. Me castigava por qualquer bobagem, dava tarefas mais difíceis e era mais rigorosa do que com os outros na hora de corrigir o dever de casa. Acho que ela também pensava que eu fosse matador de cachorrinho, pela maneira rude com que me tratava. Era sempre anota aí, copia direito, presta atenção no ditado, fica atento à resposta correta, de um jeito superior e debochado, como se estivesse mesmo lidando com um assassino. Eu via nos olhos dela que ela me olhava como a um assassino de cão indefeso.
Um dia a professora pediu um exercício muito complicado, que para dar conta eu tinha que fazer pesquisas em um livro muito complicado, e para complicar mais ainda eu não tinha o livro. Ela disse é só ir até a biblioteca pública e procurar, como faz todo mundo que quer estudar e não tem livro. Eu fui, juro que fui, revirei várias estantes empoeiradas e não achei o diabo do livro. A funcionária da biblioteca, que em vez de me ajudar ficava lixando a unha, esparramada numa cadeira, olhou para a anotação no meu caderno e disse não existe este livro aqui não, menino. Não existe este livro em lugar nenhum, você deve ter anotado errado.
Eu disse errada deve estar você, vagabunda, porque percebi logo que ela estava me tratando como se trata um desmiolado qualquer, devia achar também que eu fiz a merda que todo mundo pensa que fiz em minha casa, mas que não fiz nem aguentava mais dizer que não fiz. Aprontei uma zona federal lá, chutei mesas e derrubei cadeiras, cuspi no bebedouro, quebrei xícaras de café, eles viram com quem estavam lidando.
Fui posto para fora do cemitério de papel escrito a pontapés e no dia seguinte estava de volta à escola, sem trabalho nenhum realizado. Eu olhava para a cara da professora com vergonha, ela me olhava com cara de quem olha para um canalha que mata o cachorro de estimação do irmão mais velho. Disse à professora, de quem eu até gostava, umas coisas de que até hoje me arrependo, coisas que não se deve dizer nem aos maiores inimigos, e nunca mais voltei à escola. Me arrependo disto também. Afinal, eu que fiquei sem escola, sem estudo, sem saber coisa nenhuma. Aprendi apenas a escrever o próprio nome, com uma letra que mais parece um amontoado de garranchos que só eu mesmo consigo decifrar.
Esse crime não cometido me perseguiu a vida inteira, como um castigo, onde quer que eu colocasse os pés. Meus amigos de infância ficaram sabendo da história, da dolorosa calúnia, volta e meia tinha um que me jogava o cachorro morto na cara por qualquer bola de gude perdida, time de botão quebrado ou arranca-rabo de menino. Daí que volta e meia também eu tinha que quebrar a cara de alguém. Acabei ficando com fama de maluco violento, o que só serviu para justificar mais ainda a ideia fixa do meu irmão, de que matei porque matei o Tupi, por maldade e vingança, só porque no dia o covarde que espancava irmão menor me enchera de tabefes.
O remorso que não senti pela morte do cachorro que não matei, o crime que não cometi, senti mais tarde por ter arrebentado com uma pedra a cabeça do Boroga, um dos meus melhores amigos. Quase matei o Boroga. O Boroga, sim, esse eu quase matei. Tudo porque numa disputa de bola, em que ele achou que eu tinha entrado com maldade, caiu na besteira de dizer que eu era cangaceiro ou carniceiro, que ninguém queria mais saber de brincar comigo, pois estava todo mundo achando que a qualquer momento eu poderia cometer com um amigo a traição que cometi com o cachorro inocente.
O Boroga era tão meu amigo, para que foi se meter na porcaria dessa história?
Depois desse acidente do qual também me arrependo muito eu fiquei cabreiro, envergonhado, triste e sem amigos. Todos se afastaram, eu não tinha mais com quem brincar, nem mesmo com quem conversar. A pedrada na cabeça do Boroga afastou de vez a dúvida, para quem ainda tinha dúvida, sobre a morte do pobre Tupi, o cachorrinho idiota que não sabia escolher esconderijo e fugia das pulgas ficando embaixo do travesseiro. Passou a ser voz corrente e fé pública, a mentira virou verdade, para todos na rua e no bairro eu matara mesmo o bicho de estimação do meu irmão.
Não aguentei mais aquilo e um dia fui embora. E o que me dói mais até hoje é lembrar dos olhos da minha mãe na despedida, sem uma lágrima, sem pedir para que eu ficasse, parecendo que até ela me considerava um monstro sanguinário.
Fui crescendo com essa fama de sujeito desumano. Vendo isso nos olhos de uns e de outros. Os que sabiam do falso acontecido vez em quando me atiravam a notícia falsa na cara. Os que não sabiam ou fingiam não saber abaixavam o rosto quando cruzavam comigo. Ninguém me olhava nos olhos. E quando olhava era com flechas certeiras que traziam, na ponta, a inscrição inconfundível: assassino de bicho que não pode se defender.
Eu tinha uma tremenda dificuldade de arrumar namorada, as moças fugiam de mim ou pareciam fugir, mas já rapazinho eu conheci uma princesa que mexeu com a minha cabeça. Foi numa festa, dessas que somos levados por um colega qualquer de um trabalho qualquer, a princesa me ofereceu guaraná com cachaça e fumava jogando fumaça na minha cara. Se era provocação, era provocação das boas, pois a moça não me conhecia, ninguém naquela festa me conhecia, não havia a menor chance de estar querendo me ofender por conta do não acontecido.
Fui arrastado para detrás de uns caixotes que tinha no fundo do local onde faziam a festa, a princesa que eu pensava que era pura veio cheia de intimidades, me beijando todo, me machucando de tanto esfregar a mão por cima da calça jeans. Fiquei nervoso com aquela situação e procurei ajudar, abrindo o zíper e botando para fora com dificuldade, porque estava duro demais. Aí eu já estava doido de vontade mesmo, fui arrancando a saia e a calcinha dela, mas acho que não deveria ter agido assim. A princesa virou uma fera, cuspiu em minha cara, empurrou minha cabeça, parecia uma maluca perguntando está pensando o quê, seu babaca, que eu sou alguma cachorra?
Fiquei maluco nessa hora e falei como assim, cachorra? Que merda de história de cachorra é essa? O que você sabe sobre o cachorro? Quem te contou? Como foi que te contaram? Ela só sabia repetir que eu era maluco mesmo, que devia ser internado e preso, sei lá o quê, porque não tinha a menor ideia da força do meu braço, o impacto do meu soco, e deve estar até hoje procurando os dentes que dançaram na festa.
Aí fiquei com raiva de mulher de carne e osso, bicho muito complicado, e comecei a colecionar mulher de revista. Forrava as paredes do quartinho que aluguei no subúrbio com retrato de mulher pelada. Mulher de todo jeito. Preta, branca, gorda, magra, deitada, em pé, de bunda pra cima, de pernas arreganhadas. Mas mulher de papel também não presta, sempre leva o homem à ruína, elas que atraíram o Tarugo para o meu quarto.
Conheci o Tarugo, que na verdade se chamava Jorge não sei de quê, no supermercado onde eu trabalhava como empacotador. Tarugo-Jorge era da faxina, serviços gerais, sempre carregando rodo, vassouras e baldes de água e produtos de limpeza. Serviço pesado, mas o bicho era forte feito um jegue. Frequentávamos o botequim que tinha ao lado do supermercado, após a jornada de trabalho, e viramos parceiros de cachaça e partidas de dominó.
Eu deixava o Tarugo frequentar o meu harém, deixava até o babaca se masturbar olhando para as minhas mulheres, até o dia em que ele chegou lá dizendo que conhecera não sei quem que me conhecia desde pequeno, e que sabia uma história bem cabeluda a meu respeito. E antes mesmo que terminasse a frase seu irmão tinha um cachorro que chamava Tupi eu peguei a chave de fenda, que usava para apertar os parafusos da cama. Tarugo podia até ter sido um bom amigo, mas deu o azar de tomar conhecimento dessa história e de não saber com quem estava lidando.
Também dei azar porque o Tarugo urrava feito porco ensanguentado, tentando arrancar a chave de fenda cravada no peito. Logo chegaram vizinhos, que chamaram outras pessoas da rua, aí veio polícia e o diabo a quatro. Não deu tempo de fugir e ainda tentei me esconder atrás do armário ou debaixo da cama, mas, se eu fosse pequenininho, que nem o cachorro do meu irmão, teria me escondido debaixo do travesseiro.
Daqui a pouco eles voltam, os covardes, com porretes e cassetetes, para me cobrir de pancada porque acham divertido bater no maluco, que eles pensam que é maluco, enquanto perguntam quem matou o cachorrinho, quem matou o cachorrinho, quem matou o cachorrinho? Eu só consigo responder foi um acidente, seus filhos de uma égua, mas ninguém me escuta.